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É hora de novas narrativas sobre pessoas que vivem com HIV

No Dia Mundial de Combate à Aids, celebrado neste 1/12, apelamos por novas histórias que não se prendam aos estigmas de pessoas soropositivas

Por Humberto Maruchel
1 dez 2023, 11h33

Seria pretensioso tentar listar todas as funções que o cinema pode ter. Algumas, no entanto, são muito claras: o entretenimento, por exemplo, a expressão artística, a reflexão cultural e social. Há também o aspecto da memória que as histórias constituem. Um acervo que nos proporciona um retrato, fictício ou documental, que pode ser exato ou não sobre um período, uma região ou um grupo de pessoas. Preservar este papel é necessário, sobretudo, para não repetir os erros do passado.

Narrativas sobre a epidemia do HIV, seja no Brasil, nos EUA, ou em outras regiões do mundo, cumprem, de certa maneira, esta função para recordar o sofrimento, as injustiças e o preconceito pelos quais alguns grupos minorizados foram submetidos. No entanto, há um contratempo quando esses materiais cristalizam uma visão única e, por vezes, desatualizada. É nesse sentido que as histórias sobre pessoas que vivem com HIV cometem o mesmo erro.

Faça um breve exercício: tente recordar filmes, séries ou peças de teatro que você assistiu que discutiam o HIV/Aids. Qual era o foco? Quem era o personagem? Como ele era apresentado? E qual era o seu desfecho? O empenho em fazer emergir o drama peca ao escorregar em alguns estereótipos, como quando apresentam um personagem gay, uma travesti, pessoas negras, ou uma pessoa adicta que descobre que possui o vírus e entra numa espiral de decadência e sofrimento físico e emocional até ser empurrado para um fim trágico. É exatamente isso que algumas das criações audiovisuais mais conhecidas têm feito. Aqui, um alerta: traremos spoilers de algumas obras.

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(Filadelfia/reprodução)

Em 1993, o estadunidense Filadélfia, de Jonathan Demme, foi um dos primeiros a abordar a temática. A trama conta a história e luta de Andrew Beckett, um advogado homossexual demitido de um grande escritório de advocacia após ser diagnosticado com HIV. Ele, então, decide processar a firma, mas há um empecilho: nenhum dos advogados contatados aceita seu caso. Até conhecer Joe Miller (Denzel Washington), que, por preconceito, se mostra resistente no início, mas acaba atuando no processo. Se tratando de um momento ainda delicado, em que muitas pessoas morriam pela falta de um tratamento, não é difícil imaginar o desfecho triste de Andrew.

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No mesmo período, a peça “Angels in America”, de Tony Kushner, deu o que falar. O texto, lançado em 1991, venceu o prêmio Pulitzer e depois, quando encenado, foi prestigiado pelo Tony Awards de Melhor Peça. O enredo, que se passa em 1985, mescla as realidades do casal Prior Walter e Louis Ironson, com personagens e trechos bíblicos. Prior descobre que é portador do vírus e, ao longo da peça, vemos o personagem cada vez mais debilitado. Assustado e sem saber o que fazer, Louis abandona o parceiro. Quanto mais doente e solitário, mais Prior se conecta com o sagrado, confrontando, inclusive, a sua existência e benevolência. Em 2003, a obra ganhou uma versão cinematográfica, com a minissérie de mesmo nome.

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(Angels in America/reprodução)

Ambas foram ousadas pelo teor de denúncia que trouxeram em um momento que era urgente que se falasse sobre o assunto para encontrar saídas tanto para a epidemia quanto para a discriminação. É oportuno lembrar que é através das narrativas audiovisuais, ou cênicas, que muitas pessoas se aproximam de realidades distantes e são munidas de algum conhecimento para simplesmente pensarem a respeito. Em certo momento, as histórias foram essenciais para desmistificarem absurdos, como a ideia de que alguém se contaminaria por um beijo ou dividindo um copo.

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(Jean-Marc Vallée/reprodução)

No entanto, as décadas avançaram e a ciência foi revolucionária, trazendo tratamentos antirretrovirais capazes de devolver às pessoas soropositivas a chance de uma vida normal. Mas as histórias, por outro lado, ficaram presas no tempo. Mais recentemente, outras obras buscaram reproduzir um panorama semelhante. Filmes como Clube de Compras Dallas (2013), de Jean-Marc Vallée, The Normal Heart (2014), de Ryan Murphy, o francês 120 Batimentos por Minuto (2017), de Robin Campillo, e tantos outros, fizeram o mesmo que aqueles dos anos 1990.

No Brasil, em 2022, estreou Os Primeiros Soldados, que se volta a mostrar os primeiros brasileiros se infectarem com o vírus em 1983; dois homens gays e uma mulher trans. A partir da descoberta, os amigos se isolam e criam uma rede de apoio, onde um cuida do outro. Também vieram as séries “Pose” (2018) e “It’s a Sin” (2021), que trazem personagens queer vivendo com HIV. E adivinha: mais uma vez, alguns dos personagens centrais morrem por complicações da Aids.

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(Os primeiros soldados / direção Rodrigo de Oliveira/reprodução)

Para não parecer injusto, há outros casos de dramas que se aprofundam numa visão modernizada. Neste ano, uma peça estadunidense estreou nos teatros brasileiros e causou bastante comoção. O texto “A Herança”, do dramaturgo Matthew Lopez, ganhou uma adaptação do diretor Zé Henrique de Paula. Na saga com duração de 6 horas, mostra um grupo de homens gays vivendo dramas da atualidade, como a solidão e o desejo por afeto. Ali, o medo do vírus é atenuado pelo fato de que os personagens sabem da existência da PrEP (Profilaxia Pré-Exposição) e da PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV) como formas de prevenir a infecção.

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Pode parecer surpresa para quem se conecta com o passado e com a realidade de pessoas que vivem com HIV através da ficção que grande parte dos casos detectados de Aids (o estágio mais avançado da infecção pelo HIV) no Brasil abrange homens heterossexuais, sobretudo quando é feito um recorte etário. Homens que se declaram heterossexuais de 40 a 49 anos são 45,7% dos casos, segundo dados do Ministério da Saúde. Na faixa de 50 e mais, eles são 54,3%. Nesse caso, a ficção parece não espelhar muito bem a realidade.

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(A Herança/divulgação)

‘O HIV não define como vai ser o meu dia’

Quando precisa se apresentar, o diretor e roteirista Alberto Pereira Jr. faz questão de pontuar três características. “Sou bicha, preta e positiva. Logo de cara, coloco os três marcadores sociais mais óbvios na mesa. Vivo com HIV há 14 anos.” Ele descobriu por acaso em agosto de 2009, quando acompanhou a mãe numa consulta médica com um clínico-geral. “Disse a ele que estava sentindo um caroço no pescoço, e ele me passou uma bateria de exames. Não achei anormal isso, prefiro quando pedem todos os tipos de exames e não fechem o diagnóstico antes de investigarem. E o laboratório pediu para repetir o exame de HIV/Aids.” Jornalista de formação, ele sempre teve um perfil bastante objetivo e racional. “Não gosto de sofrer com antecedência.” E quando teve a contraprova positiva, ele se apoiou em algumas noções que já eram conhecidas naquele momento. “Já sabia o que o Brasil era referência no tratamento, que o SUS entregava medicamento gratuitamente. Quando recebi a confirmação, soube que tinha o vírus no organismo, mas era indetectável.”

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Felizmente, ele pôde contar com uma rede de apoio. Mas apesar de todas as informações que tinha disponíveis, havia o choque da notícia. “Confesso que a vida passa pelos olhos, mas não por pensar que fosse morrer ou que ficaria desassistido. Mas eu me conectei com todos os estigmas, já sou um homem negro, gay, que enfrenta estigmas sociais apenas por existir. Adicionar o HIV à minha vida seria mais um. De todo jeito, é um pensamento que vem, mas 14 anos depois, ele não me desmoronou. Não falo isso com orgulho, nem nada, porque cada um acolhe e recebe o diagnóstico do jeito que sua estrutura psicológica permite. Eu recebi com tranquilidade porque sabia que essa não era uma questão de vida ou morte. Meu bisavô morreu com 116 anos, eu não pretendo viver menos.”

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(Alberto Pereira Jr/divulgação)

Nesse ínterim, Alberto viveu outra mudança, com a transição de carreiras. Antes jornalista, ele ingressou no audiovisual, e viu de perto os equívocos na abordagem de alguns assuntos. “Acho que todos os temas que fogem do status quo, a homossexualidade, a negritude, ainda são abordados de maneira complexa e precisam melhorar. No caso do HIV/Aids, já relacionando com a homossexualidade, vivemos em um país que se apoia em valores culturais conservadores e apegados a uma leitura religiosa que causa estigmas. Até hoje, no audiovisual, brigamos por representações mais plurais de relações homoafetivas.”

Além disso, ele acredita que uma perspectiva tem se fixado em nossos olhares, refletindo uma faceta limitante e de sofrimento para certos sujeitos. “Parece que certos temas só servem para serem trazidos se for pela ótica da fetichização ou do sofrimento. E que corpos dissidentes precisam abarcar todo sofrimento do mundo. Quando falamos de HIV/Aids, a narrativa de morte ainda predomina no audiovisual e no jornalismo. Claro que precisamos falar porque ainda existem pessoas que morrem pelo não acesso ao tratamento, que envergonhadas por serem quem são, não procuram ajuda. Precisamos falar disso, mas também mostrar outras possibilidades de existência.”

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“Eu gostaria de ver narrativas que falassem sobre a dimensão do diagnóstico, da descoberta, que são momentos muito específicos e cruciais, mas também extrapolá-los e mostrar pessoas com HIV em plena ação no seu dia a dia. O HIV não define como vai ser o meu dia”

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(Alberto Pereira Jr/divulgação)

Quais histórias ele gostaria de ver? “Eu gostaria de ver narrativas que falassem sobre a dimensão do diagnóstico, da descoberta, que são momentos muito específicos e cruciais, mas também extrapolá-los e mostrar pessoas com HIV em plena ação no seu dia a dia. O HIV não define como vai ser o meu dia. Eu não acordo triste porque vivo com HIV, então gostaria de ver personagens com histórias para além da sua sorologia, que não se detivessem aí.”

Mas afinal, qual é a diferença entre ele e outra pessoa que não vive com HIV? “Se eu fosse o personagem de uma novela, qual seria a minha rotina que diz respeito ao HIV/Aids? Seria que eu tomo minha medicação todos os dias e faço exames regulares, não tem nada além disso. Como bem, durmo bem, faço exercícios, mas isso eu já fazia antes. Pessoas com doenças crônicas, como diabete ou hipertensão, também passam por isso. Por que sempre colocamos essa carga negativa em pessoas soropositivas?”

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