Lázaro Ramos,Ó Pai Ó 2 e aquilombamento: “É um passeio polifônico de buzu”
Em entrevista à Bravo! o ator e produtor entrega os desafios e as delícias de retomar o projeto de 'Ó Pai Ó' com um segundo filme nos cinemas
“15 anos passaram picado”, é assim que o cantor Roque, protagonista interpretado por Lázaro Ramos, apresenta a primeira cena de Ó Pai Ó 2, filme que estreou no fim de novembro com sessões lotadas em Salvador e vem repetindo o sucesso em salas de cinema diferentes capitais do país.
O longa dirigido por Viviane Ferreira dá sequência ao projeto de sucesso que começou como peça criada pelo Bando de Teatro Olodum, depois virou série na Rede Globo nos anos 2000, e foi desdobrado também em um filme homônimo em 2008. O que pouca gente sabe é que Lázaro não participaria de Ó Pai Ó 2.
“Pensei que essa história já tinha se esgotado. E, de repente, quando o público jovem começou a refazer cenas e postar em seus perfis pessoais nas redes sociais, memes apareceram, frases foram compartilhadas, a cena com o Wagner virou música do Emicida. Foi aí que a gente entendeu que tinha uma permanência dos personagens e, acima de tudo, dos assuntos que os personagens trazem. Então, o grupo se reuniu para pensar num novo filme”, revela em entrevista à Bravo!.
A trama disruptiva acompanha os muitos dias de luta e alguns relances de glória de taxistas, donas de casa, cabeleireiras, comerciantes e aspirantes a artistas que moram num mesmo cortiço do Pelourinho de Salvador. Os maneirismos, gírias típicas de Salvador que dividiram opiniões no primeiro filme permanecem e se aprimoram ainda mais em Ó Pai Ó 2.
“Lembro muito da primeira crítica dizer que ‘Ó Pai Ó’ era o filme com o pior título brasileiro de todos os tempos, rejeitando uma expressão baiana que conseguiu se comunicar com o Brasil todo. Então você já tinha ali um preconceito regional. Num determinado momento, o filme também foi acusado de ter personagens caricatos. O filme tem uma estrutura de história que é de pessoas batalhando por sua sobrevivência e, portanto, todos eles se comportam como showmans. É uma estrutura sofisticadíssima e que depende de uma sensibilidade para ser reconhecida”, revela Lázaro.
Passados alguns anos e uma pandemia que impactou as gravações no meio do caminho, Ó Pai Ó 2 veio com uma bagagem extremamente atual e levanta debates importantes sobre amor LGBTQIAPN+, saúde mental, racismo, luta de classes, independência financeira, diferenças geracionais, fé e mais. Tudo focado na população negra e apresentado em uma linguagem popular, simples e atual. “Em Ó Pai Ó, a gente viu que a mulher trans era objeto de desejo, em Ó Pai Ó 2, ela é amada. No primeiro filme, a Maria era uma mulher gestante que constantemente era enganada e traida pelo seu marido. Ela reclamava, mas se mantinha naquele relacionamento. Agora, Maria se libertou desse relacionamento e encontra um novo amor e também trabalha sua independência financeira. Quando começamos a pesquisa para o segundo filme, não queríamos rejeitar o primeiro, mas sim aprimorar alguns assuntos“, explica.
O roteiro acompanha o luto de Dona Joana (Luciana Souza) por perder os filhos Cosme e Damião, a movimentação dos moradores do bairro para Neusão recuperar o bar que foi perdido por causa de dívidas acumuladas e a caminhada de Roque ainda na busca de lançar sua primeira composição e estourar na carreira de cantor. Outro ponto interessante está no destaque para a nova geração e sua relaçnao com slam, Inteligência Artificial e programação, que tem papel fundamental no desenrolar do filme (sem spoilers).
Talvez uma ou outra cena musical pudesse ter sido reduzida, mas os recados que o filme passa são urgentes para a contemporaneidade brasileira e merecem ser vistos por todos. Quando questionado sobre os maiores desafios do filme, ele é categórico: “Acima de tudo, não queríamos fazer mais um filme caça-níqueis só para gerar público. Esse era o maior desafio e a maior responsabilidade. E o propósito do filme é falar sobre os temas importantes para a comunidade negra, para o Brasil hoje em dia.” Confira abaixo a entrevista completa com Lázaro sobre os bastidores de Ó Pai Ó 2:
Lázaro, eu li que Ó Pai Ó 2 foi motivado por causa de pedidos do próprio público nas redes sociais.Como isso aconteceu exatamente?
Isso foi muito natural. Uma coisa que eu não falei ainda é que eu não iria fazer Ó Pai Ó 2 por uma decisão pessoal, achei que já tinha sido contado tudo que precisava ser contado na série, no primeiro filme e na peça de teatro. Pensei que essa história já tinha se esgotado. E, de repente, quando o público jovem começou a refazer cenas e postar em seus perfis pessoais, memes apareceram, frases foram compartilhadas, a cena com o Wagner virou música do Emicida. Foi aí que a gente entendeu que tinha uma permanência dos personagens e, acima de tudo, dos assuntos que os personagens trazem. Então, o grupo se reuniu para pensar num novo filme. Esse grupo passa pelos produtores, pelo Bando de Teatro Olodum, que são os donos e os senhores dessa história e passa por mim também. Depois, convocamos novos roteiristas, como Elísio Lopes Júnior, Igor Verde, Daniel Arcades e também Viviane Ferreira, a nova diretora
A pandemia impactou os rumos do projeto?
O filme começou a ser feito antes da pandemia e parou exatamente por causa dela. Nesta primeira versão, eu ia aparecer simbolicamente e o Roque teria apenas uma cena. Só que o isolamento social e a pandemia de COVID-10 fizeram com que a gente refletisse muito sobre os temas que o filme trazia. A questão da moradia, da habitação, a luta antirracista, os afetos, criação de filhos, o tema da saúde mental. E Ó Pai Ó 2 tem uma linguagem muito popular que consegue discutir esses temas através dos arquétipos desses personagens e contemplar um público que estava sedento por esse filme. Os personagens e o público nos ensinaram muito.
Como foi essa mudança de roteiro na prática?
Não acho que o “Ó Pai Ó” seja só sobre o Roque. Ele é realmente sobre toda essa comunidade. E esse segundo filme fala muito sobre isso. A gente vai entrar nesse tema mais a fundo. Antes eu implicava muito, porque já sou artista, então questionei esse lugar de fazer outro filme sobre um artista que vai ficar cantando um monte de música e sonhando que quer ser famoso.
Mas aí eu tive um clique que mudou tudo e percebi que, depois de 15 anos, se o personagem ainda está sonhando em ter seu espaço respeitado e reconhecido como artista, é sinal de que ele foi invisível. E esse é um tema importante. Esse filme dá o salto para que ele use a sua voz enquanto compositor. E isso foi a chave.
E a partir daí, a gente foi construindo os outros lugares e camadas, o lugar do afeto dele, o lugar de pai. E Roque é um tipo de pai que a gente precisa ver no cinema. Esse pai presente, que está junto com o seu filho e reconhece o saber da geração mais nova. Ele é amigo, mas também é orientador. E aí apareceu esse novo Rocky. Rocky Revisitado.
Como foi voltar para o Pelourinho para retomar Ó Pai Ó 15 anos depois do filme original?
Acima de tudo, não queríamos fazer mais um filme caça-níqueis só para gerar público. Esse era o maior desafio e a maior responsabilidade. E o propósito do filme é falar sobre os temas importantes para a comunidade negra, para o Brasil hoje em dia. E aí foi uma gincana, basicamente. Uma gincana de discussões longas, de ensaios longos, de debates profundos com todos os criadores, de argumentação, de rejeição, de proposta de caminhos a se seguir. Isso não somente da minha parte, mas da parte de todo o grupo. Estou trabalhando com os meus primeiros ídolos, que são as atrizes e os atores do bando, eles são pessoas que eu admiro demais e que gostaria de ser quando crescesse.
Tem alguma lembrança especial das filmagens que tenha te marcado?
Lembro do primeiro dia de filmagem, que eu saí exausto, mas não era exatamente por fazer a cena. Era porque eu queria agradar as atrizes e os atores do bando. Eu ficava fazendo palhaçada, ficava contando história, ficava matando saudade. Tudo ao mesmo tempo. Me senti o Lázaro com 15 anos de idade quando entrei para o Bando de Teatro.
Qual é o legado do Bando de Teatro Olodum que todos deveriam conhecer?
O grupo é composto por atores-criadores, por artistas que são referência para o Brasil enquanto cultura, pela longevidade, inclusive. Tenho reforçado muito essa questão. O Bando de Teatro Lodum é um dos grupos com maior longevidade da América Latina. São 34 anos. E esse grupo segue produzindo, fazendo teatro, aos trancos e barrancos, convocando novas pessoas, mantendo quem ajudou a criar e quem quis permanecer no grupo. Isso é algo de um grande valor e acho que a gente fala pouco sobre isso no Brasil.
Você fala bastante sobre quem pavimentou o lugar e tem uma cena muito linda só de apresentação e de reverência a grandes artistas que acredito que também te influenciaram. E agora, toda uma nova geração vai poder conhecer esses artistas através do filme.
Essa é uma das mensagens poderosas que eu acho que está nessa cena, essencialmente, mas também está no raciocínio do filme todo. Por um lado, é importante lembrar que precisamos reverenciar e fazer referência a quem veio antes. Precisamos conhecer, porque muitas vezes a gente está falando coisas inéditas, só que já foram ditas anos atrás em outro contexto. A luta já vem de muito tempo. E já tem gente que produz conhecimento há muito tempo.
É importante dar voz a essas nossas referências e também reconhecer as estratégias da nova geração, por isso o elenco jovem e os temas que eles trazem são tão presentes. Isso tudo se resume nesse tema profundo que é o aquilombamento, que é fazer a gira girar. É o pensamento circular do nosso ativismo que o Muniz Sodré tanto fala. E que vem de uma cultura africana e afro-brasileira. Você está em círculo. É um olhar para o outro. Um experimentar o lugar do outro. O filme bebe desse conceito profundamente e fico muito feliz por comunicarmos isso de um jeito tão popular, simples e aberto para todo mundo. Fico torcendo para que todo mundo capte essa mensagem.
Reassiti O Pai Ó para ver O Pai Ó 2 e existem muitas semelhanças e diferenças entre os dois filmes. Eu queria que você comentasse um pouquinho sobre essas dualidades.
Acredito que esse foi o motivo pelo qual o filme permaneceu tanto tempo por essa atualidade das pautas, mas você traz uma questão muito bonita também que é a gente ir aprimorando a nossa linguagem. Todos os projetos de Ó Pai Ó, a peça, o filme, a série, falavam muito sobre sua época, mas sempre com um passinho à frente.
O primeiro filme tem duas coisas que me chamam muito a atenção: eu lembro muito da primeira crítica do filme dizer que Ó Pai Ó era o filme com o pior título brasileiro de todos os tempos, rejeitando uma expressão baiana que conseguiu se comunicar com o Brasil todo. Então você já tinha ali um preconceito regional.
A segunda coisa é que, num determinado momento, o filme foi acusado de ter personagens caricatos, não reconhecendo uma estrutura sofisticadíssima que está na tela. Ela depende de uma sensibilidade para ser reconhecida. O filme tem uma estrutura de história que é de pessoas batalhando por sua sobrevivência e, portanto, todos eles se comportam como showmans, precisando sim chamar a atenção, falando alto, se expressando com gestos grandes. São trejeitos e maneirismos de falar que vemos nas ruas de Salvador. E, no geral, as pessoas precisam ser assim porque são invisibilizadas. Elas precisam ser showman porque estão ali buscando seu sustento. Na segunda parte do primeiro filme, a gente vai para a casa deles e mostramos a intimidade das faltas e, no final, Ó Pai Ó mostra que também veio para falar desse assassinato de jovens que está acontecendo todos os dias no nosso país.
Existiu uma #BoicoteLazaroRamos por parte de bolsonaristas querendo gongar o filme. O assunto ficou nos trending topics do X, antigo Twitter, mas senti ela teve efeito contrário porque “O Pai Ai 2” não só teve todos os ingressos da pré-estreia esgotados, como o circuito foi ampliado em Salvador, não foi isso?
Eu sou um ator muito celebrado, mas nada do que eu faço é sobre mim e já faz um tempo, desde que eu comecei, é claro que eu pensei sempre no meu sustento, claro que eu pensei em ter projeção, mas o que me guia desde sempre é o coletivo. E isso está como minha produtora se portou durante todo o tempo que existiu, isso está expresso na maneira que eu monto as minhas equipes para fazer os meus filmes. A minha voz nunca é somente minha, é de um coletivo também. Agora esse coletivo também se estende também ao público. Ó Pai Ó 2, acima de tudo, é do público. Foi o público que convocou a retomada do filme.
Em Salvador aconteceu esse movimento inédito de aumentarmos as sessões de pré-estreia. Eram somente cinco salas, depois aumentou para dez e os donos do cinema pediram para ter mais cinco sessões às 18h30. Os ingressos esgotaram em meia hora. Colocamos mais cinco sessões às 16h e também esgotou em meia hora. Pediram autorização para adicionarmos mais duas sessões às 2h tarde, e ela esgotou em quinze minutos, de uma forma inédita. O Pai Ai 2 adiantou a sua estreia o filme em Salvador com lotação de 95% em todos os sábados. Inclusive, o CineMeta Glauber Rocha — num movimento que eu nunca vi acontecer — tirou alguns filmes internacionais para incluir Ó Pai Ai Ó em mais salas e também teve sessões esgotadas. Isso é uma identificação local com Salvador e já diz muito. Fala sobre o cinema feito regionalmente. Fala sobre o cinema negro e sobre um filme que está atento a como o público quer se ver na tela. São mensagens muito poderosas.
Quais foram os desafios desse projeto enquanto produtor e como que foi a preparação de elenco desse elenco?
Foi com pouco dinheiro e num curto espaço de tempo. Ó Pai Ó 2 só foi possível por causa da inteligência cênica das atrizes dos atores do Bando, eu sou produtor associado, o que significa que você recebe um pouco menos e dá pitaco onde não devia. O filme não tinha os recursos necessários para sua realização, mas acaba que o Bando generosamente se colocou à disposição do projeto com antecedência se reuniu em sala de ensaio no seu período e no teatro em que eles ocupam. Filmamos em quatro dias antes da pandemia e, depois dela, foram três semanas e meia corridas, que eu acho que é injusto inclusive com a obra não foi no modelo ideal. Os atores do Bando têm uma inteligência cênica, que muitas vezes não é reconhecida, que fez com que o filme fosse o que é e também tivemos a entrada de pessoas que tiveram sensibilidade para contar essas histórias, como a diretora Viviane Ferreira e a equipe técnica da diretora de fotografia Lilis Ferreira.
O roteiro é assinado por muitas mãos, eu acho que isso também fica evidente no resultado final. Temos várias pautas colocadas por um motivo e eu achei muito lindo que no final da gente ver os créditos e ver o rosto das pessoas que participaram dos bastidores.
Eu tenho tido a alegria de como diretor conseguir fazer isso em Medida Provisória e em Outono. Acredito que esse seja um movimento necessário de reconhecimento, principalmente no nosso cinema brasileiro, porque são autores e projetos que tem uma paixão além do que se espera o que os códigos de trabalho. Para você ter uma ideia, numa cena que eu falo com o vilão do filme, uma das falas mais importantes que eu tenho ali vem de uma das integrantes da da equipe de figurino. E ela aconteceu quando eu estava ensaiando aquela fala mexendo, acrescentando coisas e ela disse: ‘Você tinha que falar que eles querem que a gente segure a corda pro bloco deles passar’. Uma frase genial, que eu incorporei na cena. Esse é só um dos exemplos de como é importante para a gente contar essas histórias. O recado é dado direto e reto e eu acho que você também direciona uma raiva muito contida que integra muitos de nós em momentos que a gente gostaria de falar tudo aquilo que está entalado. Essa cena, ela é uma continuidade do nosso ativismo.
Quem é o Lázaro depois de “Ó Paí Ó 2”?
Lázaro reafirma os valores que aprendeu no Bando Teatro Oudum, aos 15 anos, quando encontra sua voz como artista, encontra suas referências, seus ídolos seus temas.
Tem alguma mudança ou direcionamento que Viviane Ferreira tenha feito que você ache que vale a pena destacar?
É muito lindo o ponto de vista da diretora com aa personagem Joana. O jeito que ela filma, jeito que ela fala sobre saúde mental com sensibilidade. O jeito que ela enquadra a personagem. É uma assinatura bonita dela como diretora. Esse é um filme polifônico, são muitas vozes e ela foi muito respeitosa com esse grupo e muito generosa na maneira de lidar com todos nós porque todo mundo queria ter sua voz escutada e ter a sua autoria impressa no filme.
Tem algum outro tópico que você gostaria de abordar nessa conversa?
Queria falar uma coisa que é uma coisa que eu tenho pensado muito. Eu tenho feito muito cinema, tenho trabalhado com streaming, TV aberta e tenho visto, principalmente nas tentativas de filmes mais populares, uma busca por uma fórmula e um formato de como contar a história e ela acaba ficando morna. Não permanece com as pessoas. Ó Pai Ó, com o seu experimento cênico, carrega uma coisa muito interessante para a gente refletir enquanto formato de narrativa, um formato que ninguém mapeou ainda, mas eu acho que é narrativa de buzu, que é como a gente chama ônibus em Salvador. Ó Pai Ó parece um passeio de ônibus por um bairro onde você escuta uma música, escuta um pedaço de uma história escuta um problema de uma pessoa, vê um pedaço de afeto e você de uma forma polifônica você dá espaço para outro. É um filme popular. Acabo concordando muito com o que o Quentin Tarantino falou em Cannes no ano passado. Ele disse que ‘o streaming está correndo risco de tirar relevância do nosso cinema porque está buscando formatos engessados’. Ó Pai Ó é uma contribuição para desengessar as narrativas.
Muitas vezes, quando a gente vai fazer obras ligadas a pessoas negras, fala-se muito sempre do ativismo e da questão social, como se essas fossem as únicas camadas de criação, e eu queria evocar aqui os pensadores de narrativa a abrirem sua sensibilidade para fazer uma avaliação também não chamando de ‘tosco’ o que se coloca na tela, mas olhando se a mensagem que está chegando. Quando eu falei de um filme que começa com personagens se apresentando como showman, depois a intimidade, e depois o tema social…acredito que essa história se completa com esse segundo Ó Pai Ó, que traz outras maneiras de contar histórias, outras maneiras e possibilidades de sonhos, de imaginários criativos.