Guel Arraes reinventa obra de Guimarães Rosa
Adaptação de "Grande Sertão: Veredas" atualiza o romance sertanejo para uma guerra urbana entre polícia e organização criminosa
Para Guimarães Rosa, o Sertão era muito mais do que um território árido e vazio. Ele representava um universo infinito, possivelmente do “tamanho do mundo”. No coração desse vasto nada, os pensamentos e as dúvidas se erguiam, revelando a plenitude e ambiguidade da humanidade, que oscilava entre o bem e o mal, navegando com facilidade entre os extremos.
Com mais de 700 páginas (da Editora Nova Fronteira), Guimarães explorou as ambivalências, a confusão e as incertezas do ser humano. Sua linguagem, com um dialeto que transita entre a invenção do autor e o dialeto sertanejo, tornava a ideia de adaptar para o cinema uma empreitada desafiadora, para não dizer uma ideia maluca. O cineasta Guel Arraes (“O Auto da Compadecida” e “Lisbela e o Prisioneiro”) estava ciente disso. Porém, abastecido de experiência e maturidade suficientes no audiovisual, decidiu seguir em frente.
O resultado pode ser visto a partir desta quinta-feira (6) nos cinemas brasileiros com o lançamento da obra “Grande Sertão”. Para Guel, este é o projeto mais importante de sua carreira até o momento. Para realizá-lo, foram necessários cinco anos de produção.
“Eu achava que, para adaptar esta obra para o cinema, era preciso termos algo novo a acrescentar à história de Guimarães, para não fazermos apenas uma ilustração do livro. Imaginamos que o romance regionalista era equivalente ao ‘favela-movie’ e que, através de Grande Sertão, poderíamos lançar um olhar diferente sobre esse gênero”, conta o cineasta. “Nós tentamos fazer do filme uma obra mais popular que o livro, mas sem vulgarizá-lo. Por exemplo, privilegiamos a ação dramática e contamos a história em ordem cronológica.”
“Nós tentamos fazer do filme uma obra mais popular que o livro, mas sem vulgarizá-lo. Por exemplo, privilegiamos a ação dramática e contamos a história em ordem cronológica”
A adaptação de Guel Arraes e Jorge Furtado mescla diferentes linguagens. É profundamente teatral na apresentação de seus personagens, suas selvagerias, desejos e sofrimentos, mas também adota uma abordagem documental em alguns momentos, como se o narrador estivesse relatando tudo que se passou como um evento passado. Isso permite capturar a riqueza discursiva do protagonista, Riobaldo, que, tanto no livro quanto no filme, age como se estivesse sendo entrevistado. Na obra de Guimarães Rosa, Riobaldo responde a um “Doutor” da cidade que está hospedado em sua casa, sem que as perguntas do interlocutor sejam reveladas. No filme, por sua vez, o correspondente é o próprio espectador.
“Grande Sertão” de Guel Arraes reimagina a guerra sertaneja em um vasto complexo periférico. Em conflito está a Polícia, de um lado, e uma organização criminosa, de outro. No meio, estão os moradores, privados da visão de uma realidade pacífica. Por vezes, os dois grupos se confundem e se assemelham, tornando ainda mais complexa a compreensão dos motivos de cada um. É, em última instância, uma guerra pelo poder e território, embora alguns almejem e lutem pela paz. Esse é o caso de Riobaldo, professor de educação primária, que testemunha o desespero de seus alunos enfrentando tiroteios, culminando na morte de uma estudante.
–O tom dado à interpretação dos personagens teve como ponto de partida o desejo do diretor de se diferenciar de uma representação já existente da história de Guimarães. “Falar sobre a verdadeira guerra civil que vivemos no Brasil nos parecia uma tarefa importante. Para isso, era necessário acrescentar algo novo aos vários filmes e séries brasileiras que tratam desse assunto. Então, nos demos conta de que Guimarães havia renovado a história de jagunços e cangaceiros, uma das vertentes do romance regionalista, trazendo para ela o ponto de vista dos bandidos e dando à sua história um tratamento barroco, contrário ao realismo desses romances.”
Ao longo da narrativa, Riobaldo se reencontra com um amigo de infância, Diadorim, por quem tinha grande admiração, em especial por sua coragem, que coexistia em equilíbrio com a sua delicadeza. É por causa de Diadorim, membro da organização criminosa, que Riobaldo decide se unir à luta armada. Um dos pontos cruciais da trajetória do protagonista é o conflito interior decorrente da paixão por Diadorim. Afinal, naquele contexto seria impossível dois homens se relacionarem.
“Guimarães dá muitos significados para a palavra. Pensando no nosso filme, se trocássemos Sertão por Favela, seria assim: ‘A Favela é dentro da gente. A Favela é boa. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado… A Favela, – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, a favela vem. A Favela é dentro da gente. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa a favela, ou a favela bendita vos governa…’”
Além da ação que se desenrola, o filme incorpora pensamentos e reflexões que o autor traz no romance. Com isso, está o próprio sentido do Sertão. “Guimarães dá muitos significados para a palavra. Pensando no nosso filme, se trocássemos Sertão por Favela, seria assim: ‘A Favela é dentro da gente. A Favela é boa. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado… A Favela, – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, a favela vem. A Favela é dentro da gente. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa a favela, ou a favela bendita vos governa…’”
Curiosamente, a obra de Guimarães está sendo especialmente reverenciada neste ano. Além do filme de Guel, o manuscrito foi recriado pela diretora Bia Lessa, um desdobramento da peça teatral montada por ela em 2017. Uma coincidência ainda maior é a participação de parte do elenco em ambas as produções. O ator Caio Blat repete o papel como Riobaldo, o condutor da trama, enquanto Luisa Arraes, que interpretou diversos personagens na montagem de Lessa, encarna o jagunço Diadorim, a grande paixão de Riobaldo.
Luisa, portanto, já possuía bastante familiaridade com a obra de Guimarães antes de entrar no novo projeto. O romance já estava em seu imaginário muito antes de interpretá-lo no teatro. “A primeira vez que eu li O Grande Sertão, eu tinha 18 anos. Acho que foi o primeiro e único livro que eu achava mais legal ler do que viver. Então, eu ensaiava uma peça, fazia coisas, mas eu gostava mesmo era de entrar ali naquele mundo. Digamos que o mundo do Guimarães era muito mais interessante que o mundo real. Ou o mundo do Guimarães me ajudava a achar mais graça no mundo real”, compartilha a atriz.
“A primeira vez que eu li O Grande Sertão, eu tinha 18 anos. Acho que foi o primeiro e único livro que eu achava mais legal ler do que viver. Então, eu ensaiava uma peça, fazia coisas, mas eu gostava mesmo era de entrar ali naquele mundo. Digamos que o mundo do Guimarães era muito mais interessante que o mundo real. Ou o mundo do Guimarães me ajudava a achar mais graça no mundo real”
Luisa Arraes
Somada à responsabilidade de representar uma das obras mais importantes da literatura, estava o desafio de encarnar um dos personagens mais importantes e complexos da narrativa. “Diadorim é um personagem muito idealizado, porque só o conhecemos através da paixão de Riobaldo. Então, a primeira coisa que eu queria era desidealizá-lo”, revela Luisa.
O filme marca também um momento especial na trajetória de Guel e Luisa: o encontro de pai e filha, diretor e atriz. “Foi uma emoção artística e pessoal. Até agora, ambos tivemos carreiras independentes, mas este foi o trabalho mais desafiador de nossas carreiras”, declara Guel.
Brasil. 2023. 1h 48m