Everlane Moraes e suas revoluções
Estreante na Globo comandando um episódio de "Histórias Impossíveis", diretora surpreende com narrativas e práticas de vanguarda
Há algum tempo temos refletido sobre o lugar da representação e da comunicação na nossa sociedade e educação. Mais especificamente movimentos sociais organizados têm conquistado diretos e espaço para avançar sobre aquilo que tange suas representações. Do conceito de lugar de fala elaborado pela filósofa Djamila Ribeiro à elaboração e apresentação de de justas representações, passamos e estamos passando por um longo e não-linear percurso. Como tudo o que nasce, esse diálogo também está submetido a passar por etapas importantes a fim de avançar em amadurecimento.
Passamos, por exemplo, pela concepção de que a representação em si era tudo. Hoje caminhamos em direção ao seu fundo, buscamos pela forma como tal figura é representada, qual a sua narrativa. Estamos começando a compreender que estar não é suficiente, é necessário ser. Ou seja, é necessário prestar atenção para que a representatividade em uma obra se faça de forma coerente com suas etapas de criação e produção, e não apenas com o que está diante das câmeras.
Everlane Moraes é uma pioneira do nosso tempo também nesse sentido. Cineasta com especialização em Documentários pela Escuela Internacional de Cine y TV (EICTV, Cuba) e formanda em Artes Visuais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Everlane compôs uma filmografia farta em documentários. Agora “estreia” na ficção participando na co-direção da série Histórias (Im)possíveis, criada e escrita por Renata Martins, Grace Passô e Jaqueline Souza. A produção é feita por Leilanie Silva e a direção artística é assinada por Luísa Lima, quem co-dirige todos os episódios da série junto com um time de diretores formado por: Graciela Guarani, Thereza Médicis e Fábio Rodrigo. A co-direção do primeiro episódio, que foi ao ar no último dia seis de março e está disponível no Globoplay, ficou a cargo de Everlane Moraes. O segundo episódio da série deverá ir ao ar no próximo dia 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas.
Embora em conjunto, sua estreia não está entre aspas por essa razão. Everlane há muito vem explorando o rompimento das fronteiras entre documentário e ficção. Na sua filmografia, curtas como o fidagal La Santa Cena (2016), o fabuloso Aurora (2018) e o merecidamente reconhecido Pattaki (2019) já foram definidos pela própria diretora como “doc-fic”. Também seus demais curtas alimentam a discussão e chegam a abalar essa muralha há muito contraproducente.
O Cinema Nacional felizmente tem realizado, ou tornado a fazê-lo, algumas obras que se posicionam nesse limiar entre documentário e ficção. Para citar algumas, em ordem de proximidade com o limiar: 5 Casas (Bruno Barreto, 2021), O Território (Alex Pritz, 2022), Jogo de Cena (Eduardo Coutinho, 2007) e Mato Seco em Chamas (Adirley Queirós e Joana Pimenta, 2022). Percorrer o istmo entre documentário e ficção, seja com o uso de elementos no roteiro, na atuação ou em todo o filme, já é algo que vem sendo feito e representa uma parte importante daquilo que de novo e particular nosso cinema pode vir a oferecer e usufruir.
O trabalho feito pela Everlane Moraes agrega elementos tradicionalmente dados à ficção a documentários que são como uma lupa apontada para questões, presenças e narrativas ordinárias, cotidianas como, por exemplo: a história da arte na vida (ou da vida na arte) do seu pai que é artista visual (Conflitos e Abismos: A Expressão da Condição Humana, 2014); a oferenda feita por uma família (La Santa Cena, 2016); a expressão estética de quem passa e/ou vive pelas ruas de Havana (Allegro Ma Non Troppo: la sinfonía de la belleza, 2016); a história da beleza na vida de mulheres pretas (Aurora, 2018). E essa lupa com que ela apresenta essas histórias é farta em intervenções de poesia e surrealismos. Porque poder sonhar é também se envolver em beleza. E beleza permeia os sentidos de uma plena humanidade.
E mesmo quem não tiver a chance de se deleitar com toda a filmografia da diretora, poderá perceber que Everlane Moraes tem uma marca: apresentar histórias de pessoas pretas, junto a elas que, no caso, não raro são mulheres. Everlane orquestra a apresentação dessas histórias e nelas tece a representação das pessoas pretas de forma a garantir-nos o direito a uma projeção que perceba, respeite e destaque nossa humanidade. Ela não busca colocar-nos enquanto seres universais e adeptos à lógica e estética que já nos é excludente desde a sua implementação. O que a diretora faz é, repito, tecer a representação e apresentação de corpos pretos de forma a apresentar-nos enquanto pessoas que têm iguais sonhos, direitos, complexidade, belezas e tudo o mais que é possível ter em todos os âmbitos de cada particular universo. Essa é uma mensagem presente em toda a sua filmografia e também, até muito mais nitidamente, no primeiro episódio da série Histórias Impossíveis, dirigido por ela e disponível no Globoplay. Não só a representação mas também a narrativa e o formato de produção são determinantes para alcançar esse glorioso objetivo.
Há também um longo processo prático e teórico percorrido pela diretora até chegar à apresentação de um conteúdo artística, política e economicamente autêntico e coerente. Everlane Moraes propõe uma forma mais humana e relativamente rara de produção. Suas iniciativas vão desde exigir, quando possível, mais tempo no set de filmagem para se relacionar calma e profundamente com colegas, trabalho etc; até a busca do estabelecimento de uma relação mais responsável e “não-extrativista” com as pessoas que, em algumas vertentes, chegam a ser denominadas “objeto do documentário”. Everlane sabe e, enquanto professora ensina, que devemos tomar cuidado e prestar atenção àquilo que existe antes do filme e continuará a existir depois dele; que nem tudo deve ou precisa ser mostrado para ser compreendido; que é importante reutilizar e traçar novos significados para algumas coisas ou ideias; que Cinema é mais processo do que resultado, e é sobretudo projeção.
São ideias que podem parecer meramente teóricas ou artísticas, mas não. Nas mãos e na mente de Everlane Moraes, essas ideias encontram os mais amplos e humanos sentidos porque praticadas de forma coerente, digna e edificante. Atravessando as barreiras entre documentário e ficção, realismo e surrealismo, representação e narrativa, frente e atrás das câmeras, ideal político e prática artística, Everlane se apresenta como o Sol sobre a estrada que finalmente podemos percorrer.