Do Recife a Hollywood: Kleber Mendonça Filho e o caminho de “O Agente Secreto”
Bravo! conversou com o diretor sobre o processo criativo e as ideias que atravessam seu novo filme, recém-chegado aos cinemas e cotado para o Oscar
Começou a temporada de aquecimento para o Oscar — que, curiosamente, coincide com o carnaval brasileiro. E já estamos ficando mal-acostumados com a possibilidade de ver o país representado pelo segundo ano seguido na maior premiação do cinema. Para a Academia, isso é quase uma bandeja de ouro: o brasileiro sabe como poucos gerar conversa e engajamento nas redes.
Agora é a vez de Kleber Mendonça Filho entrar nesse turbilhão de entrevistas e exibições para divulgar seu novo longa, O Agente Secreto, que estreia hoje (6) nos cinemas, e que assume o posto deixado por Ainda Estou Aqui, de Walter Salles.
A empolgação é justificada. O filme venceu dois prêmios em Cannes: melhor direção para Kleber e melhor atuação para Wagner Moura, o protagonista. Os rumores em torno do Oscar apostam nas indicações para Melhor Filme Internacional e Melhor Ator.
Ambientado durante o regime militar, o longa evita transformar o contexto político em centro da narrativa. Em vez disso, mostra um Brasil caótico, desordenado, que se virava no improviso – distante da narrativa que se buscou impor durante a ditadura. E é justamente daí que nasce o humor, mesmo em meio à estrutura de um thriller. Ademais, há muitos reflexos do país de hoje em cada cena.
A obra vai além de uma ficção inventada — o roteiro também é de Kleber —, o e se conecta a uma pesquisa pessoal que ele vem desenvolvendo desde Retratos Fantasmas. Lá, o diretor revisitou suas próprias memórias, sua relação com o Recife e o desaparecimento dos antigos cinemas de rua.
Em O Agente Secreto, esse mergulho no passado continua, ainda que de forma mais indireta. Não é um filme sobre cinema, mas há nele uma investigação sobre a memória; com o argumento de que isso se trata algo muito mais nebuloso e impreciso do que costumamos acreditar.
A Bravo! conversou com Kleber em meio a suas viagens pelo mundo, entre uma exibição e outra. Durante a entrevista por Zoom, ele falava de um restaurante em Nova York, tentando driblar o barulho e movimento ao redor. Mesmo assim, manteve a clareza e a profundidade ao discutir seu processo criativo e as ideias por trás de O Agente Secreto.
Bravo!: Fiquei com a sensação de que é uma ideia que você vinha amadurecendo há bastante tempo. Queria que você contasse um pouco sobre essa trajetória e como surgiu essa história tão original.
Kleber Mendonça Filho: Acho que todo filme naturalmente passa por um processo de amadurecimento da ideia. Acho que o meu pior pesadelo seria investir tanto tempo em algo e depois perder o interesse, ou começar a enxergar fraquezas que me fariam cansar do projeto.
Isso aconteceu, na verdade, duas vezes. Existia um primeiro roteiro de Bacurau que, depois de uns dois anos, eu falei pra Juliano [Dornelles] e pra Emilie [Lesclaux] que não queria mais fazer. Tivemos que recomeçar do zero. Embora eu ainda achasse aquele roteiro “nada mal”, eu realmente queria tentar outra coisa. E foi o que fizemos.
E O Agente Secreto começou também como outro filme, com o mesmo nome. Eu não passei das 40 páginas e percebi que não estava mais interessado naquele roteiro. Então transferi O Agente Secreto para uma nova ideia, que foi se desenvolvendo naturalmente.
O roteiro também seria com o Wagner [Moura]. O desejo de trabalhar com ele já existia. Esse novo roteiro veio muito do desejo de fazer um thriller ambientado nos anos 1970.
E isso foi alimentado pelo processo de pesquisa e de imersão em Retratos Fantasmas, meu filme anterior. Acho que ele me conectou com o passado de uma maneira totalmente incrível, fascinante pra mim. Não só com meus próprios materiais, que venho guardando desde a adolescência, mas também com muita coisa que descobri indo ao arquivo público, consultando jornais antigos, principalmente do século XX.
B: E como foi a pesquisa para o filme?
KMF: A pesquisa acabou se afunilando mais nos anos 1970, porque naquela época eu era criança. E aí eu fui capaz de juntar as memórias pessoais infantis com o que estava no jornal. Essa confirmação — o fato preto no branco do jornal — gerou algo muito interessante na minha cabeça: coisas que eu lembrava de um jeito e o jornal mostrava de outro; datas que não batiam; detalhes que eu distorcia sem perceber.
Principalmente porque eu já tinha uma memória cinematográfica desde muito novo. Era uma criança muito voltada para o cinema. E também fui leitor de jornal desde cedo, muito por causa dos anúncios de cinema, que foram meu ponto de entrada nesse universo.
Acho que tem um conceito interessante de memória, que inclusive aparece no filme: a memória herdada. Não é a sua memória pessoal, são memórias passadas pra você por outras pessoas. Às vezes você acha que lembra, mas na verdade é algo que te contaram — pais, tios, amigos mais velhos, ou o próprio folclore da cidade. Cada cidade tem o seu. São Paulo tem o seu, Recife tem o seu, Barcelona, Londres, Sydney… cada uma tem seu universo próprio, formado pelas pessoas que a constroem.
Essa imersão na própria cidade foi algo que fiz muito em Retratos Fantasmas, e acabei transferindo aquele sentimento — e várias histórias — para O Agente Secreto. Por exemplo, a “perna cabeluda”, uma figura folclórica criada num certo estado de espírito do Recife, meio irreverente, lidando com a censura.
Foram anos de elaboração, quase dois anos de escrita de fato. Já disseram, em vários países e no Brasil, que ele tem uma estrutura de romance. E, inclusive, vamos lançá-lo agora pela Amarcor, selo da Record. O roteiro de O Agente Secreto vai ser publicado, e eu acho muito interessante essa leitura em papel, poder disponibilizar isso.
B: Que legal saber disso. E acho que você tem uma forma genial de introduzir todo o propósito do filme com aquela frase “O Brasil cheio pirraça.” De onde surgiu essa escolha?
KMF: Acho que foi uma maneira talvez literária, talvez poética, de sugerir a tensão entre o brasileiro que tem uma noção histórica do próprio país e o filme que fala desse momento, transformando isso numa série de atos de pirraça.
Queria evitar uma introdução mais formal, mais jornalística, do tipo: “1977. O regime militar já começava a desmoronar. As pessoas tinham sua liberdade tolhida.” É uma maneira possível, e grandes filmes começam assim; americanos, franceses, brasileiros. Mas eu achei que estabeleceria melhor o tom dizendo: “Nossa história se passa no Brasil de 1977, uma época cheia de pirraça.”
Gosto muito quando vejo o início do filme. Acho que ele desenvolve essa ideia, que depois é retomada pela fala de Dona Sebastiana, quando ela diz esperar que, no futuro, as crianças cresçam num país menos pirraça.
B: Logo nos primeiros dez minutos, fiquei com um sorriso no rosto, mesmo diante de momentos trágicos. É uma introdução muito gostosa de assistir. Você consegue trazer símbolos que fazem parte do nosso imaginário coletivo, do que é o Brasil. Como foi a escolha desses elementos?
KMF: Acho que a palavra-chave é justamente essa: quando você vai contar uma história que se passa em qualquer país — no meu caso, o Brasil — o filme precisa, antes de tudo, seguir a lógica desse lugar. E, se a narrativa se passa 50 anos atrás, é preciso considerar também a lógica daquele tempo. Às vezes, tenho a sensação de que alguns filmes de época são contados com a lógica de hoje.
A lógica de 50 anos atrás é, por exemplo: “Dona Sebastiana precisa dar um telefonema.” E ela responde: “Pode dar, contanto que não seja interurbana.” São esses pequenos detalhes que fazem parte da memória histórica — lembranças moldadas por uma tecnologia e um modo de vida que já não existem mais.
O estribo do Fusca, por exemplo, era onde as crianças se penduravam. Perigoso? Claro que sim. Mas era assim que vivíamos nos anos 1970, quando eu era criança. Tenho 56 anos hoje e lembro bem: o cigarro no cinema, o cigarro presente em todos os lugares.
Há também certas palavras que desapareceram, e com razão — a sociedade evoluiu, e muitas expressões foram deixadas para trás. Mas, no filme, elas reaparecem, porque essa aspereza faz parte da composição da época e da lógica do Brasil.
Dona Sebastiana, nascida em 1900, tem uma relação de proteção com o menino que acolhe em casa. Mas que relação é essa? Por que ele não vai à escola? Por que ela se alegra quando ele limpa o quintal ou pega uma manga? Não é uma relação moderna, mas é o Brasil. Um país profundamente complexo nas suas relações de raça, cor e pele. Tudo isso, acredito, precisava estar no filme, porque ajuda a construir o retrato social, humano e histórico do nosso país.
B: É, eu tenho a impressão de que a Sebastiana é uma das suas personagens preferidas.
KMF: De todo mundo… não importa o país.
B: Ela é uma personagem de um carisma raro. É difícil encontrar algo parecido, ainda mais interpretado por uma atriz com pouca experiência. Como foi o trabalho com a Tânia na preparação e na construção dessa figura? E até que ponto a personagem foi inspirada pela própria Tânia?
KMF: Na verdade, eu já tinha trabalhado com ela em Bacurau. Ela é uma das pessoas incríveis que ajudam a dar àquela comunidade uma sensação de verdade. É uma costureira, uma pessoa incrível. Ela me impactou, e nós sempre mantivemos contato.
Ela veio trabalhar comigo de novo, num filme muito especial chamado Seu Cavalcanti, do meu grande amigo e colaborador Leonardo Lacca. Ele me ajuda a dar conta de todo o trabalho. É alguém muito especial.
O que aconteceu foique escrevi o roteiro pra Wagner, Mas eu falo pouco sobre o fato de que também escrevi pensando em duas outras pessoas: o ator Udo Kier, que interpreta o alfaiate alemão, e Tânia Maria. Eu não conseguia não pensar nela. Tive uma experiência muito feliz com ela em Bacurau, e Dona Sebastiana era Tânia.
Em Nova York — durante a exibição da Academia — me perguntaram se ela improvisou muita coisa. E eu falei, pela primeira vez, que a improvisação já estava escrita no roteiro, porque eu já estava pensando nela. Não éque penseii “vou achar uma atriz” e a encontrei. Não, eu escrevi pra ela.
Então aquele jeito dela, aquele sarcasmo, aquela maneira despachada de falar, o carinho que ela tem, tudo isso já estava no texto. E eu falei pra ela: “Tânia, estou escrevendo uma personagem que eu gostaria muito que você fizesse. Será que você consegue?”
E eu tô muito feliz com o resultado. Ela já é uma estrela. Ela tem uma empatia gigantesca. Já há um universo “Sebastiana”, enfim.
B: E como você tem lidado com a expectativa em relação ao Oscar? Porque, querendo ou não, já virou parte do calendário do brasileiro?
KMF: Eu vou aonde o filme vai. O filme indo, eu vou atrás. Me sinto confortável com isso. Eu não me sinto tão confortável quando preciso fazer quase o papel de vendedor do filme. Isso eu não gosto.
E é o mesmo nas viagens. Tenho apresentado o filme, existe uma campanha, de fato, que a Neon desenhou. Tem sido uma parceria excelente, uma troca muito boa, uma compreensão mútua. E eu tô trabalhando para o filme, tentando ser o mais útil possível à divulgação, e também à divulgação do Brasil.
B: Você tá se sentindo um pouco diplomata, né?
KMF: É. É uma coisa que eu falava muito ano passado, quando via a Fernanda [Torres], o Walter [Salles], o Selton [Mello]— às vezes — representando o Brasil lá fora. É a cara do Brasil falando do Brasil, falando do cinema brasileiro. Me sinto muito bem com isso. E, olha, que sorte ter o Wagner Moura. O Wagner está fazendo a peça dele, uma adaptação de “Um Inimigo do Povo”, no Rio de Janeiro. Agora, em novembro, ele vem com tudo, para que a gente esteja junto na divulgação do filme.
Acho que existem duas expectativas em torno do filme: a do público brasileiro e a da realidade do circuito internacional. O longa tem sido muito respeitado. Mas é sempre bom lembrar que essa temporada de prêmios é da indústria dos Estados Unidos. Embora eu esteja sendo muito bem recebido lá, trata-se de uma premiação americana. Nosso filme é uma coprodução entre França, Holanda e Alemanha, então fazemos um trabalho de divulgação mais artesanal, como outros filmes estrangeiros também fazem.
B: Não tem como deixar de perguntar sobre a perna cabeluda do filme. Como isso nasceu no texto?
KMF: A ideia veio da história criada por dois jornalistas, Jota Ferreira e Raimundo Carrero. Jota Ferreira se dedicava muito a cobrir temas ligados à comunidade gay e à repressão policial contra trabalhadores da noite no Recife. A Perna virou um código pra falar da violência da polícia, do exército. Em vez de noticiar “A polícia atacou ontem”, ele escrevia “a Perna Cabeluda atacou ontem”. A expressão virou uma lenda urbana, absurda, engraçada e estranha. E pegou fogo. A história passou a ser tratada nos jornais como fato, não como fantasia. Isso é incrível.
Se você for à hemeroteca da Biblioteca Nacional ou ao acervo de Pernambuco e pesquisar entre 1970 e 1979, vai encontrar as matérias originais sobre a Perna Cabeluda. Minha mãe, na época, comentava: “Mas isso não faz sentido, está na página de polícia, não no suplemento literário. Se fosse fábula, estaria lá”. Essa confusão entre o fantástico e o factual sempre me fascinou; usar um elemento absurdo para falar da realidade é algo muito próprio do Recife, essa mistura de irreverência e transgressão.
Há muito tempo eu queria usar A Perna em um filme, e ela me deu a oportunidade de trabalhar com stop motion pela primeira vez, em um estúdio holandês. Foi um processo divertido, cheio de trocas.
B: Quando você mencionou a questão da memória e dos arquivos, achei interessante, porque mesmo revisitando o passado, o filme fala muito do presente. Ele não é literal, mas traz referências fortes à política, à violência e ao jornalismo de hoje.
KMF: Enquanto escrevia A Perna Cabeluda, percebi que tudo começa com uma imagem. Antes de qualquer coisa, vem a imagem.
As imagens de jornal também me interessam muito, porque representam algo que estamos perdendo: o papel, a fábrica de informações. E essas informações, nem sempre verdadeiras. Se você assistir ao filme novamente, vai perceber que tudo o que sai nos jornais ali é falso ou grosseiramente impreciso.
Eu trabalhei em redação e vi de perto como erros surgem. Às vezes por engano, incompetência, ou por escolha. Essa ideia da distorção da verdade está presente no filme. Assim como o personagem do delegado se vangloria das 91 mortes, quase com orgulho. Tudo isso faz parte dessa camada de reflexão sobre o jornalismo e a violência.
B: Eu só queria te fazer uma pergunta, um tanto ligada à sua última resposta — é mais uma curiosidade minha: o que te levou para o cinema vindo do jornalismo?
KMF: Acho que fui para o jornalismo para me sentir mais perto do cinema. Eu disse que tinha uma relação próxima com o jornal desde criança e minha porta de entrada pelo jornal foi a página de anúncios do cinema.
Participar da cultura, participar do cinema observando o cinema, escrevendo sobre cinema, relatando quando o cinema acontece, entrevistando quem faz cinema não é a mesma coisa que fazer cinema. Nunca me senti frustrado por isso, porque, desde muito jovem, eu queria fazer filmes; obviamente não é fácil. Houve um momento de enfrentar as dificuldades que são naturais ao sonho de fazer cinema.
Trabalhar como crítico foi importante: sempre achei que o trabalho do crítico era tentar entender o que a cultura está oferecendo. A crítica, para mim, era um relato histórico daquele dia; eu sabia que aquilo seria guardado. Foram anos muito importantes na minha vida e eu exerci isso com prazer.
A transição veio. Não sei se chegou a ser uma coisa planejada. Foi orgânica. Fui ganhando energia para outra coisa. Mas, numa parte final, eu sentia um cansaço grande, como se tivesse sido colocado na posição de máquina de opinião. Lembro que meu último dia foi numa sexta-feira e, no sábado, eu comecei a pré-produção de Som ao redor
B: Você tem algum ponto a mais que acha importante trazer e que pode ter ficado de fora?
KMF: Eu tô muito feliz com o lançamento no Brasil. Eu volto agora para o país para começar a reta final do lançamento. É um grande período, um momento importante para todo mundo que fez o filme — o Wagner, o elenco todo; eu amo todos eles e elas. É emocionante inclusive a montagem final, a apresentação dos personagens; é um grande momento. Estou super feliz. O trabalho está feito. Eu vou aonde o filme for.
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