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Entre memes, curiosidade e justiça: o jornalismo emocional de Chico Felitti

Do fascínio por uma casa misteriosa às mudanças na lei, Chico acompanha os impactos de sua investigação em "A Mulher da Casa Abandonada"

Por Humberto Maruchel
27 set 2025, 09h00
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Chico Felitti, criador do podcast "A mulher da casa abandonada" (Prime Video/divulgação)
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Para um jornalista, nenhuma curiosidade é totalmente despretensiosa. Algumas se limitam a um apetite por conhecimento e não exploram além do esperado. Outras, porém, podem ir muito além e, de repente – por que não? – causar comoção nacional, gerar efeitos práticos na aplicação da lei e até cruzar fronteiras, provocando impactos fora do país. É nesse contexto que surge o nome de Chico Felitti, que alcançou esse tipo de repercussão com o podcast A Mulher da Casa Abandonada, recentemente adaptado para uma série documental do Prime Video, dirigida por Katia Lund. A produção investiga o caso real de Margarida Bonetti, acusada de manter ilegalmente a empregada doméstica Hilda Rosa dos Santos nos Estados Unidos.

Apesar da seriedade de muitas de suas investigações, Chico foge ao estereótipo do jornalista tradicional. Bem-humorado, entusiasta de memes e fascinado por histórias absurdas (e cachorros), ele conquistou leitores ao se colocar como personagem dentro das próprias narrativas. Ganhou até o apelido de “Scooby Doo do Higienópolis”, já que a história de Margarida começou em um casarão no bairro. Essa abordagem permite que o público se identifique com ele, compartilhando sua curiosidade e a comoção diante das descobertas, fugindo do estilo jornalístico tradicional, pautado pela completa neutralidade e frieza.

Para Chico, a resposta emocional é inevitável e guia os projetos nos quais ele deseja se envolver, investindo tempo e energia naquilo que considera realmente relevante. Como resultado de sua investigação, houve um aumento de 123% nas denúncias de casos relacionados a trabalho análogo à escravidão, além de impactos concretos na legislação americana.

À Bravo, o jornalista falou sobre a série, e seu jeito de conduzir as histórias que capturam sua atenção.

Oi, Chico. Agora você mudou de lado, né? Você é pessoa que dá entrevistas. 

É… É estranho, porque quando essa coisa muito grande de streaming tem uma estrutura de guerra, a gente vira meio uma peça de uma engrenagem numa máquina muito maior. 

Sua vida deu uma reviravolta depois do podcast A Mulher da Casa Abandonada, ou não?

Não, acho que, na prática, não muito. Eu continuo fazendo a mesma coisa. Acho que só agregou mais coisas, só passei a ter outro tipo de trabalho que até então eu não tinha.

E agora com a série, você sente que a história ganha uma outra perspectiva, consegue se completar? O que você achou?

Sim. Sem dúvida nenhuma. Assim, acho que o podcast era uma história de busca. Era história de uma surpresa: eu fiquei fascinado com a casa, depois descobri que tinha uma pessoa morando lá dentro. Achei que eu fosse contar a história dessa pessoa e que seria uma história melancólica e meio lúgubre. E, por acaso, descobri que essa pessoa era procurada por acusação de um crime nos Estados Unidos. Então era muito mais a história da busca em si do que sobre o caso.

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E agora a série bate de frente com o caso, tanto que grande parte dela se passa nos Estados Unidos, esmiuçando o caso e mostrando como ele foi importante — algo que eu não tinha consciência no podcast. A denúncia da Hilda e a coragem dela de depor numa Corte Federal Americana mudaram a lei nos Estados Unidos e pautaram uma nova diretriz da ONU. Então, essa experiência de trombar com uma vizinha excêntrica numa casa que despertou minha curiosidade, eu não fazia ideia que reverberaria até uma lei federal americana e uma diretriz da ONU.

O que aconteceu? Qual foi a mudança legislativa?

Mudou uma lei bipartidária — tanto dos republicanos quanto dos democratas — que alterou a concepção de tráfico humano internacional nos Estados Unidos. No caso da Hilda, tanto Margarida quanto Renê Bonetti não foram processados por submeter alguém a trabalho escravo, porque ela estava lá ilegalmente. O crime do qual foram acusados foi de manter uma pessoa ilegalmente nos Estados Unidos, e o Renê foi condenado por isso.

Que é uma coisa que até um agente do FBI comenta: “Eu não posso dizer que acho justo, mas era uma acusação que cabia na lei americana.” Acabou indo muito além do que eu imaginava.

E foi mérito da Katia Lund e da equipe de pesquisa, que foram várias vezes aos Estados Unidos e esmiuçaram tudo. Uma pesquisa profunda, com entrevistas muito mais detalhadas do que eu tinha feito na época do podcast. Naquele momento, eu era um repórter com passagem de classe econômica paga do meu próprio bolso e cinco dias nos Estados Unidos para resolver essa parte americana.

E dessa vez, qual foi o seu papel no documentário?

Eu sou produtor executivo e consultor criativo. A Katia, além de diretora, também é produtora executiva. Ela dirige os episódios, supervisiona o roteiro e foi para a rua fazer tudo.

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E muita coisa apareceu depois do podcast?

Então, eu conversava com a Katia, com as pesquisadoras, com as roteiristas, e falava: “Tem um moço jovem de Campinas que me mandou mensagem dizendo que a Margarida morou na casa dele por 10 anos no bairro periférico de Campinas. Eu acho improvável, mas esse cara tem informações que batem. Vou a Campinas entrevistá-lo, querem ir junto?” E eles iam. Isso entrou na série, por exemplo.

Então, eu fazia meio as pontas que tinha, ajudava com contatos e pontos que eu tinha, mas quem apurou propriamente foram a Katia, a Mari Paiva e a equipe deles.

Foi muito difícil passar esse bastão?

Não. Eu sou muito consciente sobre o que gosto de fazer e o que consigo fazer. Eu gosto de escrever livro e podcast, ponto. Então, se vão adaptar meu livro ou podcast, eu preciso confiar e admirar a pessoa. A partir do momento que apertamos a mão e vai rolar a adaptação, eu quero que a pessoa brilhe. E eu não teria como dizer nada para Katia Lund; eu sabia que ela faria um documentário muito melhor do que eu seria capaz.

E o sucesso do podcast mudou a forma como você enxerga seu papel como jornalista?

Na essência, não. No dia a dia, não; talvez no “atacado” tenha mudado. Foi a primeira vez que escrevi algo que fez diferença ampla. Já tinha percebido mudanças com outros casos, como o perfil do Ricardo Corrêa (que resultou no livro Ricardo e Vânia e no podcast “Desconhecido”), mas o podcast (A Mulher da Casa Abandonada) multiplicou os efeitos: aumentou denúncias de suspeita de trabalho análogo à escravidão no Brasil.

E se uma dessas suspeitas se confirmou e uma pessoa foi resgatada de situação degradante, para mim já valeu todos os perrengues e todo o trabalho.

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Você, enquanto repórter investigativo, mudou algum cuidado no dia a dia?

Não muda absolutamente nada. Todo mundo tem meu celular, todo mundo sabe onde estou. Alguns colegas dizem que eu deveria ter celular só para investigação, outro só pessoal, não levar pessoas à minha casa. Mas para mim, minha vida se fundiu; pessoa jurídica e física são uma só.

Quais cuidados você entende que precisa ter ao investigar pessoas vivas e controversas, como no caso da casa da Margarida?

Eu trabalho com equipe e não vou sozinho a situações de risco. Por exemplo, quando fui encontrar Hanif, protagonista do último podcast, em Portugal — que já tinha destruído um carro com bastão de beisebol e ameaçado pessoas com arma — eu fui acompanhado.

Deixo o resto da equipe saber onde estou e o endereço. Mas, no final, qualquer outro tipo de resguardo é ilusório. Se algo vai acontecer, vai acontecer. Quando você escolhe fazer esse trabalho, precisa admitir que há risco; alguns são incontornáveis.

E aqui no Brasil, acompanhou mudanças, impactos, aumento de denúncias?

O número de denúncias foi o principal impacto. Tem também a discussão legislativa: na Câmara e no Senado há comissões para tornar o crime de submeter alguém a trabalho análogo à escravidão imprescritível. Isso é crucial, porque Margarida Bonetti passou quase 10 anos em Campinas com outro nome, perto do prazo de prescrição do crime no Brasil.

Se o crime não prescrever, alguém poderia responder mesmo depois de 12 anos. Para o público, isso causa indignação, dizer que ela nunca responderá pelas acusações no Brasil. Nos Estados Unidos, ela continua respondendo, porque não prescreve.

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E você teve contato com ela depois disso tudo?

Tive. Toda equipe inteira teve contato. É meio peculiar, porque na série ela não aparece tanto, aparece a entrevista que fiz para o podcast, mas talvez dê a impressão de que “ah, ela não quis falar”. Ela falou com toda a equipe: com a direção, com as pesquisadoras, com as roteiristas, qualquer um que ia à casa falava com ela. A questão era: o que falar com ela vai agregar à história que a gente não tenha? E acho que a ideia era trazer uma perspectiva nova.

A partir do momento que a Hilda decide falar, você tem uma protagonista. Você tem um personagem inacreditável, que é uma vítima — mas que hoje em dia não é mais vítima, não está mais nessa situação, já conseguiu construir uma rede de afetos e uma vida funcional — e que fala: “Eu quero contar minha história para ajudar outras pessoas”, um depoimento em primeira mão.

E daí decidiu-se que não era o caso de insistir tanto com a Margarida, de fazer uma nova entrevista com ela, porque ela repetia exatamente as mesmas coisas que já tinha dito para mim. E você vê na série que muitas dessas coisas não se confirmam. Muitas delas contradizem o que o FBI diz, o que a Justiça americana diz, todas as evidências e o relato da própria Hilda.

Tem uma coisa muito legal no seu trabalho, que talvez muitas pessoas que acompanham se identifiquem: é o seu engajamento emocional com as narrativas. Isso cria algum desafio ou muda a forma como você trabalha?

É, eu acho que é uma deficiência, na realidade. É uma falha, aquilo que eu estava dizendo: de não conseguir me separar do meu trabalho. É realmente obsessivo e muito próximo. Se estou numa história, estou nessa história de corpo e alma. Eu vivo isso: o fim de semana é isso. Passo a conviver com as pessoas que estou entrevistando, passo a viver mais a vida delas do que a minha.

Ah, eu acho que pode ser um ponto de conexão, porque meu interesse pode ser transmitido. Talvez. Por exemplo, essa história da casa só começou por causa de uma curiosidade doente. Geralmente, uma pessoa olharia e falaria: “Ah, que curiosa essa casa. Sigo adiante, vou tomar meu café”. Não. Eu sento lá e fico 72 horas na frente da casa.

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Mas você sempre foi assim, ou o jornalismo assentou essa postura?

Não, sempre. Eu não sabia que isso podia ser uma profissão. É meio um traço de personalidade da minha família. Minha mãe, por exemplo, tem esse interesse investigativo. Eu fui na casa dela recentemente, e ela veio me contar que desvendou como funciona a gangue da bicicletinha no bairro dela, que ela chama de oficina mecânica, onde acredita que os ladrões vão desovar celulares. Ela passou tardes investigando na janela, assim.

Isso estabelece limites sobre em quais histórias você está disposto a entrar?

Sim, vira uma relação quase monogâmica. Não consigo ter dois casos grandes ao mesmo tempo. Seria até melhor em alguns aspectos da minha carreira se eu conseguisse fazer dois podcasts ou dois livros ao mesmo tempo, mas não consigo. Tem que ter uma ligação real com o caso, uma conexão. Se não, não dá certo.

E isso não tem muito fim Você precisa estabelecer quando sua investigação encerra. Como você sabe isso?

Eu tenho uma lista de dúvidas que preciso me empenhar para resolver. Também sou muito bom com prazos. Se tenho seis meses ou um ano para fazer algo, me organizo. Uma história não acaba nunca; você continua investigando. Esta semana, por exemplo, falei com pessoas que estudaram no Atelier do Centro, outro podcast meu.

Ah, falei com a Vânia Munhoz, do Ricardo e Vânia. Contar a história não termina nunca, e o contato não termina nunca. Mas a maneira de contar — livro, podcast ou documentário — tem prazo, e é saudável. Depois, se algo surgir em relação ao assunto, não penso nisso; para mim, a história termina, mas entendo que precisa terminar para virar um produto cultural.

Você lembra qual foi sua primeira matéria investigativa?

Ah, deixa eu pensar… Na minha primeira semana na Folha, trabalhei no Folha Teen. Por conta própria, fui para Ilha Solteira, que tinha estabelecido toque de recolher para menores de 16 anos. Tinha 19, 20 anos e decidi: “Quero ir para lá”. O título da matéria era Idade Sitiada. Lembro que uma das chefes disse que faltava um “C” na capa para Cidade Sitiada. Mas daí ela sacou e deu um sorrisinho. Eu me senti esperto naquele momento.

E você também teve mudança ao entrar na história de pessoas que causavam curiosidade positiva e depois figuras controversas, como João de Deus e Margarida?

Sim, é uma loucura. O que mais gosto são projetos que nascem de admiração. Ricardo e Vânia, Rainhas da Noite… Já João de Deus foi um desafio, porque me forcei a fazer uma investigação séria sobre um assunto que não era do meu campo de admiração. Queria provar que conseguia. É um trabalho decente, bem apurado e interessante, mas não fala com minha alma.

E, por incrível que pareça, A Mulher da Casa Abandonada nasceu de um lugar de admiração. Antes de descobrir o crime, achei que a senhora estava defendendo algo, com alguma honra, mesmo em sua decadência familiar. Depois, a história mudou minha relação com a investigação. Hoje percebo que só sigo se tenho interesse legítimo e alguma admiração pela pessoa, mesmo em casos complicados.

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