Fluxo de Pensamento: “Por todas nós”, de Cris Vianna
Atriz reflete sobre racismo, representatividade e trajetória no audiovisual em um depoimento sobre resistência, identidade e transformação

Se existe algo que o tempo me ensinou é que não há caminho fácil para uma mulher preta no audiovisual. Mas também aprendi que, mesmo nas rotas mais tortuosas, há beleza, força e sentido. Ao longo desses mais de 20 anos de carreira, entre passarelas, palcos, câmeras e bastidores, fui descobrindo quem eu sou — e quem eu quero ser nesse mundo. Cada papel que aceitei, cada silêncio que rompi, cada ‘não’ que transformei em impulso me trouxeram até aqui. E não foi sem dor, mas foi com propósito.
Minha entrada nesse meio aconteceu cedo, ainda na adolescência, quando comecei a trabalhar como modelo. À época, eu mal sabia o que significava ocupar um espaço que, historicamente, não nos foi permitido. Era como se existisse uma cota invisível: uma mulher preta por vez. E, dentro disso, só nos davam as bordas das histórias, nunca o centro. Mas eu segui. Segui com a intuição de quem carrega a força das que vieram antes. Se eu pudesse escrever uma carta para aquela menina de 13 anos, diria: “Você ainda vai enfrentar o apagamento, a desconfiança, o racismo velado e explícito. Mas, mesmo nos dias mais difíceis, lembre que existe algo maior em movimento — e você faz parte disso.”
Essa consciência só foi se firmando com o tempo. Mas, antes mesmo de entrar no meio artístico, já havia algo muito sólido em mim: as raízes. A base da minha força vem da minha família, principalmente das mulheres que me criaram — mulheres pretas, firmes, ternas, determinadas. Minha mãe, minhas tias, minhas avós. Elas me ensinaram que autoestima é um ato de resistência, e que dignidade não é negociável. Desde pequena, ouvi que eu era bonita, que era forte, que tinha valor. Elas não usavam essas palavras da moda, como empoderamento ou representatividade, mas viviam isso, na prática. Eram o meu primeiro espelho. E é por elas — e com elas — que sigo.
Lembro com muito carinho da Dagmar, minha personagem em Fina Estampa. Ela foi um marco. Uma mulher que criava os filhos sozinha, com coragem, ternura e dignidade. A Dagmar tinha uma força silenciosa, dessas que não precisa gritar para ser sentida. Ela me ensinou muito sobre o que é ser mulher num país que exige tanto de nós e oferece tão pouco em troca. Enquanto a interpretava, eu me vi espelhada em tantas brasileiras que resistem todos os dias — com sorriso no rosto e cansaço nos ombros —, lutando por si e pelos seus.
Mas viver uma mulher como a Dagmar também me fez refletir sobre outro ponto muito profundo: a forma como os corpos das mulheres negras são lidos socialmente. Existe um histórico de hipersexualização que nos atravessa desde a infância. Somos vistas, muitas vezes, antes de qualquer outra coisa, como desejo ou fetiche. Essa desumanização se repete na publicidade, na dramaturgia, nas ruas. Já senti isso muitas vezes — nos olhares, nas abordagens, nos papéis que me ofereciam. Combater esse estereótipo não é apenas uma luta estética, é uma luta por humanidade. Eu sou uma mulher inteira: com sensualidade, sim, mas também com fé, com delicadeza, com complexidade, com história. E eu não aceito que nos reduzam.
Um momento especial foi o filme Besouro, pelo qual recebi o Troféu Raça Negra de Melhor Atriz de Cinema, em 2010. Foi mais que um reconhecimento artístico: foi um abraço coletivo. Um símbolo de que nossos talentos também merecem ser celebrados, nossa história também é arte.
Lembro também de quando recebi o Prêmio Contigo! de Cinema como Melhor Atriz Coadjuvante pelo filme Última Parada 174. Aquela personagem, assim como o filme, me atravessou profundamente. Foi um trabalho intenso, denso, que me exigiu entrega emocional e escuta. Ganhar esse reconhecimento naquele momento da minha trajetória foi como um sopro de fôlego, um sinal de que meu trabalho estava alcançando lugares que eu sonhava desde o início. Eu fiquei muito feliz com essa conquista!
Durante muito tempo, nossa presença no audiovisual era condicionada a narrativas de dor. Ou então nos colocavam em papéis de subserviência, caricaturas que não refletiam a riqueza da mulher preta brasileira. Mas as coisas começaram a mudar. Lenta e coletivamente. A chegada do streaming, o fortalecimento de movimentos sociais, o surgimento de novos roteiristas e diretores pretos têm ampliado o escopo das histórias possíveis. Ainda temos muito a conquistar, é verdade, infelizmente, mas eu sinto, hoje, uma mudança palpável. E essa mudança se reflete no momento atual da minha carreira, na qual continuo gravando Arcanjo Renegado, série do Globoplay que mergulha em temas urgentes do Brasil contemporâneo. Minha personagem tem densidade, estratégia e ambiguidade. A Maíra chega à presidência da Alerj, cargo nunca ocupado por uma pessoa preta fora da ficção, com sua garra e determinação. É bom viver uma mulher assim — com contradições, com potência. No cinema, estou envolvida em três filmes que estreiam este ano, todos com abordagens que me desafiaram como artista e me nutriram como mulher.
Mas talvez o que mais me emocione nessa trajetória seja perceber que hoje eu me tornei o que um dia precisei ver. Que minha imagem pode ser espelho para meninas pretas que sonham. Que minha voz pode abrir portas, questionar estruturas, afirmar presenças. Carrego comigo uma responsabilidade, sim — mas, acima de tudo, uma missão bonita. Porque representatividade não é uma palavra bonita para campanhas de marketing: é sobrevivência. É saber que você importa. É se reconhecer viva e possível. Mas também não é apenas isso, eu posso e quero ocupar outros espaços, representar outros papéis sem que seja necessário que eu represente uma parte, sem que seja necessário que eu ensine sobre representatividade.
Eu me surpreendo, ainda hoje, com a minha própria capacidade de seguir, de criar, de acreditar. Já pensei em desistir, já questionei minha potência, já me senti cansada de tentar ser “a primeira” em tantos espaços. Mas sempre houve algo em mim que se recusava a parar. Essa chama tem nome: ancestralidade. Ela me guia. Ela me lembra que eu sou porque muitas foram antes. E que, por isso mesmo, não caminho sozinha.
O racismo no audiovisual não é um fantasma do passado. Ele continua entre nós, às vezes sutil, às vezes escancarado. Mas já não somos as mesmas. Hoje falamos, produzimos, dirigimos, escrevemos. Hoje somos muitas. E vamos continuar sendo.
Por todas nós.