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Guel Arraes reinventa obra de Guimarães Rosa

Adaptação de "Grande Sertão: Veredas" atualiza o romance sertanejo para uma guerra urbana entre polícia e organização criminosa

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 7 jun 2024, 12h48 - Publicado em 7 jun 2024, 09h00
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A adaptação de Guel Arraes e Jorge Furtado traz o sertão de Guimarães para a favela (Helena Barreto/divulgação)
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Para Guimarães Rosa, o Sertão era muito mais do que um território árido e vazio. Ele representava um universo infinito, possivelmente do “tamanho do mundo”. No coração desse vasto nada, os pensamentos e as dúvidas se erguiam, revelando a plenitude e ambiguidade da humanidade, que oscilava entre o bem e o mal, navegando com facilidade entre os extremos.

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Luisa Arraes (Diadorim) e Eduardo Sterblitch (Hermógenes) em cena de Grande Sertão (Helena Barreto/divulgação)

Com mais de 700 páginas (da Editora Nova Fronteira), Guimarães explorou as ambivalências, a confusão e as incertezas do ser humano. Sua linguagem, com um dialeto que transita entre a invenção do autor e o dialeto sertanejo, tornava a ideia de adaptar para o cinema uma empreitada desafiadora, para não dizer uma ideia maluca. O cineasta Guel Arraes (“O Auto da Compadecida” e “Lisbela e o Prisioneiro”) estava ciente disso. Porém, abastecido de experiência e maturidade suficientes no audiovisual, decidiu seguir em frente.

O resultado pode ser visto a partir desta quinta-feira (6) nos cinemas brasileiros com o lançamento da obra “Grande Sertão”. Para Guel, este é o projeto mais importante de sua carreira até o momento. Para realizá-lo, foram necessários cinco anos de produção.

“Eu achava que, para adaptar esta obra para o cinema, era preciso termos algo novo a acrescentar à história de Guimarães, para não fazermos apenas uma ilustração do livro. Imaginamos que o romance regionalista era equivalente ao ‘favela-movie’ e que, através de Grande Sertão, poderíamos lançar um olhar diferente sobre esse gênero”, conta o cineasta. “Nós tentamos fazer do filme uma obra mais popular que o livro, mas sem vulgarizá-lo. Por exemplo, privilegiamos a ação dramática e contamos a história em ordem cronológica.”

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“Nós tentamos fazer do filme uma obra mais popular que o livro, mas sem vulgarizá-lo. Por exemplo, privilegiamos a ação dramática e contamos a história em ordem cronológica”

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Caio Blat como Riobaldo, o narrador da história (Ricardo Brajterman/divulgação)

A adaptação de Guel Arraes e Jorge Furtado mescla diferentes linguagens. É profundamente teatral na apresentação de seus personagens, suas selvagerias, desejos e sofrimentos, mas também adota uma abordagem documental em alguns momentos, como se o narrador estivesse relatando tudo que se passou como um evento passado. Isso permite capturar a riqueza discursiva do protagonista, Riobaldo, que, tanto no livro quanto no filme, age como se estivesse sendo entrevistado. Na obra de Guimarães Rosa, Riobaldo responde a um “Doutor” da cidade que está hospedado em sua casa, sem que as perguntas do interlocutor sejam reveladas. No filme, por sua vez, o correspondente é o próprio espectador.

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Falando diretamente com a câmera, Riobaldo conta a história (Ricardo Brajterman/divulgação)
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“Grande Sertão” de Guel Arraes reimagina a guerra sertaneja em um vasto complexo periférico. Em conflito está a Polícia, de um lado, e uma organização criminosa, de outro. No meio, estão os moradores, privados da visão de uma realidade pacífica. Por vezes, os dois grupos se confundem e se assemelham, tornando ainda mais complexa a compreensão dos motivos de cada um. É, em última instância, uma guerra pelo poder e território, embora alguns almejem e lutem pela paz. Esse é o caso de Riobaldo, professor de educação primária, que testemunha o desespero de seus alunos enfrentando tiroteios, culminando na morte de uma estudante.

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(Helena Barreto/divulgação)

O tom dado à interpretação dos personagens teve como ponto de partida o desejo do diretor de se diferenciar de uma representação já existente da história de Guimarães. “Falar sobre a verdadeira guerra civil que vivemos no Brasil nos parecia uma tarefa importante. Para isso, era necessário acrescentar algo novo aos vários filmes e séries brasileiras que tratam desse assunto. Então, nos demos conta de que Guimarães havia renovado a história de jagunços e cangaceiros, uma das vertentes do romance regionalista, trazendo para ela o ponto de vista dos bandidos e dando à sua história um tratamento barroco, contrário ao realismo desses romances.”

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Luis Miranda em cena como Zé Bebelo (Helena Barreto/divulgação)
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Ao longo da narrativa, Riobaldo se reencontra com um amigo de infância, Diadorim, por quem tinha grande admiração, em especial por sua coragem, que coexistia em equilíbrio com a sua delicadeza. É por causa de Diadorim, membro da organização criminosa, que Riobaldo decide se unir à luta armada. Um dos pontos cruciais da trajetória do protagonista é o conflito interior decorrente da paixão por Diadorim. Afinal, naquele contexto seria impossível dois homens se relacionarem.

“Guimarães dá muitos significados para a palavra. Pensando no nosso filme, se trocássemos Sertão por Favela, seria assim: ‘A Favela é dentro da gente. A Favela é boa. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado… A Favela, – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, a favela vem. A Favela é dentro da gente. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa a favela, ou a favela bendita vos governa…’”

Além da ação que se desenrola, o filme incorpora pensamentos e reflexões que o autor traz no romance. Com isso, está o próprio sentido do Sertão. “Guimarães dá muitos significados para a palavra. Pensando no nosso filme, se trocássemos Sertão por Favela, seria assim: ‘A Favela é dentro da gente. A Favela é boa. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado… A Favela, – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, a favela vem. A Favela é dentro da gente. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa a favela, ou a favela bendita vos governa…’”

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(Ricardo Brajterman/divulgação)
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Curiosamente, a obra de Guimarães está sendo especialmente reverenciada neste ano. Além do filme de Guel, o manuscrito foi recriado pela diretora Bia Lessa, um desdobramento da peça teatral montada por ela em 2017. Uma coincidência ainda maior é a participação de parte do elenco em ambas as produções. O ator Caio Blat repete o papel como Riobaldo, o condutor da trama, enquanto Luisa Arraes, que interpretou diversos personagens na montagem de Lessa, encarna o jagunço Diadorim, a grande paixão de Riobaldo.

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(Gustavo Hadba/divulgação)

Luisa, portanto, já possuía bastante familiaridade com a obra de Guimarães antes de entrar no novo projeto. O romance já estava em seu imaginário muito antes de interpretá-lo no teatro. “A primeira vez que eu li O Grande Sertão, eu tinha 18 anos. Acho que foi o primeiro e único livro que eu achava mais legal ler do que viver. Então, eu ensaiava uma peça, fazia coisas, mas eu gostava mesmo era de entrar ali naquele mundo. Digamos que o mundo do Guimarães era muito mais interessante que o mundo real. Ou o mundo do Guimarães me ajudava a achar mais graça no mundo real”, compartilha a atriz.

“A primeira vez que eu li O Grande Sertão, eu tinha 18 anos. Acho que foi o primeiro e único livro que eu achava mais legal ler do que viver. Então, eu ensaiava uma peça, fazia coisas, mas eu gostava mesmo era de entrar ali naquele mundo. Digamos que o mundo do Guimarães era muito mais interessante que o mundo real. Ou o mundo do Guimarães me ajudava a achar mais graça no mundo real”

Luisa Arraes
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(Helena Barreto/divulgação)

Somada à responsabilidade de representar uma das obras mais importantes da literatura, estava o desafio de encarnar um dos personagens mais importantes e complexos da narrativa. “Diadorim é um personagem muito idealizado, porque só o conhecemos através da paixão de Riobaldo. Então, a primeira coisa que eu queria era desidealizá-lo”, revela Luisa.

O filme marca também um momento especial na trajetória de Guel e Luisa: o encontro de pai e filha, diretor e atriz. “Foi uma emoção artística e pessoal. Até agora, ambos tivemos carreiras independentes, mas este foi o trabalho mais desafiador de nossas carreiras”, declara Guel.

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Cartaz do filme (Grande Sertão (2023)/divulgação)
Grande Sertão

Brasil. 2023. 1h 48m

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