Uma leoa chamada Luna Alkalay
A cinematográfica história de vida de uma mulher de 77 anos que se recusou – e segue se recusando – a se curvar diante dos militares, do etarismo e outras

Antes de completar 18 anos, já tinha morado em quatro países e noivado por acidente com um rapaz no Irã. Filha de um casal sobrevivente de um campo de concentração nazista, nos anos 1960 namorou o homem mais desejado do Brasil só para, na sequência, ajudar na fuga do homem mais procurado do mundo.
Nos anos 1970, dirigiu o primeiro longa-metragem da Chapada Diamantina e, nos 1980, foi aluna de Olavo de Carvalho. E se, com mais de 70 anos de vida, ela aprendeu o significado da expressão ghosting do pior jeito – na prática – foi também depois dos 70, e graças ao tal chá de sumiço, que ela aprendeu o significado de outra palavra: reconhecimento.
A escritora e cineasta Luna Alkalay tinha exatos 71 anos quando, durante a pandemia de Covid-19, se apaixonou por um homem 35 anos mais novo. O encantamento logo deu lugar a um relacionamento abusivo, que gerou um trauma, que gerou a necessidade compulsiva de escrever, que gerou seu primeiro longa de ficção depois de um hiato de 50 anos.
A morte abrupta do relacionamento proporcionou muitas coisas novas. Muitos nascimentos, muitos partos, todos sem anestesia. Lançado em 2024, o filme Trópico de Leão (2024) foi selecionado para os festivais de Tiradentes, de Brasília e o Femina, festival de cinema feminino do Rio de Janeiro.
Além de abrupto, o fim do relacionamento foi também silencioso, comunicado apenas através de gestos – a porta batida, o WhatsApp bloqueado. O nome do filme vem de um belo dia em que Luna se deparou com sua própria cama dividida por um edredom enrolado. “Esse lado é o seu. Esse é o meu. E esse é o trópico de Leão”, foi avisada.
“Quando um relacionamento chega ao fim, a tendência é encontrar explicações e culpas, de preferência no outro. Eu senti que ia desperdiçar uma grande oportunidade se eu não trouxesse aquilo para dentro para mim”
Luna, que fez faculdade de filosofia antes de se tornar cineasta, utilizou a queda como uma forma de compreender mais sobre si mesma. Mas quem é Luna Alkalay mesmo?

“Eu não posso fazer nada. Você está na sede da Gestapo”
Nascida em Milão em 1947, Luna é filha de Sofia, uma judia austríaca cuja fuga dos nazistas de Viena poderia ser a cena de abertura de um filme clássico da Segunda Guerra. Após ser presa, o general nazista achou algo de familiar no rosto da daquela jovem. Ele era cliente na loja de roupas onde ela trabalhava. Luna narra a história que ouviu da mãe: “O general falou: ‘eu não posso fazer nada, você está na sede da Gestapo. Mas eu vou deixar a porta aberta’. Ela se levantou, passou pela porta e desceu as grandes escadarias fazendo a saudação nazista.” Saiu pela porta da frente e só parou quando chegou em Sarajevo. Lá, conheceu o pai de Luna, um bósnio chamado Heskija que se recusava a falar alemão por conta de Hitler. Eles chegaram a viver juntos em um campo de concentração em Ferramonti, no sul da Itália. No Brasil, Heskija passou a ser chamado de Seu Chiquinho.

Com um ano e meio, Luna se mudou pra Buenos Aires, com seis pro Rio de Janeiro, com dez pra São Paulo e, aos 16, morou por um ano na Suíça, onde ficou amiga de uma iraniana. A convite dela, passou as férias na casa da família no Irã e, poucas semanas após retornar ao Brasil, foi surpreendida com a visita de uma senhora que falava persa e trazia nas mãos um presente e na boca uma pergunta: quando é o casamento?
Aparentemente, em um dos jantares no Irã, Luna tinha dançado junto com o filho da senhora e aquela dança específica implicava em noivado na tradição vigente. “Talvez tenha rolado uns beijinhos”, despista. “Ela foi embora muito puta. Caguei”. Luna ainda passaria um tempo em Sarajevo, onde conheceu o socialismo iugoslavo de Tito. “Lembro que achei um sapato lindo e o vendedor falou que não podia vender porque a tabela de preços ainda não tinha chegado. Tudo era tabelado. Achei isso incrível”. Ela tinha 17 anos quando voltou pro Brasil. Os calendários anunciavam os quatro números mais fúnebres do país naquele século: 1 9 6 4.

Doze jovens coloridos, dois policiais
No primeiro dia na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), na Rua Maria Antônia, Luna viu sua professora Marilena Chauí, à época com seus 25 anos, entrar na sala sem falar uma palavra e escrever uma frase na lousa: “penso, logo existo”. Em seguida, Marilena pede que os alunos produzam uma dissertação sobre a frase de René Descartes e, antes de sair da sala, deixa um aviso: quem não estiver disposto a estudar 8 horas por dia, o momento de desistir é agora. Muitos desistiram, outros foram mortos pela ditadura. Amigos dos núcleos de esquerda da faculdade, camaradas com quem Luna bebia nos botecos dos arredores, um dia saíram de casa e nunca mais voltaram.
Pela voz acesa e a cadência na fala, enfatizando cada detalhe dessa época, é fácil perceber que Luna se refere à filosofia como se fosse, ao mesmo tempo, uma amiga de longa data e um anteparo para a sanidade. Desde a adolescência, um grande ponto de interrogação paira sobre a cabeça de Luna. Por quê? Por que as coisas são como são? Por que o mundo é desse jeito? E a filosofia talvez fosse a pavimentação para encontrar essas respostas, embora dela derivasse ainda mais perguntas. Mas como pensar é quase uma vaidade, Luna, nossa leoa leonina, assume que cultiva uma certa metidez.
Quando seus olhos encontraram as “pessoas coloridas” na Cidade Universitária da USP, nada mais foi o mesmo pra Luna. De repente, o mundo não era mais preto e branco. “Uma gente linda, hippie, maravilhosa, correndo de um lado para o outro. Eles jogavam o tripé, a câmera, filmavam… era o grupo que estava fazendo um curta-metragem do Djalma Limongi Batista, um puta cineasta. Parei pra ver, achei aquilo tão bonito. E uma daquelas pessoas coloridas era o Aloysio.”
Ela se refere a Aloysio Raulino, prestigiado cineasta e diretor de fotografia brasileiro. E também um dos grandes amores da vida de Luna. Aloysio era gago, “profundamente gago”, mas toda a insegurança da fala se transformava em firmeza com a câmera na mão. Os dois produziram juntos Lacrimosa, um curta-metragem documental filmado em um único plano, que percorre toda a inauguração da Marginal Tietê, em São Paulo.
Depois disso, Luna e Aloysio embarcaram para a Chapada Diamantina onde rodaram um filme bancado pela herança que Aloysio recebeu quando seu pai, general, morreu. Embora o pai tivesse carreira militar e apoiasse a repressão, Aloysio era cúmplice ideológico de Luna. “Ele era inclusive muito mais radical que eu. Com ele eu aprendi a práxis”.
Aprendeu mesmo. Os dois se casaram, mas, antes de aproveitarem a Lua de Mel no Uruguai, foram incumbidos de uma missão: esconder o homem mais procurado do mundo.

And kept my shortcuts to myself
Paróquia Sagrado Coração de Jesus. Foi em frente a essa Igreja, na Avenida Morumbi da capital paulista, às 5h da manhã, que Luna e Aloysio encontraram Luiz Carlos Prestes para levá-lo ao Uruguai, fugindo da ditadura brasileira. O Partido Comunista precisava de um casal com pinta de rico, que fazia cinema, para levar o homem mais procurado do País até o outro lado da fronteira. E isso aconteceu em um fusca, Aloysio dirigindo, Luna no passageiro e Prestes no banco de trás.
Depois de muito ensaio, o discurso estava pronto: para quem viesse perguntar, aquele homem era o tio de Luna, que estava viajando com ela para Montevidéu onde iriam a um festival de cinema. Atrás do fusca, durante todo o percurso, a escolta de um carro com quatro membros do Partido Comunista “armados até os dentes”. Porque, segundo Luna, Prestes era tão respeitado no mundo inteiro que não poderia ser morto, havia um equilíbrio de forças com a União Soviética. Quem estaria na alça de mira eram os cúmplices – e ela sabia disso.
A viagem durou um dia inteiro, mas houve tempo suficiente para os fugitivos fazerem um piquenique no interior de Santa Catarina, lá pelo meio dia, estendendo uma toalha xadrez entre as árvores. Luna, mais cineasta do que guerrilheira, sacou a câmera para registrar esse momento, mas foi imediatamente reprimida. Se alguém achasse aquela fotografia, seria o fim deles todos.
Durante todo o percurso, Prestes “assobiava lindamente.” Anos depois, Luna ficou sabendo que ele fazia isso apenas quando estava muito nervoso. Foram parados por um comando que não os reconheceu e chegaram na fronteira, a última etapa, com um plano definido: só atravessariam no momento da troca de turno dos guardas, criando uma brecha de três minutos para os veículos que passassem por ali.
O fusca passou. Prestes estava seguro no Uruguai. Como foi a despedida? “Linda. Foi linda. Primeiro, porque a gente nunca mais ia se ver. Segundo, porque ele era o cavaleiro da esperança. O paladino.” Mas não foram apenas paladinos os personagens que entraram no surreal roteiro da vida de Luna.

Bebê Jupiteriano
Depois que passou um tempo na Índia, Luna se interessou pelo misticismo e, ao voltar para o Brasil, quis estudar astrologia. Começou a fazer um curso em uma escola chamada Júpiter. O dono atendia pelo nome de Olavo de Carvalho. Luna foi aluna do guru da extrema-direita e expoente do bolsonarismo antes dele comandar a construção de uma arca de Noé no bairro do Bixiga porque São Paulo iria inundar (spoiler: não inundou), e muito antes do escritor se tornar o que Luna não esperava.
Mesmo hoje, Luna reconhece Olavo como uma pessoa muito inteligente. Quando se refere ao antigo professor, percebe-se muito mais uma decepção do que qualquer outra coisa. “Olavo teve um processo de enlouquecimento; desvirtuação. Ele foi cooptado pelo que existe de mais estúpido. Todas as pessoas que o conheceram na mesma época que eu se surpreenderam muito quando ele surgiu com propostas tão rasas, que era exatamente o que atacava.”
Luna ficou triste quando ele morreu? “Não. Não. Daquilo que ele tava propondo, ninguém precisa”. Consta nos astros, nos signos, nos búzios. Se agora pouco falamos de quando Luna foi estudar sobre os astros, precisamos falar de quando Luna virou o objeto que enxerga os planetas: Luneta, o apelido que recebeu de Chico Buarque, seu namorado no começo da faculdade, na segunda metade dos anos 1960.
Chico cursava Arquitetura na FAU, Faculdade de Arquitetura da USP, e toda sexta-feira a turma dele e a turma de Luna se encontravam no Sambafo, um evento que rolava no boteco Quitanda na Rua Doutor Vila Nova, na Vila Buarque. Entre uma batida de coco e outra, olhos nos olhos quero ver o que você diz, se conheceram e namoraram por dois anos. “O Chico era espetacular. Engraçado, legal. Acompanhei de perto a feitura Morte Vida Severina, no TUCA, teatro da PUC. Eu fui nos ensaios e tudo. Aquilo virou minha cabeça, estar em contato tão próximo com a arte.”
Em seguida, Chico se mudou para o Rio e depois disso se falaram algumas vezes, chegaram a se encontrar, mas nunca ficaram novamente. “Ficou uma coisa, assim, idealizada. Bonita, platônica. E eu gosto muito desse lance platônico, porque aí você é livre… não tem defeito nenhum, né?”

Não fale comigo assim
Em 1974 Luna partiu pro interior da Bahia pra rodar Cristais de Sangue, o filme que ficou conhecido como o primeiro longa de ficção da Chapada Diamantina. Como cineasta, Luna também era responsável pela logística e logo o transporte dos 14 membros da equipe de filmagem se apresentou como o primeiro desafio. “Fui na companhia Rosa da Fonseca, que era um navio de passageiro pequeno, e pedi 14 passagens”.
O pagamento foi uma bela cena do navio atracando. Coisa de cinema. “Eu inventei o merchandising”, brinca Luna, mas pode chamar de luneta. Depois dos três dias de navio até Salvador, foram mais sete horas de estrada até Mucugê. A cidade foi escolhida como cenário porque meses antes, de férias, Luna a visitou e se arrebatou com a visão do cemitério bizantino todo branco cravado no pé da montanha na beira da cidade.
Filmaram em 35 mm e com som direto em uma época em que a regra era dublar na pós-produção. “A bateria da câmera pesava uns 5 quilos”, lembra Luna. Um dos materiais de divulgação do filme foi feito por Rogério Duarte, o artista por trás do icônico cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e responsável pela capa do disco Tropicália.
Em 2024, ela voltou pra Mucugê. Dessa vez de avião e recebida pela banda marcial da cidade: a prefeitura a convidou pra exibir o filme no coreto da praça principal. Muitos dos presentes da sessão participaram ou eram filhos e netos de gente que participou; seja na tela como figurante, seja no acolhimento da recepção da equipe durante aquelas semanas de filmagem 50 anos antes. “As pessoas na praça berravam ‘Ó eu ali! ó Seu eu ali’! A cidade fez parte do filme”.
A cópia exibida no coreto foi a versão restaurada por Felipe Abramovictz, pesquisador de cinema de 29 anos que acabou se tornando amigo e parceiro criativo de Luna. “Toda vez que eu olho para o Felipe, está escrito na testa dele: eu ressuscitei você”. Meses depois de Mucugê, a Cinemateca Brasileira promoveu a Fantasias do Real – Mostra Luna Alkalay, uma retrospectiva que apresentou vários dos filmes em que ela participou como diretora, roteirista, produtora e atriz.
O filme restaurado, a volta pra Mucugê e a mostra na Cinemateca foram os primeiros movimentos de um reconhecimento que Luna só experimentou depois de chegar na tal “melhor idade”. “Envelhecer é difícil pra cacete. O velho não presta pra porra nenhuma nessa sociedade porque não trabalha e não se reproduz”, confessa. E Luna imita com uma voz aguda de criança a maneira que é tratada em hospitais, sempre com diminutivos. “‘Vou dar uma picadinha. É só uma dorzinha’. Eu digo: ‘não fale comigo assim’”.

Levanta, sacode a poeira
Corta pra quatro anos antes. Enquanto o reconhecimento aguardava na próxima esquina, no quarteirão atual Luna tomava um tombaço. Ela se apaixonou por um homem que tinha algo ainda mais do que os 35 a anos a menos: ele conhecia os filmes de Luna. O relacionamento se mostrou muitas vezes tóxico e algumas vezes até abusivo. Um belo dia ele levantou e falou: “Não temos mais nada pra dizer um ao outro”. Ao contrário do general nazista, ele bateu a porta. Mas foi quando ele a bloqueou no WhatsApp que a pesada ficha da rejeição caiu. Luna caiu junto. E pra se levantar, escreveu, escreveu e escreveu. Quando falam que a arte salva, estão falando também disso.
Ela juntou Nuno Leal Maia, Jairo Mattos e a estrela do Cinema Novo, Helena Ignez, com gente que nunca tinha feito um longa antes. No filme Trópico de Leão, Luna se divide em três personagens da mitologia grega pra lidar com a perda repentina de seu Narciso. Eco, a que repete, Penélope, a que espera e Medeia, a que se desespera.
Apesar da evidente crueldade com que foi tratada, Luna, a estudante de filosofia, analisa o próprio narcisismo durante o filme. Confrontada com a maldade, ela se pega reconhecendo a própria maldade. Não é uma saída óbvia. Nem fácil. “As feministas não gostam do filme”, afirma Luna, uma feminista. “Não gostam porque, no fundo, no fundo, eu sou grata por ele ter feito eu conhecer minha sombra”.

Tranquilidade condicional
É preciso escuridão pra ver a luz. E, quando se viu debaixo dos holofotes, Luna decidiu ser espelho e iluminar assuntos que costumam ficar nas sombras. “Se aquelas mulheres que não conseguiram ficar até o fim da sessão, ou as que me mandam mensagens dizendo que o mesmo aconteceu com elas, se elas conseguirem ficar conscientes de que são lindas, capazes, velhas e avós, pra mim já tá bom”. Como ela mesmo fala em uma passagem do Tropico de Leão: “O que mais apavorou os jesuítas quando eles chegaram aqui foram as índias velhas, nuas, que corriam atrás deles em busca de sexo. Esse era o pecado inominável”.
Luna segue em movimento. No meio do furacão que se tornou sua vida nos últimos anos ela lançou um livro – uma espécie de biografia inventada sobre a própria mãe – e vem trabalhando em um outro documentário sobre Dona Vilma, uma senhora de 84 anos que durante muito tempo foi a suprema rainha do sadomasoquismo no Brasil e recebia 300 cartas por mês de homens e mulheres confessando seus fetiches.
Quando perguntada sobre a sensação de ser reconhecida perto dos 80 anos de idade, Luna admite que “é uma coisa que só dá pra ter depois dos 70. Uma tranquilidade, uma pacificação. Não foi em vão”. Então quer dizer que Luna já encontrou a resposta para “O Grande Por Quê?” que a persegue desde a adolescência? “Não. Por isso que eu durmo com a televisão ligada”.