Filme “Pedaço de mim” reflete sobre autonomia e direitos de pessoas neurodivergentes
Dirigido pela francesa Anne-Sophie Bailly, a obra conta a história de dois adultos com condições cognitivas atípicas, que descobrem que serão pais
O cinema nunca hesitou em enfrentar temas considerados tabus – embora tenha atrasado para refletir sobre alguns deles –, ainda assim existem questões que parecem complexas demais para serem abordadas de maneira plena. Por isso, muitas dessas temáticas continuam à margem, invisibilizadas. A diretora francesa Anne-Sophie Bailly escolheu se dedicar a um desses assuntos, fazendo dele o foco de seu mais recente filme, Pedaço de Mim.
Protagonizado pela atriz Laure Calamy, o longa apresenta a realidade de Mona, uma mãe divorciada de classe média, e seu filho Joël (Charles Peccia-Galletto), um adulto neurodivergente. Eles vivem juntos e se relacionam de maneira próxima, quase como bons amigos. No entanto, uma nova situação surge inesperadamente: Joël se apaixona por Océane (Julie Froger), uma jovem também neurodivergente e colega de trabalho, e os dois descobrem que serão pais.
No centro do conflito entre as famílias está o desejo do casal de viverem juntos, sem a constante vigilância dos respectivos pais. Isso desperta dúvidas e medos sobre a capacidade deles de criar uma criança sem supervisão. Paralelamente, acompanhamos a difícil rotina de Mona, que precisou abrir mão de muitos de seus desejos pessoais e de sua própria vida para se dedicar integralmente aos cuidados de seu filho.
Recentemente, Anne-Sophie Bailly esteve no Brasil para apresentar seu filme no Festival de Cinema do Rio de Janeiro. Ela compartilhou que a narrativa do longa teve origem em uma experiência pessoal vivida durante seu trabalho em uma instituição de cuidados de idosos, onde conheceu uma mãe e sua filha neurodivergente, que viviam juntas.
Para a diretora, o filme surgiu como uma oportunidade de refletir sobre temas como a autonomia de pessoas com diferentes padrões neurológicos e a necessidade de representações que se distanciem dos estereótipos.
Bravo!: Como foi apresentar seu filme no Brasil? Você já esteve aqui antes?
Anne-Sophie Bailly: “Não, nunca estive no Brasil antes. Na verdade, estava refletindo sobre como nunca tinha cruzado o Atlântico para este lado. Quando era uma menina, visitei o Caribe, que está no continente, mas esta é minha primeira vez aqui. É muito emocionante e estou incrivelmente curiosa para ver como o público vai se conectar com as questões levantadas no filme. Enquanto algumas delas são bem francesas, outras são universais. Estou animada, curiosa e, para ser sincera, um pouco nervosa também.”
Bravo!: O que você achou do Rio?
Anne-Sophie Bailly: “Eu amei. É uma cidade tão calorosa e acolhedora, com uma vibração tropical absolutamente linda. As pessoas são incrivelmente gentis.”
Bravo!: Sobre “Pedaço de Mim”, o que te inspirou a contar essa história em particular e quais temas foram mais importantes para você discutir?
Anne-Sophie Bailly: “A inspiração veio de uma situação peculiar que vivi quando era mais jovem. Durante as férias de verão, eu trabalhava com minha mãe, que era enfermeira, em instituições de cuidado a idosos. Foi lá que conheci uma dupla de mãe e filha que me marcou muito. A mãe, Yolanda, tinha cerca de 80 anos e precisava de cuidados devido a problemas de saúde. A filha, na casa dos 60 anos, não tinha problemas de saúde, mas tinha dificuldades cognitivas e intelectuais, o que a tornava totalmente dependente da mãe. Elas nunca tinham ficado separadas. A relação delas era fascinante—marcada por amor, ressentimento e um vínculo profundo e complexo. Elas eram tão próximas, mas, ao mesmo tempo, ansiavam por independência uma da outra. Para mim, essa dinâmica representava a essência da família: uma mistura de conflito, amor e o desejo de liberdade. Quando entrei na escola de cinema aos 27 anos, essa história veio naturalmente à minha mente. Ao longo de quatro anos, desenvolvi personagens inspirados nelas, o que acabou resultando neste filme.”
Bravo!: Como a sua experiência como atriz influenciou sua abordagem ao dirigir os atores neste filme?
Anne-Sophie Bailly: A principal vantagem é que compartilhamos a mesma linguagem. A atuação envolve muita intuição, impulso e fisicalidade, o que permite uma comunicação sem fricções. Às vezes, eu digo que “atuo” quando dirijo. É uma troca mútua onde interagimos, em vez de eu dirigir de uma posição superior. Os atores propõem ideias, eu trago as minhas, e juntos cavamos mais fundo até encontrarmos a emoção certa e o plano perfeito. Esse processo compartilhado ajuda a tirar o melhor deles, porque consigo me relacionar com a experiência deles por meio da minha própria experiência como atriz.
Bravo!: Houve algum preparo especial para criar a dinâmica familiar retratada no filme?
Anne-Sophie Bailly: Não muito, mas sou fã de ensaios. Embora uma das atrizes não estivesse particularmente confortável com os ensaios, ela gentilmente aceitou participar e encontramos um meio-termo. A verdadeira mágica aconteceu durante as audições. Quando eu juntei os dois jovens atores para os papéis de Joël e Lola, algo inexplicável e físico aconteceu entre eles. Joël, sendo naturalmente caloroso e sociável, abraçou Lola durante a audição. Foi um momento de conexão inegável, algo que não se pode planejar. Eu até tenho uma foto desse momento, e é possível ver claramente o vínculo se formando. A seleção de elenco tem um papel significativo em criar a dinâmica certa, e com eles, simplesmente funcionou.
Em um determinado momento do processo de audição, eles apenas liam a cena. E eu olhei para a minha diretora de elenco, ela estava chorando, e eu também. Era algo físico acontecendo ali, algo que não podia ser explicado, mas era precioso. Esse foi o ponto de partida para seguir adiante
Incrível. Eu tenho outra pergunta. Como cineasta que transita entre o documentário e a ficção, que desafios você encontra ao misturar esses dois gêneros?
Anne-Sophie Bailly: Há vários elementos documentais no filme. Primeiro, muitas das pessoas que interpretam assistentes sociais, educadores ou monitores de instituições especializadas são, na verdade, profissionais reais dessas áreas. Isso veio do meu processo de escrita e também do casting. Passei muita energia dizendo: “Precisamos dela, precisamos dele.” Era quase como se eu estivesse captando algo documental. Acho que escrevi muito sobre essa história.
Além disso, eu queria que essa narrativa de emancipação tomasse um rumo inesperado. Por isso, há uma parte ambientada em um festival belga. Eu queria que meus dois atores experimentassem solidão e desorientação de forma intensa. Esse festival possibilitou isso, pois, mesmo com algumas pessoas garantindo a segurança, eu e a câmera ficamos bem distantes. Eram tomadas bem longas deles, quase como se estivessem perdidos em meio à multidão.
Filmamos essa sequência no início das gravações, e acho que isso os ajudou a se conectarem com seus personagens, sentindo-se sozinhos em meio a um mar de gente. Eles sabiam que estavam sendo observados, mas não tinham certeza de quando ou como exatamente. Foi uma maneira de trazer uma realidade pura para os personagens.
Imagino que você tenha feito muita pesquisa sobre o contexto do filme. Como a questão que envolve a autonomia das pessoas neurodivergentes vem sendo tratada no seu país?
Recentemente, esse tema começou a ganhar mais atenção. Nos anos 1990, por exemplo, surgiram debates no Comitê Nacional de Ética porque alguns médicos eram solicitados a realizar esterilizações em mulheres com deficiências intelectuais ou cognitivas. Muitas vezes, essas operações eram feitas como se fossem procedimentos de apendicite. É algo realmente recente na França — o início de um diálogo aberto sobre o assunto.
Durante minha pesquisa, trabalhei em uma instituição especializada para pessoas com deficiência. Conheci pessoas que tinham famílias, outras que queriam formar uma. Algumas só desejavam ter seu próprio apartamento, dormir na mesma cama com alguém e não ter um toque de recolher à noite. Coisas muito simples, mas profundamente significativas.
Não há respostas fáceis. Como sociedade, precisamos proteger o consentimento e os mais vulneráveis, mas também precisamos garantir seus direitos. É um equilíbrio frágil e fascinante, que diz muito sobre como consideramos a liberdade e a proteção humanas.
Há algo que você gostaria de adicionar a essa conversa? Algo que não mencionamos, mas que você considera importante?
Estou curiosa para saber como o público brasileiro vai reagir à história. Sei que a família é muito importante no Brasil, mas não conheço bem a situação das pessoas com dificuldades cognitivas ou intelectuais aí. Estou muito animada para ver como a conversa vai evoluir.
Tenho certeza de que a reação será incrível. Acho que essa discussão precisa ser iniciada aqui no Brasil.