O Segredo de Brokeback Mountain, segundo Almodóvar
Em "Estranha Forma de Vida", o cineasta espanhol oferece uma resposta ao filme de 2005 dirigido por Ang Lee
Quando o filme O Segredo de Brokeback Mountain, de 2005, era apenas uma ideia, a sugestão inicial foi de que Pedro Almodóvar deveria dirigi-lo. Já em processo de produção, o cineasta espanhol foi formalmente convidado, mas decidiu que não deveria se envolver. Por muitos anos, aquela parecia ter sido uma obra esquecida por Almodóvar. No entanto, havia uma passagem no roteiro que ficou ecoando na mente do diretor. Foi apenas em 2020 que ele decidiu fazer algo com aquilo, então escreveu o curta-metragem Estranha Forma de Vida.
O roteiro e a direção de O Segredo de Brokeback Mountain, adaptação do romance de Annie Proulx que narra o amor secreto entre dois cowboys nos anos de 1960, em Wyoming (EUA), foram entregues a Ang Lee e o filme se tornou um marco no cinema. Com Jake Gyllenhaal e Heath Ledger nos papéis principais, a produção foi uma das primeiras obras mainstream a dar destaque a um romance gay, chegando até mesmo a ser indicada a várias categorias no Oscar, e garantindo à Lee o troféu de melhor direção em 2006.
Em uma breve passagem do filme, Jack Twist (Jake Gyllenhaal), personagem mais sensível e direto em relação a seus sentimentos, propõe a Ennis del Mar (Heath Ledger) que eles se mudem para um rancho e vivam juntos. Durante décadas, os dois amantes se encontravam escondidos em Brokeback Mountain, o mesmo local onde se conheceram e trabalharam juntos. Então, Ennis pergunta: “O que dois homens fariam no oeste, trabalhando em um rancho?”. E isso acaba selando o distanciamento entre os dois.
“De muitas maneiras, meu filme responde a essa pergunta”, disse Almodóvar em uma entrevista ao jornal The New York Times. O curta, que estreou nos cinemas no último dia 14, traz Pedro Pascal e Ethan Hawke vivendo, respectivamente, o rancheiro Silva e o xerife Jake. O romance tem início com o fado homônimo “Estranha Forma de Vida”, de Amália Rodrigues, interpretado pelo personagem de Manu Ríos em sua única aparição.
Assim como em Brokeback Mountain, os protagonistas tiveram um caso secreto 20 anos antes, mas acabaram se separando. Já maduros, se reencontram. Silva supostamente volta ao condado de Bitter Creek em busca de um médico para ajudá-lo com suas dores nas costas. Em alguns minutos, a conversa é consumida pela tensão mal resolvida entre os dois. Poderiam ter tido uma vida juntos, mas a convivência foi interrompida pelo medo do preconceito e de suas consequências.
Estranha Forma de Vida tem muito em comum com O Segredo de Brokeback Mountain, mas não compartilha a mesma história. É como se Almodóvar desse um vislumbre de como teria sido seu filme, a linguagem que utilizaria e, quem sabe, até mesmo os desdobramentos do romance trágico, mas o drama é outro. O curta não poderia ser uma continuação do filme de 2005, já que Jack é assassinado. Na obra de Almodóvar, os protagonistas apenas tomaram rumos distintos. Seu filme é violento, mas muito menos brutal do que aquele criado por Ang Lee.
Essa não foi a primeira grande obra de Hollywood rejeitada pelo diretor, que já havia deixado de lado Mudança de Hábito (1992) anos antes. Em 2020, Almodóvar rompeu o silêncio sobre sua recusa e disse ao portal IndieWire que tomou a decisão de não dirigir Brokeback Mountain porque estava certo de que não teria a liberdade criativa que gostaria. “Acho que Ang Lee fez um filme maravilhoso, mas nunca acreditei que eles [estúdios de Hollywood] me dariam total liberdade e independência para fazer o que eu quisesse”. O que ele teria feito diferente? Uma das mudanças seria a quantidade de cenas de sexo. Neste ponto, a obra de Ang Lee não foi muito precisa, em sua opinião. “A relação entre esses dois caras é animalesca. Começa como um relacionamento físico. O golpe do filme acontece quando eles precisam se separar, e Heath Ledger descobre que não consegue pensar em ir embora. Essa é uma descoberta forte. Mas até aquele momento é animalesca, e para mim era impossível ter isso porque era um filme de Hollywood. Você não poderia ter esses dois caras transando o tempo todo”, declarou Almodóvar ao site.
Pode soar como uma surpresa, mas tampouco o novo filme de Almodóvar investe em cenas sexuais. Há um encontro que se desdobra em uma transa, mas esse é um aspecto sutil e secundário. Um dos motivos se deve ao momento de vida dos personagens retratado em cena. “Acho que isso é, em parte, um reflexo da minha idade. Se eu tivesse escrito essas histórias quando tinha 25 anos, provavelmente teria escrito uma história sobre dois cowboys de 25 anos”, disse ao The New York Times.
Em Estranha Forma de Vida, na manhã seguinte ao encontro, Jack demonstra arrependimento, enquanto Silva busca uma aproximação. Logo, um dos motivos do retorno do rancheiro é revelado: seu filho, Joe (George Steane), está prestes a ser acusado de ter assassinado sua amante e o xerife assegura que ele próprio irá atrás do suposto assassino. Então, a história segue uma trama paralela, em um clima de faroeste, com direito a flashbacks de como o caso entre os dois começou.
O grande mérito do curta está em vê-lo como um poema inspirado em outro romance. Certamente, a produção funcionaria por si só, mas ela ganha em potência quando analisada pela perspectiva de um filme-resposta a outra obra. Isso não é novidade no cinema. Há rumores de que obras de grandes diretores como Spike Jonze, em Her, e Sofia Coppola, com Encontros e Desencontros, foram feitas como uma espécie de diálogo não apenas entre os enredos, mas também entre os dois criadores.
Produzido por El Deseo, Estranha Forma de Vida investe fortemente na estética, desde o cenário até os figurinos desenhados por Anthony Vaccarello, diretor criativo da grife Yves Saint Laurent. Um dos aspectos que ganha evidência no curta é o uso de cores contrastantes, típico da linguagem de Almodóvar. Enquanto o filme de Ang Lee é tingido com tons de azul e cinza, reforçando o frio da região, a obra de Almodóvar é avivada com tons mais quentes, aludindo também ao calor do deserto (o curta foi filmado no deserto de Tabernas, província de Almeria, na Espanha). Sem falar na trilha sonora, marcada por dedilhados de violão, que estão presentes nas duas produções. Em Brokeback Mountain, a composição foi criada por Gustavo Santaolalla, enquanto no curta de Almodóvar, as músicas são de Alberto Iglesias.
Trata-se, acima de qualquer coisa, de um filme que fala sobre a indústria do entretenimento e sobre as mudanças no perfil do que pode ou não ser representado nas telas. Em 2005, o filme de Ang Lee chamou atenção pela ousadia do enredo, embora fosse discreto nas cenas de sexo. Além disso, foi criado em um momento em que a maioria dos filmes queer tinha um final trágico.
Mais de 20 anos depois, o preconceito ainda é uma realidade. Há países que criminalizam a homossexualidade ou até preveem a pena de morte. Por outro lado, histórias diversas com personagens queer têm sido cada vez mais presentes. Talvez em 2005 não fosse possível uma série como Heartstopper, que retrata o romance leve entre dois adolescentes, um jovem gay e outro bissexual, quase sem outros conflitos além da descoberta da sexualidade. Veja bem: isso não oferece uma resposta à altura à violência que ainda persiste, embora sinalize uma mudança cultural que começa a se disseminar.
É provável que, com Estranha Forma de Vida, Almodóvar queira mostrar o quanto a realidade pode mudar em 20 anos. No Festival de Cannes deste ano, onde estreou, o diretor espanhol sinalizou que este filme pode ser o prelúdio de uma história maior em desenvolvimento. Ainda é uma estranha forma de vida, mas já não mais tão estranha. No fim do que pode ser apenas uma introdução de outros filmes, Silva, de Estranha Forma de Vida, oferece uma resposta à pergunta de Ennis, de Brokeback Mountain: “O que dois homens fariam no oeste, trabalhando em um rancho?” A resposta é muito mais simples do que poderiam imaginar.