Gene Hackman: O Ator que Multiplicava os Sentidos
Conhecido por "Bonnie e Clyde" e "Operação França", ator morreu nesta quinta (27), aos 95 anos; Relembre sua trajetória no cinema e na tv norte-americana

Acordei com a notícia da morte de Gene Hackman, e fui imediatamente transportada às memórias da minha infância. O ator de 95 anos, a sua esposa, Betsy Arakawa, de 63 anos, e o cachorro do casal foram encontrados sem vida em sua residência em Santa Fé, Novo México. As causas das mortes ainda são desconhecidas, as autoridades locais estão investigando o caso.
É impressionante como o cinema nos atravessa e nos conecta a diferentes momentos da vida. Como não lembrar de Lex Luthor, com seu humor sarcástico e genialidade estratégica? De Popeye Doyle, incansável na perseguição aos criminosos em Operação França? De tantos outros personagens que marcaram sua filmografia e a história do cinema?
Mas junto à lembrança de seus grandes papéis, surge uma reflexão inevitável: por que atores e atrizes, mesmo os mais brilhantes, muitas vezes caem no esquecimento? Essa questão me veio à mente ao revisitar sua trajetória. Por que suas imagens voltam ao destaque somente com a notícia de sua morte? É verdade que Hackman escolheu o anonimato, viveu longe dos holofotes e, por isso, há anos não se falava dele. Mas como é possível não encontrar referências atuais ao seu impacto imensurável na sétima arte?

Ao longo de sua carreira, Gene Hackman se especializou em transformar personagens aparentemente comuns — detetives, xerifes, treinadores, pais de família — em figuras memoráveis e multidimensionais. Onde outros atores buscavam papéis grandiosos e épicos, Hackman encontrava a profunda humanidade no cotidiano, elevando o comum ao inesquecível.
Para mim, Hackman representa um fascinante caso de sinestesia artística – sua presença na tela ativava simultaneamente múltiplas camadas de nossa percepção sensorial. Não apenas víamos Hackman; sentíamos sua presença, ouvíamos as nuances de sua voz que variava do sussurro à explosão com precisão milimétrica. A conexão dos sentidos que sua atuação provocava transcendia a experiência visual do cinema, tornando-se uma experiência sensorial completa que se impregnava em nossa memória afetiva. Talvez por isso seus personagens permaneçam tão vívidos em nosso imaginário, mesmo décadas após suas interpretações.
“Fui treinado para ser ator, não para lidar com a fama”
Gene Kackman

Quem foi Gene Hackman?
Eugene Allen Hackman nasceu no dia 30 de janeiro de 1930 em San Bernardino, Califórnia. Desde os 10 anos sabia que queria ser ator, mesmo assim, aos 16 anos, fugiu de casa para se alistar nos Fuzileiros Navais. Depois, fez jornalismo na Universidade de Illinois antes de seguir para a Pasadena Playhouse, na Califórnia, onde estudou atuação e conheceu Dustin Hoffman. A certeza de que queria dedicar sua vida ao ofício não o fez desistir, quando, junto com Hoffman, foi votado pelos colegas de classe como os “menos propensos a ter sucesso”. Os dois se mudaram para Nova York, onde conheceram Robert Duvall e formaram uma amizade duradoura enquanto tentavam se estabelecer no teatro e no cinema.
Depois de anos atuando em pequenos papéis na televisão e no teatro, Hackman conseguiu seu primeiro grande papel aos 37 anos, em Bonnie e Clyde (1967), que lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Mas foi em 1971, com Operação França (The French Connection), que alcançou o estrelato definitivo. Seu detetive Popeye Doyle, intenso e visceral, lhe garantiu o Oscar de Melhor Ator e estabeleceu um novo padrão para personagens policiais no cinema.

Quais foram outros papéis icônicos de Gene Hackman?
- Lex Luthor na série Superman (1978-1987)
- Harry Caul em A Conversação (1974)
- Coach Norman Dale em Momentos Decisivos (1986)
- Bill Daggett em Os Imperdoáveis (1992)
- Royal Tenenbaum em Os Excêntricos Tenenbaums (2001)
Sua abordagem intuitiva e natural à atuação era uma marca registrada. “Não sei se tenho um método”, disse uma vez. “Simplesmente tento ficar relaxado e confiante no set para que possa sentir algo semelhante ao que o personagem estaria sentindo.”
Era esse realismo sem esforço que fazia seus personagens inesquecíveis. Seu Popeye Doyle não era um herói clássico, mas um detetive falível e, às vezes, detestável. Seu Lex Luthor tinha humor e vulnerabilidade. E seu Harry Caul, foi um estudo magistral de introspecção e paranoia, um homem consumido pelo medo da vigilância e incapaz de se conectar com os outros, representava o seu oposto. Hackman nunca atuava no sentido convencional. Sua presença magnética e domínio de cena permitiam que ele se sobressaísse, conquistando protagonismo mesmo em papéis secundários.
Apesar de sua enorme fama, Hackman sempre manteve uma relação ambivalente com Hollywood. Nunca gostou de entrevistas ou tapetes vermelhos. Em 2004, no auge de sua carreira, anunciou sua aposentadoria e dedicou-se a outras paixões, como a escrita de romances históricos e a pintura.

Casado com Betsy Arakawa desde 1991, Hackman escolheu viver em Santa Fé, longe do burburinho da indústria. Em raras entrevistas após sua aposentadoria, demonstrava satisfação com sua decisão: “O lado comercial do show business é cruel”, afirmou em 2009. “Você passa de tentar ser uma esponja, absorvendo informações de outros atores e do diretor, para uma reunião com um agente e um produtor. É como estar numa frigideira. Com minha idade e saúde, decidi que não queria mais isso.”
Em cada interpretação que desafiava expectativas, em cada personagem complexo que habitou com maestria, Hackman nos lembrou do poder transformador da atuação quando praticada não como exibicionismo, mas como uma profunda exploração da condição humana.
A morte de Hackman nos lembra não só de seu talento excepcional, mas também da fragilidade da memória de Hollywood. Basta lembrar de quantos grandes nomes do cinema desaparecem do imaginário coletivo antes mesmo de partirem. Ironia do destino, é justamente na despedida que a indústria e os espectadores resgatam sua grandeza. Que possamos aprender a valorizar nossos artistas enquanto ainda estão entre nós, celebrando suas contribuições e legados em vida.