Fluxo de Pensamento: Antonio Saboia
O ator Antonio Saboia, que faz parte do elenco de "Ainda estou aqui", descreve o seu processo de entrosamento com a história de Marcelo Rubens Paiva
Em uma tarde de março de 2022, sentei com Walter Salles na Livraria Argumento do Leblon para tomar suco de abacaxi e conversar. Depois de uma hora trocando ideias sobre cinema, ele me entregou o roteiro de “Ainda Estou Aqui” e me perguntou se eu gostaria de interpretar o Marcelo Rubens Paiva. Claro, topei na mesma hora, sem pensar. Voltei aéreo para o carro, sem acreditar no que acabava de acontecer.
Passei um bom tempo pesquisando tudo que existia sobre a família Paiva. Precisava entender o contexto histórico e a dinâmica dessa família no meio daquele caos. Achei duas teses de doutorado sobre a Eunice e o desaparecimento do Rubens na época. Uma delas fazia um paralelo interessante da Eunice com Antígona, a heroína da tragédia grega que compra uma briga com o rei para ter o direito de enterrar o irmão.
“Ainda Estou Aqui” conta a história de uma família, essencialmente focada na mãe, então comecei a escrever sobre a minha. Cheguei a um ponto em que estava convencido de que todo mundo deveria escrever um livro sobre a própria mãe.
Nessa época, veio a notícia de que o filme tinha sido adiado para o ano seguinte. Segurei os estudos pra não me antecipar. Mas estava claro que a próxima etapa seria focar totalmente no Marcelo.
Em maio de 2023, um ano e dois meses depois do encontro com o Walter, fui almoçar com o Marcelo no condomínio dele em Perdizes, onde a Eunice tinha morado por um tempo. A história da família Facciola Paiva, do Marcelo, e metade da sua bibliografia já estava ecoando em mim há algum tempo.
Ele me recebeu como um velho amigo e carinhosamente disparou: “É importante você pegar o lance das mãos, mas, pô, cara, não me imita não, por favor.” Dei uma boa gargalhada e qualquer ansiedade deste primeiro encontro se dissipou na mesma hora. A ideia, claro, não era fazer uma mímica dele, mas captar algo de sua essência e, a partir daí, criar minha própria versão do Marcelo dentro da história que o Walter queria contar. Marcelo é muito carismático, brincalhão, tem um humor irônico, inteligente e, ao mesmo tempo, doce. Ele marcou várias gerações e era importante fazer jus a quem ele é, sem cair na caricatura.
É muito delicado esse exercício de representar alguém que existe, ainda mais uma pessoa querida do público e importante na dramaturgia brasileira. Tinha medo de errar a mão, de não agradar, por isso me limitei a poucos encontros. Sentia que o apego emocional me travava de alguma forma e precisava me distanciar para não atrapalhar o processo criativo. É importante ser irreverente e destilar um pouco de anarquia no trabalho para se surpreender e algo interessante acontecer. E esse lado irreverente também faz parte da essência do Marcelo.
A essa altura, eu já tinha uma visão global do universo pelo qual precisava transitar e compreendia o caminho para chegar ao Marcelo, mas ainda tinha que me confrontar com a emoção do luto e da perda de um pai.
Perdi meus pais em circunstâncias muito diferentes, mas também muito duras. Esse foi meu ponto de partida. Em “Ainda Estou Aqui” há um trecho onde Marcelo imagina e narra a morte do pai, o que me tocou profundamente, pois foi algo que fiz dentro da minha própria experiência com a morte do meu pai, como uma espécie de catarse do luto.
Apesar de todo o estudo do contexto social e psicológico, há uma dimensão emocional que devemos emprestar ao personagem. Não projetei a figura do meu pai em Rubens, mas busquei paralelos para compreender aquele sentimento. Buscando entender como essa perda afetou Marcelo, optei por recorrer à imaginação, que considero a melhor ferramenta do ator. É crucial preservar nossa história e emoções sem distorcê-las, pois são preciosas e nos pertencem. Uma vez estabelecidos esses paralelos com a própria vida, a imaginação se torna nossa maior aliada.
Esse processo me trouxe um momento inesperado e marcante durante a filmagem de uma cena no condomínio do Marcelo, em São Paulo. Era uma troca de carinho entre um filho e sua mãe. Dona Fernanda segurava minhas mãos, como Eunice fazia com Marcelo, e, entre um take e outro, continuávamos conversando, mantendo a energia calma e amorosa da cena. Em certo momento, durante a filmagem, me perdi no personagem e me conectei com minha própria mãe. Fernanda Montenegro me deu esse presente: por um instante, senti minha mãe. Foi algo profundamente marcante.
A última etapa da preparação e uma das mais desafiadoras era a parte física. Encontrei um jornalista, Bruno Beraldin, que teve um acidente similar ao do Marcelo. Ele me mostrou e explicou incansavelmente, nos mínimos detalhes, todas as limitações causadas pela fratura da quinta vértebra cervical. Esse encontro foi fundamental no meu processo.
Pedi para a produção deixar a cadeira que usaríamos no filme na minha casa um mês antes das gravações. Passava meus dias sentado ali, reinventando toda a minha rotina: comia, bebia, lia, escrevia, etc. Virou uma obsessão. Precisava que tudo fluísse de forma natural e espontânea, trazendo a agilidade do Marcelo sem interferir na atuação. As cenas em que o Marcelo aparece não se concentram em sua condição física, então essa característica precisava estar presente de forma autêntica, mas sem chamar atenção.
Eu andava com a cadeira no meu prédio e o pessoal que me conhecia, na sua maioria, perguntava se era para um papel. A coisa se automatizou aos poucos, mas eu me sentia “atuando” e isso me incomodava. Precisava sair do conforto da minha casa e me confrontar com os olhares da rua.
Então lá fui eu para a orla da Barra da Tijuca, indo e voltando por horas. Reparei que certas pessoas se tornavam inclementes pela sua falta total de noção e pudor. Várias vezes gente aleatória soltava na lata um: “Meu Deus, tão jovem”… Cheguei a ouvir um gutural “Oh my God” de um gringo que passava. As reações silenciosas talvez fossem as que mais pesavam. Grupos inteiros silenciavam para cochichar, e no meu olhar periférico, via gente parar e observar…
Pude sentir também a crueldade das limitações urbanas. Rampas para cadeirantes desgastadas, buracos, desníveis, rachaduras, o tempo curtíssimo de certos semáforos, a clara impossibilidade de alcançar determinados lugares. Nada na cidade é pensado para quem tem uma deficiência.
Em dado momento, no meio de uma espécie de transe criativo, me veio um desespero profundo. Mas não podia me dar a alternativa de sair daquela crise de ansiedade e deixei passar. O mínimo era tentar entender o que estava acontecendo e assimilar tudo aquilo. Então só voltei para casa quando a bateria da cadeira estava para acabar. Era uma percepção que só essa experiência poderia proporcionar. E existe, claramente para mim, como ser humano, um antes e um depois dessa vivência.
Um tempo atrás, esse ano, antes do Festival de Veneza, mandei uma mensagem para o Marcelo perguntando se ele tinha visto o filme, se fazia jus à história deles e, numa nota pessoal, se eu não tinha “errado feio”. Recebi com muito alívio uma mensagem bonita e alegre. E era tudo que eu precisava para encerrar essa jornada tranquilo.