Construindo personagens com Enrique Diaz
Ator, diretor e mestre em Literatura, Enrique Diaz tem passado as últimas décadas se dividindo em funções, projetos e personagens
Imperador Otávio Augusto, Chico Marruá, Eusébio Bezerra, Delegado Pedreira, Ringo Mello, Roberto Ibrahim, Gil Marruá, Timbó e tantos outros. O ator e diretor Enrique Diaz já foi muitos. Para ele, a representação é um ato familiar. Não apenas no sentido de dominar essa arte profundamente, mas também num aspecto mais literal, de uma paixão que entrou na casa da família Diaz e passou a fazer parte da vida de cada um dos seus irmãos.
Chico Diaz, o segundo filho, foi o primeiro a se envolver com o teatro. O caçula, Enrique, que até hoje é confundido com ele nas ruas, logo decidiu se arriscar numa aula de teatro e, daquele pequeno universo, nunca mais saiu. Desde pequeno, ele sentia que pertencia a mais de um lugar ao mesmo tempo. Deu provas disso mais adulto, quando tentou trilhar outros caminhos. Estudou Comunicação Social na PUC-RJ, mas a sorte parecia puxá-lo cada vez mais para as artes cênicas, até se tornar impensável uma vida fora dela. “Eu sempre escapava da ideia de fixar ou ficar preso a alguma coisa.” Anos mais tarde, escolheu voltar para a universidade para realizar o mestrado em literatura.
Da parte dos pais, não havia nenhum traço que parecia guiar os filhos para caminho das artes, exceto pelo olhar curioso e uma identidade multicultural. O pai, Juan Enrique, trabalhava para a OEA (Organização dos Estados Americanos), a mãe, Maria Cândida, era tradutora e professora universitária. O trabalho de Juan fez com que a família percorresse país a país, e fosse pegando para si um pouco de cada cultura. Embora Enrique tenha nascido no Peru, sua experiência viajando pela América do Sul foi menor do que a dos irmãos, pois quando chegou a sua vez a família se instalou no Rio de Janeiro e ali ficou. “Tenho a impressão de que quando chegamos no Rio foi de ‘cada um se vira’. Meu pai estava sempre viajando, minha mãe trabalhava muito e eles nunca se opuseram às nossas escolhas. Cada um seguiu a própria paixão.”
Enrique é uma das crias do Tablado, importante escola de artes e improviso no Rio de Janeiro, que formou gerações de artistas consagrados. Mas a sua coroação no teatro se deu com a criação da Cia dos Atores, no início dos anos 90, numa época marcada pelo surgimento de importantes grupos teatrais, que seguem fazendo carreira até hoje. Fizeram parte da Cia dos Atores César Augusto, Marcelo Olinto, Marcelo Valle, Gustavo Gasparini, Bel Garcia, Suzana Ribeiro, Drica Moraes, além do próprio Enrique. A montagem da peça Marat/Sade, de Peter Weiss, foi o pontapé que precisavam para fundar a companhia. “Quando começamos a pensar em montar outra peça, A Morta, de Oswald de Andrade, eu disse aos outros atores que deveríamos assumir logo aquilo.“
“Eu sempre escapava da ideia de fixar ou ficar preso a alguma coisa”
Enrique Diaz
Em poucos anos, a companhia ganha notoriedade. Havia uma tentativa do grupo de descentralizar as funções e fazer da sala de ensaio um espaço de criação. Em 1995, ao lado de Filipe Miguez, estreou a peça Melodrama. E com ela, receberam o Prêmio Shell de melhor autor, diretor e de figurino. Aquele namoro virou um casamento que, para Enrique, durou 24 anos, período em que ocupou, principalmente, a função de encenador. A durabilidade do grupo, a seu ver, tem a ver com sorte, mas também de construção e compromisso coletivo. “Envolve uma capacidade de diálogo, de escuta, de criar juntos e não estabelecer regras rígidas demais, que é um mal que acomete muitas companhias e que não permite os atores a fazerem mais nada.”
Em 2012, decidiu dar um tempo da direção. No mesmo ano, encenou a peça A primeira vista, do autor canadense Daniel MacIvor, com as atrizes Drica Moraes e, a sua atual esposa, Mariana Lima. Ainda no começo dos anos 2000, fundou com Mariana o Coletivo Improviso. “Eu, praticamente, parei de dirigir em determinado momento porque fui ficando cansado da expectativa, que eu mesmo colocava, da função de poder. Não me sentia um diretor profissional. Nesses últimos anos tenho gostado mais de atuar do que dirigir.”
Nas últimas décadas, Enrique tem se dedicado mais à atuação e aos trabalhos na televisão. Longe de ser um lugar novo, o aprendizado de ator veio da observação, da longa experiência dirigindo outros atores. “Dirigir é ver o outro em processo. Você vê os modos, os estilos, as limitações. E sei que muitas das coisas que fiz como ator foram frutos da experiência na direção. Minha maior fonte de aprendizado foi observar os atores”, ele diz.
Ainda novo, participou de clássicos nacionais, como O Auto da Compadecida e Carandiru. E também tem deixado sua marca na televisão, com trabalhos como Justiça, Onde Nascem os Fortes, Amor de Mãe, Pantanal e Mar do Sertão.
A busca pelo aprimoramento é contínua. Mas vez ou outra é provocado a voltar aos palcos. Em 2022 recebeu um convite de ouro: dirigir quatro primorosas atrizes na peça de reabertura do Teatro Poeira, no Rio de Janeiro. A peça era O espectador condenado à morte e o elenco era composto por ninguém menos do que Ana Baird, Andrea Beltrão, Marieta Severo e Renata Sorrah. “Tenho uma relação com Andrea e Marieta de mais de 30 anos. A primeira peça comercial adulta que fiz foi ao lado delas.”
Diante do desafio, decidiu dividir a direção com Márcio Abreu. Gesto que lhe tirou o peso da própria expectativa de ser aquele que orquestra e comanda as decisões do espetáculo. O deslocamento criativo é, justamente, aquilo que o impulsiona. Por isso, nunca gostou da ideia de se fixar em apenas um lugar ou função. “Teve um significado muito forte [essa peça]. Pelo fato de ser com elas e ser no Poeira, que é um lugar importantíssimo no panorama cultural. Foi um processo muito vivo, de muita criação, proposições e debates. Estávamos debatendo a situação do país, também o corpo delas no espaço e também a própria criação no lugar do teatro. E sobre o que é o político hoje.”
“Dirigir é ver o outro em processo. Você vê os modos, os estilos, as limitações. E sei que muitas das coisas que fiz como ator foram frutos da experiência na direção”
Enrique Diaz
Ao longo de sua trajetória, com tanto papéis acumulados, descobriu que a sua função enquanto ator, quando constrói um novo personagem, é descobrir um novo ritmo, que pode ser mais ou menos parecido com o seu. “Tenho um ritmo que é o meu habitual mais viciado, que é um ritmo de resposta aos estímulos da vida e ele está lá estabelecido. Quando consigo olhar para isso e perceber que muitas coisas do meu comportamento são determinadas por esse ritmo, eu abro mais possibilidades de fazer um personagem diferente de mim.”
Foi a partir dessa particularidade que compôs seu último personagem, o Timbó, na novela Mar do Sertão. E, embora, a realidade de vida fosse completamente distinta daquele personagem, havia uma similaridade de ritmos que o permitiu compor aquela figura. “Diria que ele tinha um ritmo mais próximo do meu do que longe, ele repetia uma coisa ou outra coisa que eu já fiz lá atrás, mas ele tinha a originalidade dele.”
Após quase um ano de gravações, Timbó virou um tipo de segunda pele de Enrique, uma que ele tem tentado lavar para poder construir novas camadas de histórias e personagens que estão por vir.