Filme “Mais Pesado é o Céu” é uma alegoria poética de um Brasil em ruínas
Drama que estreou nesta quinta (7) retrata não só os males sociais, mas também a esperança de um futuro incerto
O premiado filme cearense “Mais Pesado é o Céu”, finalmente poderá ser visto pelo público nos cinemas nacionais a partir desta semana. Dirigido por Petrus Cariry, a narrativa conta a história de Antônio (Matheus Nachtergaele) e Teresa (Ana Luiza Rios), que pegam a estrada na busca por reconstruir a vida. No caminho, os dois acolhem um bebê abandonado e formam uma família improvável.
A trama reúne metáforas sobre as mazelas de um Brasil imerso na crise moral e política. Isso porque o filme foi pensado em 2017, ano seguinte do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. As filmagens, por sua vez, aconteceram em 2021 durante a pandemia de Covid-19. Para Cariry, todas as incertezas da época afetaram o projeto: “O filme foi ficando denso por causa das questões extra-roteiro. O país estava em ruínas. Esses fatos foram criando essa grande alegoria da busca de um lugar que não existe além da nossa memória.”
Temas universais, como solidão, afeto, maternidade, solidariedade e esperança aparecem nas sensações e gestos de cada personagem. A ficção não preenche o espectador com um final feliz e bem amarrado. Pelo contrário, faz surgir mais dúvidas do que respostas – e isso não é ruim, já que elas reverberam junto com uma fotografia deslumbrante.
Exibido em 20 festivais, o longa conquistou diversos prêmios nacionais e internacionais. Na edição de 2023 do Festival de Cinema de Gramado, Cariry recebeu os prêmios de melhor direção, melhor fotografia e melhor montagem (em parceria com Firmino Holanda), além do Prêmio Especial do Júri para a atriz Ana Luiza Rios pela interpretação da protagonista. O elenco ainda traz nomes como Silvia Buarque, Danny Barbosa e Buda Lira. Abaixo, veja a entrevista completa com o diretor e o elenco de “Mais Pesado é o Céu”:
Este é um filme que foca menos na narrativa e mais nos sentimentos que ele desperta no espectador. Qual é a importância de provocar essas sensações?
Petrus Cariry – Esse filme mexe muito com os espectadores. Desde a primeira exibição, no Festival de Gramado, percebemos que as pessoas que viram saem tocadas de alguma forma. E isso é maravilhoso porque ele trata de questões bem densas. Há uma alegoria bem forte com o Brasil em ruínas e pessoas à margem da sociedade em busca de um futuro melhor – de um horizonte que não se mostra viável. Também há uma carga de violência, questões sobre a misoginia, solidão… Cada personagem carrega feridas e muitas dores.
Silvia Buarque – Meu pai usa o termo “dormir bem”. Ele diz: quando um filme dorme bem, uma peça dorme bem, um show dorme bem. E ele comentou que esse filme dorme bem. Isso porque tem tanta coisa que a gente assiste e depois e nem fala mais sobre. Com esse filme, a gente acorda e ainda se lembra.
Acompanhamos personagens que viajam a um lugar que já moraram para encontrarem quem são. Qual é a importância de olhar para o passado enquanto trilhamos um caminho para o futuro?
Petrus Cariry – O primeiro esboço do filme foi feito em 2017. Era um filme desses personagens que voltavam do Sudeste para o Nordeste e se encontravam por acaso em busca dessa cidade que não existia mais. Eles tentavam encontrar suas memórias e suas raízes. E o filme foi ficando denso por causa das questões extra-roteiro. O país estava em ruínas, estava acontecendo o impeachment da Dilma e depois entrou o governo Bolsonaro. Logo depois veio o Covid também. Esses fatos foram criando essa grande alegoria da busca de um lugar que não existe além da nossa memória. Aquela criança que aparece do nada ali funciona como uma espécie de presente divino. Eles formam uma família improvisada, dá esperança de um possível futuro.
Fátima é uma pessoa que sofreu muito: foi abandonada pelo marido e vive sozinha. Ainda assim, ela é resiliente, não perdeu a fé na vida e está disposta a ajudar. Você sente que as mulheres brasileiras são um pouco Fátima?
Silvia Buarque – Eu consigo fazer esse paralelo com as mulheres. Não necessariamente só as brasileiras. Ela tem características altamente femininas de sororidade, principalmente com a Tereza. A maternidade é muito latente nela. É ela a provedora que dá o leite. Isso é uma coisa que existe na mulher que todas nós somos, de qualquer época, sempre fomos assim. Há o fato dela ainda estar atrelada a um homem – ela tem um buraco muito grande por ter sido abandonada. Então, a gente discute esse machismo da sociedade que sofremos.
Esse filme tem poucos diálogos e se faz no silêncio. Os personagens sabem pouco um do outro. Para vocês, como foi construir a narrativa a partir dessas ausências?
Matheus Nachtergaele – Sim, todo esse filme é baseado nas ausências. Os personagens se encontram ao voltar para um lugar que já não há. Eles não voltam pra casa. Eles voltam para uma casa que não existe mais. Ele reúne diálogos sucintos e poéticos com grandes imagens de cinema. Quadros únicos de pintura, mesmo. Para contar essa fábula que fala um pouco de nós mesmos no meio da pandemia. Da volta a qualquer desejo depois da pandemia e do fascismo. Dessa tentativa de querer de novo alguma coisa.
Então são personagens que são construídos a partir do realismo poético que aborda duas pessoas simples. Ele é de São Paulo, ela é uma nordestina ali de Jaguaribara. Os dois precisam tomar coragem pra começar de novo até que um dia eles encontram o bebê. E o bebê é o futuro. Eles vão acolher o bebê ou não? Eles vão dar aguinha para o bebê e sombra? Vão dar de mamar? Vai se formar uma família? É preciso que se forme uma família? Existe amizade genuína? Essas coisas todas vão sendo sentidas, pensadas, procuradas durante esse filme que não tem muito final. Esse filme é a própria estrada e é um pouco como a gente estava no momento da sua feitura. Todo mundo sentindo, quadro a quadro, plano a plano: Que profissão louca. Que magia maravilhosa. Será que isso é inútil? Onde foi que eu me meti? Que piso é este? O filme é uma pergunta. É um filme que sacia o espectador a cada quadro. Ele não é para saciar o espectador com uma historinha contada.
Ana Luisa Rios – É um filme sobre esses buracos, essas ausências. Sobre coisas que não se realizam. Assim como no próprio Brasil. A todo momento é um novo nó. E quando a gente tenta desfazer o nó, tem um outro nó por trás. É um engodo social muito grande. O filme vem não como uma denúncia, mas como um caminho mais poético. A gente revela nos silêncios porque é muito difícil suportar o silêncio. A gente quer logo falar alguma coisa para tentar resolver. E aí quando a gente cala, precisa suportar esse incômodo de simplesmente estar presente. Ele tensiona a realidade num lugar que vai para o fantástico. Nesse sentido eu acho que redobra a coragem do filme.
Antônio tem uma fala que diz: “A gente tem isso de querer voltar para onde um dia foi feliz”. Se vocês pudessem escolher, voltariam para onde?
Matheus Nachtergaele – Pensei em responder que voltaria para o útero da minha mãe, que foi o único momento em que estive com ela. Mas depois resolvi ser mais otimista e dizer que voltaria para os primeiros momentos de formação na escola de teatro. Quando tudo estava por vir e eu estava só preparando o terreno – sem saber bem o que a vida era.
Ana Luisa Rios – Vai parecer combinado: pensei em coisas da infância e em situações boas, mas há uma sintonia com o Matheus em relação ao teatro. Sou uma atriz que vem do grupo de teatro. Foi lá que comecei. E o cinema está roubando a gente um pouquinho. Mas estou cada vez mais com vontade de retomar esse encontro no palco.