Dedé Santana: muitas vidas numa só!
Em seu aniversário de 87 anos, o comediante e integrante do grupo Os Trapalhões divide conosco memórias de sua trajetória pessoal e de sua carreira no humor
Manfried Santana nasceu em Niterói e ficou nacionalmente conhecido como Dedé Santana, o trapalhão que abriu mão da sua vaidade artística para se tornar o maior escada do país, e fazer com que os outros três integrantes, Didi, Mussum e Zacarias, brilhassem. Com isso, ficou à margem e sempre foi tachado como “o mais sem graça” do quarteto. Uma enorme injustiça.
Dos quatro integrantes foi o que teve a vida mais errática. Incompreendido por alguns que não reconheciam sua importância na engrenagem de Os Trapalhões, injustiçado pelos críticos que não mensuram sua importância dentro da nossa história fílmica, Dedé atuou e dirigiu mais de 50 filmes, quase todos campeões de bilheteria, e mesmo assim foi premiado e homenageado uma única vez em um festival de cinema no Brasil, pelo conjunto da obra no Cine Vídeo Mostra de Cinema dos Sertões, na cidade de Floriano, Piauí. Viveu na pobreza, chegou a dormir na praia de dia para não ser pego pela polícia à noite, conheceu as delícias do dinheiro farto, a glória, a fama e o ostracismo. Foi verdureiro, engraxate, ajudante de mecânico e até cortador de camisa profissional.
Se reinventa constantemente. Esteve à beira da morte algumas vezes e sempre renasceu mais forte depois das enfermidades.
Sua vida é uma sucessão de momentos tristes e felizes e isso o torna mais humano, mais próximo de todos nós. Perdeu o pai ainda criança, perdeu um filho prematuro, casou, se separou, namorou dezenas de beldades, casou novamente, é pai de oito filhos e avô de oito netos, conheceu os dois lados da moeda.
Essa vida cheia de nuances o torna um personagem interessantíssimo.
“Se você me perguntar se tenho alguma mágoa eu digo que sim. A de ter administrado mal a minha carreira, eu não soube administrar a minha vida pessoal”, disse Dedé em diversas entrevistas.
Por ter feito escolhas erradas, este jovem senhor que agora completa 87 anos, não nos cansa de surpreender e de trabalhar. Com um fôlego de garoto, vive circulando pelo país fazendo apresentações, trabalhando em produções cinematográficas – especialmente de jovens produtores e cineastas – em papéis que revelam toda a sua versatilidade e categoria.
Também tem o seu circo itinerante. Aliás, a história de Dedé Santana se confunde com a história do circo no Brasil. Quem se surpreende com Dedé no teatro não sabe que, com apenas alguns dias de vida, já estava atuando em A Cabana do Pai Tomás. Ali recebeu os primeiros aplausos graças a um choro de verdade na hora que a cena pedia. Ou seja, o cara nasceu pra ser artista!
É surpreendente, mesmo pra mim, que já lancei três livros a respeito dos Trapalhões, o quanto esse homem viveu. Suas histórias parecem até ficção, mas tudo que será publicado realmente aconteceu com ele. Parece que viveu muitas vidas numa só.
Dedé está mostrando todas as suas vísceras sem medo. E esse depoimento concedido a mim e ao seu grande amigo Vitor Lustosa surpreenderá a todos pela coragem que está se expondo. Estava até hoje inédito, era para constar na sua biografia que decidiu, até o momento, interromper.
Seu depoimento é tão valioso e mostra a faceta antes da explosão da fama com os Trapalhões, então tem muita história que poucos conhecem, vista pelo próprio protagonista.
Dedé Santana é a mais perfeita tradução do brasileiro miseravelmente em dificuldade ou milagrosamente afortunado.
Rafael Spaca
As vidas de Dedé Santana
Depoimento dado a Rafael Spaca e Vitor Lustosa
Transcrição: Marcelo Amado
Edição: Artur Tavares
Fui fazer essa peça Very Good Brasil quase sem querer. Faltou um ator principal e eles me botaram de última hora. Só que na crítica – foi justamente no dia em que a recebemos –, o texto foi favorável para mim. Saiu assim: “Dedé rouba a cena. Entre 8 ou 10 atores em cena, inclusive seu tio Papão Colé”.
Nessa época, trabalhava na companhia, fazendo o papel de um americano, um cara com quem eu passava bastante tempo nos camarins. Foi ele quem me ensinou a sambar de verdade, porque no final da peça tinha uma cena que a gente tinha que dançar, e eu, vindo de São Paulo, eu não tinha essa prática. E esse cara, que me ensinou a sambar, chamava-se Daniel Filho.
E tinha os nomes da porta do teatro. Vinha Colé, não sei quem, não sei quem… e os dois últimos nomes eram Daniel Filho e Dedé, bem pequeninhos. Um dia notamos que nossos nomes estavam ficando sem cor. Todos os outros tinham a tinta viva e os nossos desbotando. Como eu morava ali ao lado do teatro, no quarto de empregada da atriz Renata Fronzi, saí cedo um dia e, olhando na porta do teatro, vi uma madame que vinha com um cachorro, e ele mijava exatamente em cima dos nossos nomes. Por isso que foi clareando. Eu me lembro que a gente acabou indo atrás do pintor e pagando uma cerveja pra ele, pra ele pintar de novo o nosso nome. Aí pedimos pra aumentar, mas ele falou que não podia. E o Daniel Filho insistia, pedindo pra aumentar o nome.
Quando conheci esse teatro, Teatro Folis, eu tinha pouco dinheiro. Dinheirinho que minha mãe me deu, acabou, e eu dormia na praia, no Posto 6. Quer dizer, dormia de dia, andava de noite, porque se você dormisse a noite você era preso como vagabundo, enquanto de dia você era playboy. Eu dormia como playboy, né? E ali, de madrugada, eu conheci um baiano, que hoje não me lembro do nome. Ele fazia a limpeza do teatro e eu ficava olhando ele com os baldes, então comecei a ajudar. Então, ele passou praticamente a dividir a comida dele comigo. Ele pedia um PF e a gente dividia. Antes, eu tava tomando cafezinho puro com pão, sem manteiga.
Eu me lembro que, um dia, o baianinho chegou e falou: “olha, eles mandaram eu procurar um pintor pra fazer um degradê e pintar aqui o teatro.” Na hora, falei: “eu sou pintor!”. No circo. eu tinha aprendido a pintar com o meu pai, a raspar, a passar as coisas. Pequenos serviços eu fazia, de eletricidade, de conserto…
Aí, o que aconteceu? Eu peguei esse serviço de pintura e levantamos uma nota. Aí o baiano passou a ser meu ajudante e o pessoal gostou muito da pintura que fiz. Naquela época não tinha internet, não tinha nada. Eu tive que procurar outras pessoas para indagar como é que eu fazia o degradê e tal. Sei que eu me virava bem, e à tarde eu sempre era o garotão de Ipanema. Eu ia pra lá dar meus mergulhos… aquelas ondas enormes. Essa era a minha vida, minha convivência… o teatro passou praticamente a ser a minha casa.
***
A peça parou, mas aí já me conheciam. E me procurou um argentino que era um grande empresário de teatro e de cinema. Ele falou que queria fazer no Brasil o que ele fazia na Argentina. Um espetáculo de meio-dia à meia-noite. Eu falei: “mas como é isso?”, e ele respondeu: “Não, eu já tenho elenco”.
Yvanack era travesti, cantor, coreógrafo. Ele tinha já uma companhia com não sei quantas mulheres, acho que 30 mulheres, francesas, argentinas, italianas, mulheres lindíssimas. E ele fazia show com essas mulheres. Então, me falou: “já contratei, já tenho isso, já tenho aquilo, tenho a orquestra”, que era com orquestra ao vivo, “Agora me falta você, Dedé. Preciso de você para fazer o espetáculo, montar esse espetáculo, dirigir, escrever, ser o comediante, preciso de você para fazer o espetáculo”.
Aí eu não me fiz de rogado, ele me chamou assim, foi num jantar, me lembro, lá em São Paulo. Na época, ele me ofereceu muito dinheiro. Todo mundo ganhava bem. Eu ganhei tanto dinheiro ali que toda semana, no último dia, eu chamava todo o pessoal para comer naquela mesma cantina e pagava pra todo mundo.
Eles resolveram fazer um filme. Era uma palavra mágica: strip-tease. Ele falou que queria fazer um filme chamado Isto é o strip-tease. E me disse: “Eu queria que você fizesse esse caipira” – ele nem sabia falar caipira – “esse caboclo, esse matuto que você faz na peça, eu queria que você fizesse ele.” Mas, poxa, e a história?, eu perguntei. “Não, precisa história. Você é um caipira que chegou em São Paulo, entra para comer em um lugar que pensa que é um restaurante, mas na verdade é uma boate de strip-tease. E ali eu preciso que você faça umas caretas, que você faça essas coisas que você faz aí e tal.” Então eu fiz careta em vários strip-teases, cujo principal era de uma atriz francesa que tinha muito nome, Jaqueline Myrna.
Depois que fiz esse filme, o pessoal se encontrava comigo na rua e falava: “puxa, rapaz, você viu todas aquelas mulheres”. Mentira, eu não vi nada, filmei sozinho, o strip-tease foi colocado depois. Só filmei as minhas caras e minhas cenas. Isto é o strip-tease foi um recorde de bilheteria, uma coisa tremenda. As filas começavam às oito horas da manhã naqueles cinemas que passavam filmes tipo pornochanchada. Dava voltas e voltas no quarteirão, desde às oito da manhã. Esse filme arrebentou. Foi uma das primeiras coisas que eu fiz em cinema.
Voltei para o Rio para fazer teatro, e nesse período conheci Terezinha Elisa. Era uma atriz sensacional, além de tocar acordeão e sambar muito bem. Fizemos amizade e acabamos namorando, até que, quando a peça acabou, fomos convidados para Recife fazer um espetáculo. Mas Terezinha foi convidada para voltar ao teatro Recreio, teria que largar a peça no meio. E ela falou de mim, pra essa peça que vinha pro teatro Recreio. Foi onde eu conheci o Arnaud Rodrigues, que me levou pra televisão.
***
Nessa época procurei um amigo meu, Anchizes Pinto, o Ankito, um grande comediante do cinema. Ele tinha trabalhado comigo em circo, e então estava fazendo televisão. Fui bem recebido e ele me ofereceu uma ponta em seu quadro. O diretor disse que não tinha lugar, e mesmo assim Ankito insistiu: “Então faz uma coisa: o meu quadro, você divide as minhas falas com ele e põe.”
Eu sempre dei muita sorte com esse tipo de pessoa. Logo comecei dividindo as falas com ele, e eu me lembro que nessa altura apareceu no Brasil um comediante que era o máximo em Portugal, chamado Raul Solnado. Ele precisava gravar uma cena de uma luta de boxe. Aí esse pessoal lá da TV Rio me convidou, e lá também conheci um outro rapaz, forte e bonitão, o Roberto Guilherme, que mais tarde veio a ser o Sargento Pincel. E nós chegamos a fazer algumas coisas juntos com o Raul Solnado, porque ele não era só ator, ele era, parece, produtor também na TV Rio. Foi ali que eu conheci o Sargento Pincel.
E aí, um dia eu vou saindo do teatro, e Arnaud Rodrigues tá lá fora me esperando: “Por que você não vai pra televisão?”. Eu não queria e ele insistiu. Falei: mas que hora grava? “Grava tal hora e tal… o programa é tal hora”. Mas eu tenho teatro… “Não, mas dá pra você fazer o teatro e tal”. Com o tempo, fiz muita amizade com o Arnaud e eu acabei topando.
***
O primeiro programa que eu fui fazer na TV Tupi aconteceu onde era o antigo Cassino da Urca. E eu me lembro que ficava todo mundo na plateia, o elenco todo, os diretores, e o Arnauld não estava. Fiquei ali na plateia, e foi quando eu conheci grandes comediantes, como José Santa Cruz – o Jojoca -, Lúcio Mauro, Manoel Vieira, Berta Loran, Arlete Sales, Alvarenga e Ranchinho, um pessoal muito grande que trabalhava lá. E o Renato Aragão já trabalhava lá nessa época, no programa A, E, I, O, Urca.
Durante o ensaio de uma cena, eu vinha e encontrava com outro ator. Quando eu vim e dei a primeira fala, o diretor pediu para parar na hora, chamou o assistente e perguntou: “Quem é esse rapaz? É o indicado pelo Arnauld?”. Então disse: “Não, esse cara não serve, ele fala muito baixo, não, não, tira, bota outro”. E me tirou do quadro.
Eu não tive nem coragem de olhar pra trás, eu não sabia como sair dali. Sai meio de cabeça baixa, assim muito nervoso, sem olhar pros lados, sem olhar pras pessoas. Ouvi um pequeno comentário das pessoas e eu fui pensando: “poxa, eu, palhaço de circo, acostumado a trabalhar sem microfone, sem som, o cara dizer que eu falo baixo…”. Não queria nem esperar o Arnauld.
Quando chego na porta da televisão, tinha um gay magrinho que fazia o guarda-roupa. Ele ficou me olhando e falou assim: “Você é aquele moço lá do Teatro Recreio, o Dedé? Vai trabalhar aqui?”. Respondi que achava que não, eu tava doido pra sumir dali. E ele falou: “Ah, é uma pena, você devia. Conheço todos os artistas daqui, há anos que eu trabalho na Tupi. Mas vou dizer, nunca vi um artista igual ao senhor. Aqui não tem um artista que se compare com o senhor. O senhor é demais.” Ele me chamava de senhor, eu era um garoto, bem novo mesmo, uns vinte e poucos anos.
Aí fui caminhando para o ponto do ônibus, não… me lembro que eu tinha um Fiat antigo, uma caminhonete, que tinha madeira e tal. Falei: “Não, não vou embora. Eu só vou sair dessa televisão o dia que eu tiver nome. O dia que eu tiver muito nome aqui dentro, eu largo a televisão e vou embora.” E fiquei, fiquei ali esperando…
O Arnauld Rodrigues chegou, contei o que tinha acontecido, e ele disse para esquecer, que eu entraria no quadro dele. Na época, ele mandava lá: “Vem cá, meu quadro é o seguinte, você vai ficar ali atrás do balcão…” – o Arnauld nem ensaiava – “…eu venho com uma gaiola. Vou te pedir uma bebida, você me nega a bebida, isso é quadro”. Eu respondi: “Na hora que você me pede e bebida e eu nego, você não pode me pegar pelo colarinho e puxar?”. Ele quis saber o porquê.
“Porque eu vou voar por cima do balcão e cair aqui na frente. Põe a mão no meu paletó e dá um puxãozinho.” E assim foi. Ele pôs a mão no meu paletó, deu um puxãozinho, eu voei por cima do balcão, cai. Em outra cena, falei para me dar um tapa. “Mas eu vou te dar um tapa?”, ele quis saber? “Pode me dar um tapa mesmo. Você vai brigar comigo e eu vou cair por cima da mesa”. Eu caí por cima da mesa e foi um sucesso tremendo.
O meu cachê de um dia de televisão era o salário de um mês no teatro, fazendo de terça a domingo, duas sessões às quinta, duas sessões aos sábado e três sessões aos domingo. Eu ganhei num dia só o que eu não ganhava o mês inteiro no teatro. Aí realmente eu me interessei muito [risos].
***
O Renato não estava indo muito bem. Era um humorista que vindo do Ceará, acho que um padrinho dele era um dos donos da Tupi e ele veio pra cá com mulher, filho e não tava indo muito bem, porque o humor dele era diferente, não agradava no Rio de Janeiro naquele tempo. Então o Arnauld teve a ideia de me colocar trabalhando junto porque eu era muito ligeiro, ele mais mole, ficaria uma dupla tipo Gordo e o Magro. E foi assim que começou a minha história com o Renato Aragão.
***
Eu vim de uma família muito pobre, e o Renato era de uma família remediada. O pai dela era dono de colégio no Ceará, uma família que podia não ser rica, mas era muito bem de vida. Ele era casado com uma professora, a Marta, uma mulher inteligentíssima, muito legal, que me tratava… tinha o maior carinho comigo, me tratava como se fosse irmão dele, de verdade, como se fosse parente.
Quando comecei a trabalhar com o Renato, ele já tinha dois filhos e eu estava sozinho na época, com um espírito muito de criança. Eu ia à casa dele e brincava com os filhos dele como se tivesse brincando com dois moleques da minha idade. A gente brincava de tiro, tinha o Paulinho que era mais sério e o Ricardo era mais extrovertido, ele pulava no sofá e pulava nas minhas costas, a gente brincava de luta, era uma bagunça. Uma vez a Marta disse pro Renato para me pedir para maneirar.
Era a Marta quem, às vezes, puxava meu interesse por finanças. Ela falava para o Renato que eu deveria dar entrada num apartamento, comprar uma coisa, trocar um carro, porque eu não fazia nada. Meu carro me servia bem, eu estava tranquilo pagando aluguel. Então chegamos a comprar uma casa do lado da outra, em construção. Não deu em nada e nós perdemos o dinheiro… quer dizer, o Renato ainda foi à luta e conseguiu recuperar o dinheiro. Eu deixei pra lá, nunca quis saber e perdi todo o dinheiro que tinha pago. Sempre fui um péssimo administrador.
***
Logo no começo de Dedé e Didi, em 1973, nós fomos convidados para fazer um show de chegada do Papai Noel, no Mineirão, em Belo Horizonte. Era a primeira vez que a gente estava ganhando um cachê astronômico, além do trabalho ser tudo pago, passagem de avião, hotel de luxo e tal.
O que nós tínhamos que fazer? Era uma festa grande, tinha muitos números circenses, palhaços e dois times de futebol. Uns palhaços contra os outros. E no nosso time, a gente tinha que fazer um gol, já estava tudo mais ou menos combinado e preparado.
A bola era grande, tinha, sei lá, meio metro. Nós faríamos o gol e tudo terminaria. Soltariam fogos e o pessoal entraria pelas escadas do vestiário: os números circenses, o desfile, então voltaríamos no final, depois de tomar um banho e trocar de roupa.
Bom, chegou nossa hora e nós entramos. Como a gravação do nosso primeiro programa foi em Belo Horizonte, a plateia nos conhecia muito. Nós entramos e começamos a jogar bola. Os palhaços vinham e a gente sabendo que os palhaços estavam mais ou menos avisados. Com 15 minutos, já estávamos cansados de correr no campo de futebol. Didi e eu partimos pro gol com aquela bola enorme, meio pesada. E a gente foi, os palhaços dando aquela meia passagem para nós, até que dei um passe para o Didi na cara do gol… Então surgiu um palhaço que ia lá, tomava a bola dele e voltava. Aí eu tinha que correr atrás desse palhaço e tomar a bola dele, voltando correndo.
Isso aconteceu umas três ou quatro vezes, nós já estávamos morrendo, não aguentávamos mais. Eu dizia: “Vou matar esse palhaço!”, o Didi olhava pra mim desesperado… Até que uma hora dei uma segurada no palhaço, com a mão mesmo, e o Didi conseguiu chegar lá. Fez o gol que tinha que marcar e nós fomos já quase caindo para a entrada dos vestiários. Os números circenses estavam entrando e nós quase desmaiamos. Nos carregaram até a enfermaria para fazer uma inalação.
Aí a minha irmã, Lígia, soube que a gente não estava bem e foi até lá saber o que tinha acontecido. Chegando lá, muito sem graça, ela falou: “Aquele palhaço que tomava a bola de vocês é a tua avó!”. Era a minha avó que fazia isso. Ela estava vestida de palhaço correndo mais do que eu e o Didi. E já tinha sei lá, uns 60 ou 70 anos.
Depois pedi pro Didi não ficar com raiva da minha avó. Ele respondeu: “Não, eu só quero matá-la um pouquinho”.
***
Meu pai foi o homem que mais lutou pelos filhos do circo em escolas. Eu me lembro na época do Jânio Quadros, ele gostava de artista, e concedeu ao meu pai uma audiência.
Ele morava em Santos, e meu pai, através de alguns amigos… sabe, o pessoal de circo tem muita facilidade em fazer amizade com pessoas importantes… aí meu pai foi lá falar com ele e levantou a hipótese, junto com todos os circos e a Gazeta Esportiva de São Paulo, para se fazer uma lei em que todo colégio, mesmo com a sala cheia, fosse obrigado a colocar cadeiras para filhos de artistas de circo em passagem pela cidade. Essa lei existe até hoje.
***
Meu pai tinha uma letra tão bonita que todo mundo elogiava. Parecia ser feita à máquina. Uma letra que mais tarde eu vi naquele Instituto Universal, que faz cursos por correspondência, vi aquela letra igualzinha a do meu pai. Tentei fazer, entrei naquele curso, mas não consegui.
***
Não tenho conhecimento e memória de como meu pai e minha mãe se conheceram. Engraçado, nunca tive essas coisas de curiosidade de perguntar, mas foi no circo também.
Minha mãe foi a maior contorcionista da América do Sul. Sim, ela era uma grande contorcionista e o irmão dela, Petronio Rosa Santana, foi um dos maiores comediantes do Brasil. Fez vários filmes como ator principal, depois foi para o teatro, onde fez uma carreira muito bonita, e também chegou a trabalhar na Globo.
Quanto aos meus pais, acho que foi no mesmo circo. Normalmente, os circos têm mais de uma família, então elas saem de uma trupe e vão para outra. Em uma dessas, acabaram se encontrando. Então namoraram e casaram. Isso é normal.
Lembro que minha mãe dizia que trabalhou grávida aos oito meses, fazendo acrobacias no picadeiro. O número da minha mãe era fantástico. Ela conseguia, em deslocamento, comer com garfo e faca com os pés; ficava de parada de mão, dobrava o corpo pra frente, pegava no prato a comida com garfo e faca e comia, com os pés. Era apelidada de “A Serpente Humana”.
Na porta do circo eles colocavam um desenho de uma cobra com a cara dela; era uma atração do circo. E meu pai, ele fez poucos números. Equilíbrio, tocava violino, piano… não sei porque eu não aprendi isso. Me arrependo até hoje. Ele pegava um serrote, botava no meio das pernas, e tocava a ferramenta com o arco. Era aplaudido de pé.
***
Então, meu pai me arrumou emprego no circo do Arrelia, através do meu irmão. Dino já era um ator mirim muito bom, eu não chegava nem aos pés do meu irmão. Ele trabalhava lá e eles precisavam de um palhaço para substituir o Arrelia, que toda sexta-feira tinha um programa de televisão.
Aliás, todo mundo acha que o primeiro palhaço da televisão brasileira foi o Carequinha, e não foi. O primeiro palhaço da televisão brasileira chamava-se Pirulito, e era meu primo. Primo da minha mãe, primeiro palhaço do circo Bom Bril, em São Paulo. Depois que veio o Arrelia, também na cidade, e o Carequinha, no Rio.
Primeiro, precisei assistir o Arrelia e aprender todas as peças. Acabei decorando tudo de cor. Eu saía da fábrica e ia para o circo na sexta-feira, era uma corrida maluca, tinha que pegar, eram duas ou três conduções. E chegava lá, me arrumava correndo, fazia as mesmas piadas mas o povo não ria igual. Ria um pouquinho aqui, um pouquinho ali, enquanto com o Arrelia eles riam o tempo inteiro.
Teve um dia que cheguei muito atrasado, e os patrões, a família Ceicil era muito tradicional e regrada. Oito e meia começava, tendo ou não tendo o artista ali. Todo mundo tinha que se virar. Cheguei lá já estava tocando música, contando cinco minutos para a abertura.
O número de comédia começava com meu irmão e eu entrava em seguida. Naquele dia, o público morreu de rir comigo, de cair no chão. Depois de 40 minutos, saímos do palco, e indaguei meu irmão pelo motivo de rirem tanto. Ele disse: “Você não esqueceu de nada?”, então falou: “Você esqueceu de pintar a cara!”.
Então o povo achava graça comigo de cara limpa. Eu assistia outros comediantes, como Franco Franco, que faziam muita careta. E outros, como Jerry Lewis, tinham aquele jeito de andar meio de lado. Adorava aquilo e meio que os imitava. O povo não achava graça porque não via a minha cara! A partir daquele momento passei a colocar só um vermelho na bochecha e no nariz, e um beiço que eu fazia maior no lábio inferior.
E teve algo que imitei do Arrelia, que era um palhaço muito bem vestido. Ele não andava como palhaço, não tinha aquele sapatão. Era um palhaço elegante.
Eu queria ser um palhaço elegante. Mas a coisa foi tomando um tamanho que eu não esperava. De repente, outros colegas de circo começaram a ir ao nosso para ver o tal palhaço Picolé de cara limpa… Meu tio era o Picolé, passou para Colé, e eu adotei o nome de Picolé. E aí todo mundo queria ver esse Picolé de cara limpa. Era novidade, palhaço de cara limpa e tal. E aí um jornalista da Gazeta Esportiva de São Paulo falou: “Isso merece uma comemoração.” E eles me levaram para receber o prêmio de primeiro palhaço de cara limpa do Brasil. Eu não guardei nada, não sei onde está esse diploma. Sou muito relaxado. Mas eu ganhei como primeiro palhaço de cara limpa do Brasil, algo que mais tarde foi atribuído aos Trapalhões.
O maior orgulho que eu tenho na minha vida, e a certeza, é que eu levei o humor do palhaço do circo para Os Trapalhões. Eu levei o humor circense para televisão. Isso aí eu falo sem medo de errar.