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Fluxo de Pensamento: Antonio Saboia

O ator Antonio Saboia, que faz parte do elenco de "Ainda estou aqui", descreve o seu processo de entrosamento com a história de Marcelo Rubens Paiva

Por Depoimento de Antonio Saboia
Atualizado em 29 out 2024, 17h49 - Publicado em 28 out 2024, 08h00
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 (Jorge Bispo/divulgação)
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Em uma tarde de março de 2022, sentei com Walter Salles na Livraria Argumento do Leblon para tomar suco de abacaxi e conversar. Depois de uma hora trocando ideias sobre cinema, ele me entregou o roteiro de “Ainda Estou Aqui” e me perguntou se eu gostaria de interpretar o Marcelo Rubens Paiva. Claro, topei na mesma hora, sem pensar. Voltei aéreo para o carro, sem acreditar no que acabava de acontecer.

Passei um bom tempo pesquisando tudo que existia sobre a família Paiva. Precisava entender o contexto histórico e a dinâmica dessa família no meio daquele caos. Achei duas teses de doutorado sobre a Eunice e o desaparecimento do Rubens na época. Uma delas fazia um paralelo interessante da Eunice com Antígona, a heroína da tragédia grega que compra uma briga com o rei para ter o direito de enterrar o irmão.

“Ainda Estou Aqui” conta a história de uma família, essencialmente focada na mãe, então comecei a escrever sobre a minha. Cheguei a um ponto em que estava convencido de que todo mundo deveria escrever um livro sobre a própria mãe.

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Nessa época, veio a notícia de que o filme tinha sido adiado para o ano seguinte. Segurei os estudos pra não me antecipar. Mas estava claro que a próxima etapa seria focar totalmente no Marcelo.

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(Jorge Bispo/divulgação)

Em maio de 2023, um ano e dois meses depois do encontro com o Walter, fui almoçar com o Marcelo no condomínio dele em Perdizes, onde a Eunice tinha morado por um tempo. A história da família Facciola Paiva, do Marcelo, e metade da sua bibliografia já estava ecoando em mim há algum tempo.

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Ele me recebeu como um velho amigo e carinhosamente disparou: “É importante você pegar o lance das mãos, mas, pô, cara, não me imita não, por favor.” Dei uma boa gargalhada e qualquer ansiedade deste primeiro encontro se dissipou na mesma hora. A ideia, claro, não era fazer uma mímica dele, mas captar algo de sua essência e, a partir daí, criar minha própria versão do Marcelo dentro da história que o Walter queria contar. Marcelo é muito carismático, brincalhão, tem um humor irônico, inteligente e, ao mesmo tempo, doce. Ele marcou várias gerações e era importante fazer jus a quem ele é, sem cair na caricatura.

É muito delicado esse exercício de representar alguém que existe, ainda mais uma pessoa querida do público e importante na dramaturgia brasileira. Tinha medo de errar a mão, de não agradar, por isso me limitei a poucos encontros. Sentia que o apego emocional me travava de alguma forma e precisava me distanciar para não atrapalhar o processo criativo. É importante ser irreverente e destilar um pouco de anarquia no trabalho para se surpreender e algo interessante acontecer. E esse lado irreverente também faz parte da essência do Marcelo.

A essa altura, eu já tinha uma visão global do universo pelo qual precisava transitar e compreendia o caminho para chegar ao Marcelo, mas ainda tinha que me confrontar com a emoção do luto e da perda de um pai.

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Perdi meus pais em circunstâncias muito diferentes, mas também muito duras. Esse foi meu ponto de partida. Em “Ainda Estou Aqui” há um trecho onde Marcelo imagina e narra a morte do pai, o que me tocou profundamente, pois foi algo que fiz dentro da minha própria experiência com a morte do meu pai, como uma espécie de catarse do luto.

Apesar de todo o estudo do contexto social e psicológico, há uma dimensão emocional que devemos emprestar ao personagem. Não projetei a figura do meu pai em Rubens, mas busquei paralelos para compreender aquele sentimento. Buscando entender como essa perda afetou Marcelo, optei por recorrer à imaginação, que considero a melhor ferramenta do ator. É crucial preservar nossa história e emoções sem distorcê-las, pois são preciosas e nos pertencem. Uma vez estabelecidos esses paralelos com a própria vida, a imaginação se torna nossa maior aliada.

Esse processo me trouxe um momento inesperado e marcante durante a filmagem de uma cena no condomínio do Marcelo, em São Paulo. Era uma troca de carinho entre um filho e sua mãe. Dona Fernanda segurava minhas mãos, como Eunice fazia com Marcelo, e, entre um take e outro, continuávamos conversando, mantendo a energia calma e amorosa da cena. Em certo momento, durante a filmagem, me perdi no personagem e me conectei com minha própria mãe. Fernanda Montenegro me deu esse presente: por um instante, senti minha mãe. Foi algo profundamente marcante.

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A última etapa da preparação e uma das mais desafiadoras era a parte física. Encontrei um jornalista, Bruno Beraldin, que teve um acidente similar ao do Marcelo. Ele me mostrou e explicou incansavelmente, nos mínimos detalhes, todas as limitações causadas pela fratura da quinta vértebra cervical. Esse encontro foi fundamental no meu processo.

Pedi para a produção deixar a cadeira que usaríamos no filme na minha casa um mês antes das gravações. Passava meus dias sentado ali, reinventando toda a minha rotina: comia, bebia, lia, escrevia, etc. Virou uma obsessão. Precisava que tudo fluísse de forma natural e espontânea, trazendo a agilidade do Marcelo sem interferir na atuação. As cenas em que o Marcelo aparece não se concentram em sua condição física, então essa característica precisava estar presente de forma autêntica, mas sem chamar atenção.

Eu andava com a cadeira no meu prédio e o pessoal que me conhecia, na sua maioria, perguntava se era para um papel. A coisa se automatizou aos poucos, mas eu me sentia “atuando” e isso me incomodava. Precisava sair do conforto da minha casa e me confrontar com os olhares da rua.

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Então lá fui eu para a orla da Barra da Tijuca, indo e voltando por horas. Reparei que certas pessoas se tornavam inclementes pela sua falta total de noção e pudor. Várias vezes gente aleatória soltava na lata um: “Meu Deus, tão jovem”… Cheguei a ouvir um gutural “Oh my God” de um gringo que passava. As reações silenciosas talvez fossem as que mais pesavam. Grupos inteiros silenciavam para cochichar, e no meu olhar periférico, via gente parar e observar…

Pude sentir também a crueldade das limitações urbanas. Rampas para cadeirantes desgastadas, buracos, desníveis, rachaduras, o tempo curtíssimo de certos semáforos, a clara impossibilidade de alcançar determinados lugares. Nada na cidade é pensado para quem tem uma deficiência.

Em dado momento, no meio de uma espécie de transe criativo, me veio um desespero profundo. Mas não podia me dar a alternativa de sair daquela crise de ansiedade e deixei passar. O mínimo era tentar entender o que estava acontecendo e assimilar tudo aquilo. Então só voltei para casa quando a bateria da cadeira estava para acabar. Era uma percepção que só essa experiência poderia proporcionar. E existe, claramente para mim, como ser humano, um antes e um depois dessa vivência.

Um tempo atrás, esse ano, antes do Festival de Veneza, mandei uma mensagem para o Marcelo perguntando se ele tinha visto o filme, se fazia jus à história deles e, numa nota pessoal, se eu não tinha “errado feio”. Recebi com muito alívio uma mensagem bonita e alegre. E era tudo que eu precisava para encerrar essa jornada tranquilo.

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