O desejo como um rio
Novo filme de Sérgio Machado, “O rio do desejo” trata do confronte entre três irmãos que se apaixonam pela mesma mulher
Há inúmeras maneiras pelas quais as mulheres foram retratadas como meros objetos do desejo masculino na dramaturgia literária ou visual. De tão desgastado, o conceito beira a um clichê de a sociedade costuma operar. No filme O Rio do Desejo, de Sérgio Machado, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas, esse ainda é um tema. Felizmente, a produção consegue escapar desse lugar-comum.
Inspirado no conto O adeus do comandante, de Milton Hatoum, o longa mostra o encontro apaixonado entre Alaíde (Sophie Charlotte), uma jovem que vive em um ambiente marcado pela violência doméstica, e Dalberto (Daniel de Oliveira), um policial cansado da profissão. Os dois vivem em Itacoatiara, um dos maiores e mais populosos municípios do Amazonas. No momento em que se conhecem, Dalberto atende um chamado numa casa em que há um homem gravemente ferido. Trata-se do padrasto de Alaíde, que há pouco tentara abusar da enteada. Sem demora, Alaíde e Dalberto, apesar da trágica circunstância, se apaixonam e passam a enxergar um no outro a chance de uma vida melhor e mais livre.
Dalberto decide abandonar a vida de policial, compra um barco e convida a nova companheira a se mudar para a casa da família, onde vivem os outros dois irmãos: o mais velho Dalmo (Rômulo Braga) e o caçula Armando (Gabriel Leone). O lar esconde um triste passado familiar e, quando Alaíde entra naquela rotina, é como se as janelas fossem finalmente abertas, arejando e iluminando o espaço. E logo a nova inquilina revolve a cabeça e os sentimentos dos irmãos.
“Em todos os filmes que eu faço o ambiente é também personagem. Antes de começar as filmagens fiz uma longa viagem, conversei com gente que mora na Amazônia e percorri longos quilômetros de barco durante alguns meses. Me impressionei com a natureza exuberante e com o ritmo acelerado da destruição”
Sérgio Machado, diretor
Após um incidente que arrasa o navio de Dalberto, e também o seu ganha-pão, junto a uma inesperada dívida para dar conta dos reparos, ele encontra uma oportunidade de fazer dinheiro em uma viagem a Iquitos, no Peru. Longo tempo fora, e os afetos em casa são revirados do avesso. Enquanto Dalmo luta para reprimir a atração que sente pela cunhada, Anaíra e o mais jovem dos filhos, Armando, se aproximam cada vez mais.
Comum nas obras de Hatoum, todo o ecossistema ao redor é vital para revelar os embaraços e destinos dos personagens. O cenário se torna um desdobramento deles. Assim como o autor, o diretor Sérgio Machado compartilha dessa representação. “Em todos os filmes que eu faço o ambiente é também personagem. Antes de começar as filmagens fiz uma longa viagem, conversei com gente que mora na Amazônia e percorri longos quilômetros de barco durante alguns meses. Me impressionei com a natureza exuberante e com o ritmo acelerado da destruição”, diz Sérgio. “A minha ideia sempre foi filmar a Amazônia de uma maneira diferente, quase assustadora, às vezes trágica, como se a floresta e o rio refletissem os tormentos amorosos que os personagens estão sentindo. Os problemas que os personagens enfrentam parecem enormes, mas tornam-se insignificantes diante da imensidão da floresta e das turbulências do rio.”
Para produção do filme, os quatro atores moraram durante dois meses em Itacoatiara, experiência que permitiu que esquadrinhassem ainda mais cada um de seus personagens e toda complexidade em torno das relações entre eles. Lá, contaram com preparação física (e emocional) de Fátima Toledo. Embora, já se conhecessem, a rotina conjunta selou ainda mais a confiança e cumplicidade ao elenco. “Acho que todo o processo não poderia ter sido mais feliz na sua completude porque estávamos mergulhados num lugar que é arrebatador. O calor te toma, as pessoas são muito amorosas e receptivas. Tudo contribuiu para criar uma atmosfera perfeita [para criação]”, compartilha Sophie Charlotte. A atriz ainda diz: “O cinema brilha tanto para mim porque todo mundo está mergulhado num processo criativo, contribuindo e trocando. A gente está o tempo todo junto, conversando e trocando com os moradores, no intuito de dar ao filme uma construção de um quadro com muitas camadas. É um filme com muitas nuances e subtextos.”
“O cinema brilha tanto para mim porque todo mundo está mergulhado num processo criativo, contribuindo e trocando. A gente está o tempo todo junto, conversando e trocando com os moradores, no intuito de dar ao filme uma construção de um quadro com muitas camadas”
Sophie Charlotte
Fazia parte da concepção estética do filme dar a cada cena o aspecto de uma pintura, uma obra de arte, explica o ator Gabriel Leone. Por esse mesmo motivo, este é um filme que ganha ainda mais sentido quando visto nas telas de cinema, defendem os atores. “Filmar na Amazônia é um desbunde, algo impressionante. Você gira a câmera 360 e todas as paisagens são absolutamente cinematográficas e imprimem lindamente na câmera. Enquanto o conceito de linguagem, a ideia era construir quadros. Lembro do Sérgio e do Adrian Teijido, nosso fotógrafo, falando que eles gostariam muito que de cada cena a gente pudesse retirar um frame e botar na parede, como se fosse um quadro. E a natureza lá favorece isso.”
Naturalmente, o ambiente facilitou o processo de construção e entendimento de seus personagens. “Qualquer esquina que você vira você tem um escape de rio, de animais, de floresta e, é lógico, conforme o tempo vai passando, aquilo vai grudando e a gente vai absorvendo. Aquilo vai entrando no nosso corpo. Então, quando começamos a filmar a gente já tava muito inserido naquele lugar e conseguiu levar isso para o filme”, complementa Gabriel.
Sophie celebra o lançamento do filme, que teve pré-estreia num Teatro Amazonas lotado. E conta que a ainda está assimilando novos significados para a obra, rodada antes da pandemia. “Apesar da gente falar de quadro, de uma imagem que é fixa, ela continua se desdobrando em significados para mim, tanto na minha evolução artística, quanto no entendimento do feminino que começou a se revolucionar muito na vivência desse filme. É muito bonito explodir agora com o lançamento, o debate e entendimento da mulher plural e poderosa e agente do seu desejo, da sua vida, não um objeto de desejo, um ou um simples adereço.”
“Filmar na Amazônia é um desbunde, algo impressionante. Você gira a câmera 360 e todas as paisagens são absolutamente cinematográficas e imprimem lindamente na câmera. Enquanto o conceito de linguagem, a ideia era construir quadros”
Gabriel Leone
Em confronto com esse feminino que clama sua autonomia, há o masculino predatório que espreita e constrange com seus olhares. Essa representação é dada pelo personagem Dalmo, vivido por Rômulo Braga. “É um sujeito que está estacionado na falta, na falta de uma mãe, de um pai. E essa falta causa trauma, o medo uma de uma ruptura, de um abandono. Acho que esse personagem seria um homem tradicional brasileiro, com todos os segmentos patriarcais e machistas. Por outro lado, ele tem também uma espécie de fragilidade psíquica. É um sujeito que, apesar de tentar demonstrar alguma maturidade, não soube desenvolver seus sentimentos”, resume o ator Rômulo Braga.
“Muito além dos dilemas de cada um, há o desejo que está o tempo todo em fluxo, como um rio que parece calmo em sua superfície, mas que esconde muito movimento”, compara Sophie. “E, que no limite, coloca cada um em confronto com os próprios princípios morais e desemboca em uma escolha.”
“Para mim, o grande trunfo do nosso filme é as pessoas conseguirem assistir e ao final não estar julgando ninguém, e de, eventualmente, se colocar numa situação e conseguir entender as atitudes de todos os lados que estão ali envolvidos”, conclui Gabriel Leone.