Longa-metragem ‘Levante’ amplia debate sobre aborto e redes de apoio
Conversamos com a diretora Lillah Halla e com a atriz Ayomi Domenica sobre um dos filmes nacionais mais aguardados do ano, que estreia dia 22/2 nos cinemas
Alguns assuntos, quando levados para a tela do cinema, parecem não ter muitas alternativas para além da tragédia. Isso acontece, sobretudo, com questões sociais ou mal resolvidas em um país. O aborto é, certamente, um deles. A diretora Lillah Halla sabia das dificuldades que poderia enfrentar ao fazer deste o argumento central de seu filme “Levante”, principalmente em uma sociedade polarizada em torno do assunto, mas não hesitou em sua decisão. Queria, acima de tudo, apresentar outras camadas e abordagens que não estamos acostumados a ver, sem deixar de lado a dramaticidade e as dificuldades que o tema engloba.
Com produção em três países (Brasil, França e Uruguai), “Levante” estreou na França antes mesmo de chegar ao Brasil. No centro da trama está Sofia (Ayomi Domenica), uma adolescente de 17 anos que vive em São Paulo. Ela faz parte de um coletivo de vôlei e sonha em ser atleta. Parte da história é sobre a sua relação de cumplicidade e confiança com as jovens de seu time. Não demora, entretanto, para fazer uma descoberta que impõe uma barreira em seus sonhos: está grávida. Assustada, ela busca meios de interromper a gestação e logo descobre uma clínica clandestina. O plano dá errado e, em vez do sigilo médico, ela é exposta em sua comunidade, desencadeando uma terrível perseguição de um grupo fundamentalista contra a jovem. O diferencial na abordagem de Lillah está no apoio que ela recebe de suas amigas e de seu pai, João (interpretado por Rômulo Braga), que, de certa maneira, a salvam de um destino mais cruel.
“Existe um lugar que é quase uma armadilha do cinema, com o qual sempre me debato. Parte desse processo foi entender o que não pode voltar a acontecer. Esse lugar da solidão, da indefensibilidade, do encurralamento, que ocorre principalmente com personagens mulheres e pessoas não brancas. Essa estrutura clássica dramatúrgica quase que serve ao sistema”, declara a diretora Lillah Halla. “Algo que se tornou evidente para nós foi a necessidade e o desejo de que a vida, a alegria e a potência fossem o foco do filme, e não a solidão e a morte, que são armadilhas da necropolítica de Estado, assim como da própria abordagem cinematográfica.”
“Levante” é o primeiro longa-metragem de Lillah, que já estreou o curta Menarca (2020). Ela conta que o projeto data de 2015, alguns anos após a descriminalização do aborto no Uruguai (em 2012), fato que desencadeou uma curiosidade sobre as transformações que o país passou desde então. O roteiro foi escrito pela dupla Lillah e María Elena Morán. “A ideia começou quando eu e Maria estávamos na fronteira entre Brasil e Uruguai, por outro motivo. E nos deparamos com esse lugar que é um espaço de encontro entre os dois países, muito mais do que de separação, onde há um trânsito constante entre os cidadãos brasileiros e uruguaios. Mas quando uma pessoa está grávida, atravessar a fronteira se torna uma questão de vida e morte.”
Depois disso, sem ter muita ideia de onde queriam chegar, as autoras passaram a se aprofundar na discussão e entrevistaram profissionais de saúde e militantes uruguaias. “Queríamos entender qual tinha sido o processo de transformação e que tipo de impacto isso [descriminalização do aborto] teve no país. Em pouquíssimo tempo antes, havia um número alarmante de mortes [por conta do aborto clandestino] de mulheres e pessoas que gestavam. Isso nos impressionou muito.”
No filme, como tantas outras jovens brasileiras em situação semelhante, Sofia é forçada a renunciar aos seus planos, um dos quais é participar de um campeonato que poderá ser decisivo para o seu futuro. Em um dos momentos, ela chega a fazer uma longa viagem de carro com seu pai para o Uruguai, mas ali tampouco consegue realizar o procedimento. Seus caminhos parecem se fechar.
No Brasil, o aborto só é autorizado em três circunstâncias: em caso de gravidez decorrente de estupro, se o feto for anencefálico ou se houver risco de vida para a pessoa gestante, até a 12ª semana de gestação. Ainda assim, diversas instituições de saúde têm dificultado a interrupção da gestação mesmo em casos autorizados por lei. Muitas vezes, essas barreiras ilegais são chanceladas até mesmo pela própria Justiça. Até 2021, o aborto inseguro era uma das principais causas de morte materna no país, sendo que as mulheres negras são as principais vítimas, justamente pela dificuldade no acesso a um procedimento seguro.
Ao longo do processo, Lillah conversou com diversas lideranças religiosas e se surpreendeu com a diversidade de sentimentos e opiniões sobre o assunto. “Tivemos um encontro com uma militante da Igreja Evangélica. Ela estava escondida porque estava sendo ameaçada. O trabalho dela foi muito inspirador e mudou minha perspectiva. É uma militância de base, de importância absoluta e de grande risco. É uma pessoa muito crente, fundamentada em valores cristãos, que tem muito a dizer sobre por que a descriminalização precisa acontecer.”
Reconhecimento internacional
O longa já fez uma extensa carreira internacional e conquistou importantes prêmios pelo caminho, como o de Melhor Filme Ibero-americano no Palm Springs International Film Festival (EUA), o Júri Jovem no Festival de Roterdã (Holanda) e Melhor Filme pela crítica da Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema) em Cannes.
Além da trama em si, a atriz Ayomi Domenica tem sido elogiada por sua atuação, chegando a receber o Coelho de Prata de Melhor Interpretação no Festival Mix Brasil, em 2023. A jovem de 23 anos começou a atuar aos 9 anos. Determinada em seguir na profissão, estudou Artes Cênicas na Unesp (Universidade Estadual Paulista). Seu primeiro longa foi “Na Quebrada”, de Fernando Grostein Andrade. Em seguida, participou de “Dente por Dente”, dirigido por Julio Taubkin e Pedro Arantes; “A Jaula”, dirigido por João Wainer; e as séries “As Seguidoras” e “Barba, Cabelo e Bigode”. Além do cinema, ela tem atuado no teatro, estrelando em 2022 “Mutação de Apoteose”, do Teatro Oficina.
Quando o elenco começou a dinâmica de preparação, ainda não havia sido definido o papel de cada artista. “Não queria que tocassem num lado mais emocional e pessoal que eu não pudesse controlar. Foi tudo realizado de forma muito técnica. Não queria que houvesse feridas; a ideia é que tudo fosse feito de maneira muito saudável. Tentei ao máximo me conectar com a adolescente que fui, com as vulnerabilidades e necessidades de acolhimento que eu tinha, e entender como seria, a partir disso, viver uma história parecida”, explica a atriz.
Participam também do filme Grace Passô, Gláucia Vandeveld e Loro Bardot e estreou em 22 de fevereiro nos cinemas
Levante
Lillah Halla
Brasil / França / Uruguai
99 min