Continua após publicidade

Segue intacto o Alvorada

Em 2021, o documentário "Alvorada" olhou para palácio presidencial em metáfora para a destruição do Brasil. Dois anos depois, Brasília adormeceu em chamas

Por João Victor Guimarães
Atualizado em 24 jan 2023, 12h46 - Publicado em 11 jan 2023, 10h36

Alvorada, filme lançado em 2021 e dirigido por Anna Muylaert e Lô Politi, reúne imagens capazes de insinuar para o público parte do clima que pairava sobre o Palácio da Alvorada durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Trata-se de uma promessa tentadora. Afinal, quem resistiria a espiar a casa da Presidência?

Trata-se de uma promessa complexa, vasta. E, mesmo com o inegável talento e capacidade de articulação das diretoras, se mostra difícil de cumprir. A própria presidenta avisa sobre sua resistência à ideia da direção: chegar à intimidade. A questão cinematográfica que se coloca é: diante de alguma resistência da personagem central, a câmera consegue revelar o que tal personagem prefere manter a olhos fechados? Em quais circunstâncias é possível mostrar o que alguém não quer que se veja? Tudo se torna muito mais difícil quando esse alguém não se deixa enganar. Ou seja, quando não engana a si mesma.

Alvorada, 2021, dirigido por Anna Muylaert e Lô Politi
(Anna Muylaert e Lô Politi/reprodução)

Observando por esse ângulo, é possível afirmar que as objetivas reuniram num mosaico retratos da Dilma que mostram o centro da figura por trás da nossa primeira presidenta. Para enxergar tal retrato nesse mosaico, é necessário não uma leitura analítica ou psicanalítica, mas sim uma divagação, uma vez que a montagem do filme não apresenta uma nítida narrativa ou sequer uma proposta que realmente sustente nossa imersão nessa viagem.

Continua após a publicidade

Ou seja, Alvorada é um filme cujo roteiro e montagem não oferecem as melhores estruturas capazes de dialogar (fazer entender) com o público e manter-se na sua proposta. Não, o filme não é uma metamorfose em termos de linguagem ou narrativa, mas sim escapole da própria compreensão e diálogo o tempo todo. Vemos um filme que se concentra no impeachment mas não o tem como personagem explorado, como em Democracia em Vertigem, de Petra Costa. Alvorada tem como personagem principal a intimidade do Palácio da Alvorada e da presidenta. No entanto, tudo lhe/nos escapa. Temos Dilma no fundo da presidência, o golpe ao fundo do Palácio, o Palácio ao fundo dos últimos atos de Dilma e ela, no fundo, rejeitando o objetivo do filme: revelar a pessoa íntima da Dilma no fundo de tudo. De tão fundo, é vago.

Alvorada, 2021, dirigido por Anna Muylaert e Lô Politi
(Anna Muylaert e Lô Politi/reprodução)

As cenas têm suas revelações se vistas isoladamente. Mas o filme as reduz ao mutilar uma continuidade que, mesmo não sendo necessariamente linear, seria capaz de compor e ajustar o quebra-cabeça que Alvorada começa e não consegue completar. Assim, tais peças valiosas, as cenas, parecem desperdiçadas por quem as sabia preciosas mas não conseguiu as lapidar.

Continua após a publicidade

——

Continua após a publicidade

——

Agora, sob a luz dos fatos ocorridos no último domingo, 8 de janeiro de 2023, no oitavo dia do governo democraticamente eleito do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o filme Alvorada torna-se mais atual do que nunca. Isso porque tivemos a invasão da Praça e prédios dos Três Poderes em Brasília por terroristas e vândalos golpistas intelectualmente guiados pelo ex-presidente democraticamente derrotado Jair Messias Bolsonaro – que, quando era deputado, chegou a homenagear um verme semelhante, o torturador Brilhante Ustra, na votação do impeachment da Presidenta Dilma. Ecos do seu voto estão presentes no filme. É inevitável.

Alvorada, 2021, dirigido por Anna Muylaert e Lô Politi
(Anna Muylaert e Lô Politi/divulgação)

Agora, a questão que se coloca hoje mais do que na época do golpe é: sabemos que os vermes se alimentam de corpos em podridão. Por que acreditamos que tais corpos sempre serão outros?

Continua após a publicidade

Ora, homenageou um torturador? Poxa, que pena… Mas fere apenas quem foi torturado ou se sente ofendido. Ora, disse que vai metralhar a petralhada ou varrê-la? Poxa, que pena… Mas eu não ando de vermelho. Falou que não era coveiro? Que pena sua insensibilidade para/com os defuntos e seus familiares. Fomentou organizações anti-democráticas? Ah, mas duvido que saiam das portas dos quartéis. São soberanos os versos de Bertolt Brecht no poema mais brasileiro já escrito por um estrangeiro, É Preciso Agir, que termina assim: “Agora estão me levando, mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”.

Alvorada, 2021, dirigido por Anna Muylaert e Lô Politi
(Anna Muylaert e Lô Politi/reprodução)

Agora sim estão suficientemente alertas e conscientes as instituições brasileiras. Enquanto eram o PT, a Dilma, os pretos e pretas, mulheres, LGBTQIA+, pobres, deficientes, estudantes e todo o país, não se compreendia totalmente a gravidade. Agora que uma multidão (simbolicamente) brada por Ustra e invade suas casas, os Três Poderes hão de fazer jus ao país e à Dilma.

Continua após a publicidade

Alvorada vai muito além de si. Incompleto, no entanto, compõe o conjunto de obras fundamentais para a História do Brasil. Petra Costa, Anna Muylaert, Lô Politi e algumas outras cineastas e jornalistas cumprem um papel da maior importância na captura dos momentos sempre agindo com talento, atenção e dignidade. A contribuição dessas mentes brilhantes se revelará cada vez mais significativa para nossa futura mátria.

Alvorada, 2021, dirigido por Anna Muylaert e Lô Politi
(Anna Muylaert e Lô Politi/divulgação)
Alvorada

Direção: Anna Mulayert e Lô Politi
Brasil – 2021 – 90 min

Publicidade