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A ilógica desigualdade nos salários em Hollywood

Greve dos roteiristas nos EUA denuncia um setor bilionário que resiste em recompensar devidamente seus autores

Por Humberto Maruchel, de Nova York
12 jun 2023, 11h12

Em frente ao colossal prédio da NBC, uma multidão interrompe parte do fluxo da 49th street. Em seu público, artistas de peso, como o escritor Neil Gaiman, os atores Mark Ruffalo, Cynthia Nixon e Maggie Gyllenhaal. Atores, roteiristas, comediantes se unem em uma das maiores paralisações da indústria cinematográfica dos EUA, que atinge, até mesmo, alguns dos conteúdos prediletos dos brasileiros. A greve dos roteiristas, encabeçada pelo sindicato Writers Guild of America (que une os sindicatos de leste e oeste dos EUA), atravessa uma saga de mais de 30 dias. A súmula é simples: trabalhadores exigem ser devidamente compensados pelo trabalho que desenvolvem na indústria audiovisual. Para qualquer um que acompanha séries como Succession, The White Lotus e tantas outras que já se tornaram clássicos e continuam se desdobrando em novas histórias, como Game of Thrones, há a noção inequívoca de que os autores ocupam um papel fundamental para o sucesso do programa. Esses, no entanto, reclamam de condições cada vez mais desiguais e representam uma das categorias mais desvalorizadas num setor bilionário.

Em abril, a WGA deu início a uma votação com seus membros para aprovar ou não uma greve geral. O prazo para a decisão era em 1º de maio, que marcaria o vencimento do contrato vigente da WGA com a Alliance of Motion Picture and Television Producers. Após dois meses de negociação entre os dois lados, sem uma resolução, decidiu-se pela greve. No centro do furacão estão os streamings, a mudança de hábitos dos espectadores, e uma maior demanda por conteúdos. Seria natural pensar que quanto maior a necessidade por novas séries, filmes, mais oportunidades e prospecção de ganhos para os roteiristas. Mas não tem sido bem assim, segundo os sindicatos. Em média, nesse novo modelo, roteiristas são contratados por 20 a 24 semanas para trabalharem em um conteúdo. A cada três anos, a WGA atualiza o salário mínimo da classe, conforme a taxa de inflação. A última vez que isso ocorreu foi em 2020. Esse acordo, evidentemente, só é válido para os membros dos sindicatos. Os números são diferentes se o roteiro é para TV, cinema ou streaming. E pode variar segundo a extensão do contrato e o orçamento disponível para produção da série. Há um descompasso entre os honorários dos autores e o aumento da inflação nos EUA nesses últimos anos, o que faz com que, efetivamente, o rendimento dos roteiristas tenha despencado em relação ao começo da última década.

greve dos roteiristas WGA
(Humberto Tozzi/Redação Bravo!)

Os vencimentos são pagos semanalmente. Em um trabalho para TV, por exemplo, que dura poucas semanas (menos de um ano), o mínimo que deve ser pago é US$ 5,069 (por semana). Pode parecer muito – especialmente para nós, brasileiros –, mas com as taxas e impostos, os rendimentos acabam sendo muito menores. Se o contrato prevê mais semanas de trabalho, o valor mínimo cai para $3,964.

Para quem acompanhava os episódios de suas séries prediletas há alguns anos pela televisão, uma mudança é bastante visível: as temporadas são menores. Se antes, alguns shows tinham 20 ou mais episódios, de 30 min a 1h, hoje dificilmente ultrapassam uma dezena. O tempo de trabalho, portanto, é menor para os autores, que muitas vezes não chegam a acompanhar a pós-produção ou até mesmo a entrar no set da obra que ajudaram a construir. Além disso, reclamam de equipes cada vez menores, com a maioria de seus funcionários trabalhando pelo mínimo acordado.

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Em entrevista à revista The New Yorker, o autor Alex O’Keefe, roteirista de The Bear, afirma que nem tudo que reluz é ouro. Ele conta ao veículo que, durante as nove semanas de trabalho para o show, ele vivia em um minúsculo apartamento no Brooklyn sem sistema de aquecimento (lembrando que as temperaturas podem cair até -11ºC na cidade de Nova York), e muitas vezes precisou trabalhar da livraria pública pois ficava sem energia no apartamento. De origem trabalhadora, ele diz que, no fim, seu desejo “é entrar nessa classe média, que sempre foi rara para quem vem da pobreza.”

greve dos roteiristas em Nova Iorque
(Humberto Tozzi/Redação Bravo!)

Na última paralisação da classe de roteiristas, em 2008, que durou 100 dias, estima-se que Hollywood chegou a perder US$ 2 bilhões em faturamento. Diversos talk shows e séries já foram afetados pela greve atual, como no caso de Abbott Elementary, Hacks, Yellowjackets, American Horror Story, Stranger Things, A Casa do Dragão, entre outras. Por outro lado, alguns dos estúdios contam com produções internacionais para alimentar suas plataformas por mais algum tempo, como a Netflix, que é um dos principais alvos da crise com os roteiristas.

Em uma carta endereçada no início das negociações, a WGA volta a apontar para a precarização do trabalho e argumenta que os estúdios agem movidos por ganância. “Nas equipes de TV, mais escritores estão trabalhando no mínimo, independentemente da experiência que possuem, geralmente por menos semanas ou em salas muito pequenas, enquanto os showrunners ficam sem uma equipe de roteiristas para completar a temporada. E embora os orçamentos das séries tenham disparado na última década, o salário médio dos escritores e produtores caiu.”

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E, embora, os estúdios aleguem falta de orçamento para aumentar os salários dos autores, um levantamento do LA Times mostrou que os executivos dessas corporações têm acumulado valores assombrosos. A exemplo disso, está David Zaslav, executivo da Warner Bros. Discovery que faturou $498 milhões (cerca de $2.5 bilhões) entre 2018 e 2022.

greve dos roteiristas em Nova Iorque
(Humberto Tozzi/Redação Bravo!)

Nas ruas, em diversas cidades do país, os grevistas se alternam nos piquetes. “CEOs não sabem escrever roteiros”, grita um manifestante. “Não estamos pedindo nada absurdo, apenas pague o que merecemos. Nos deixe ver o quanto estão arrecadando. Isso é transparência”, declara a comediante Wanda Sykes ao tomar o microfone num dos atos em Nova York. Em seu discurso, ela lembra da greve que ocorreu em 2008 e salienta o quanto os rostos presentes mudaram nesses protestos. “Vejo muito mais mulheres, vejo muito mais pessoas negras. Estamos podendo contar nossas histórias.”, diz aos aplausos. “Isso é sobre a sobrevivência de nossa indústria”, ela conclui.

Outras figuras de peso ocuparam as ruas. O autor Neil Gaiman também discursou no mesmo ato. “O que estamos fazendo aqui é pelo futuro […] O que estamos tentando fazer aqui se deve ao fato de termos monopólios monstruosos, que crescem cada vez mais, e se devoram mutualmente, e tomam os lucros para si. Eles não entendem que o lucro precisa ser distribuído para podermos desenvolver novos autores.”

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