Marco Pigossi alça novos voos com “High Tide”, seu primeiro drama LGBTQIA+
Em parceria com o marido e diretor Marco Calvani, o longa tem arrematado prêmios em festivais e eleva sua carreira para um novo patamar

Ele estourou na televisão em um personagem que era o oposto do que na época, em 2009, ele mesmo conseguia representar na vida real. Se em Caras & Bocas, Marco Pigossi colhia os louros da esfera pública com Cássio, o personagem gay afeminado do clássico bordão “Rosa-Chiclete”, na vida privada ele ainda driblava as questões pessoais e o preconceito que o impediam de circular sendo quem era pelas duas esferas. Desde que assumiu sua sexualidade com uma foto no instagram e a legenda que dizia “chocando zero pessoas”, Pigossi vem descobrindo o poder da liberdade – que deveria ser um direito universal – e depositando na arte os desejos que um dia ficaram no armário. Como produtor, esteve à frente de “Corpolítica”, documentário que dirigi e que discute a subrepresentatividade de pessoas LGBTQIAPN+ na política brasileira.
E volta à função, dessa vez, atrás mas também à frente das câmeras, estrelando e produzindo o longa High Tide, em parceria com o diretor italiano Marco Calvani, com quem acaba de oficializar a união em uma cerimônia reservada na Toscana. O casamento pessoal e profissional tem rendido frutos. O longa, que estreou no SWSX, o prestigiado festival de cinema em Austin, no Texas, fez sua estreia no Brasil no Festival do Rio, em outubro, e está previsto para estrear em março nos cinemas do país.
A história sobre um imigrante brasileiro ilegal nos Estados Unidos que vê sua vida revirar diante de uma tórrida paixão, com o personagem de James Bland (criador da série “Giants”), ainda conta com a participação de Marisa Tomei, vencedora do Oscar. E marca um lugar de destaque do ator na crítica especializada. A Variety escreveu que Pigossi “entrega uma atuação esplêndida”, enquanto o Hollywood Reporter afirmou que a “atuação assombrosa de Pigossi, impregnada de melancolia e dor crua, mas também de otimismo e até alegria, faz de High Tide um retrato comovente de homens gays que buscam conexões significativas”.
A entrega também rendeu prêmio de melhor ator no Film Out, em San Diego. Surpreso e feliz com toda recepção, Pigossi diz que o resultado aponta que ele está no caminho certo. Mas busca não se acomodar no reconhecimento. “A vaidade é inimiga da criação do ator”, diz à Bravo!, de Los Angeles, onde vive com Calvani e a “filha” do casal, a cachorra Nina. Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Como foi o processo de construção de High Tide e produzir e estrelar uma história com alguém tão próximo? E o que esse filme diz desse encontro?
Quando eu conheci o Marco [Calvani, diretor e seu marido] comentei com ele que tinha vontade de falar sobre o processo de autoaceitação da sexualidade através do meu trabalho como ator. Algo que eu passei pessoalmente e tinha certo conhecimento. Marco estava trabalhando em um filme sobre isso e dividiu comigo o roteiro, até então em construção. Juntos, decidimos transformar o personagem em brasileiro e fazer esse filme. Passamos dois anos trabalhando no roteiro, discutindo, descobrindo, aprimorando enquanto buscávamos fundos ou produtores que gostariam de se associar a nós.
O filme acabou virando nosso filho e quando finalmente conseguimos entrar no set para filmar, já conhecíamos o roteiro e a história tão bem e estávamos tão alinhados que o processo foi realmente muito especial. Existe uma relação de muito respeito entre nós dois, tanto no nível pessoal quanto no profissional. O Marco é um diretor que conhece e gosta do trabalho do ator e isso é maravilhoso.
O filme fala de um imigrante brasileiro ilegal nos Estados Unidos que enfrenta questões com esse não-lugar ao mesmo tempo que vê sua vida revirar diante de uma paixão explosiva. O quanto esse filme disse de você pro Pigossi quando leu o roteiro pela primeira vez? E o que te fez falar “eu preciso contar essa história”?
A primeira vez que li o roteiro eu me emocionei muito. Por vários motivos. Mas como eu e o Marco estávamos nos conhecendo enquanto ele estava escrevendo, já havia muitas coisas pessoais no roteiro. Coisas que havíamos conversado antes. Nós dois somos imigrantes, e de alguma maneira, passamos por dificuldades e desafios semelhantes. Acredito que todo imigrante, passa por questões semelhantes, de se entender dentro de uma nova cultura, um novo idioma, novos costumes. Claro que aqui falo sobre imigrante e não refugiado. São situações bem diferentes. O Lourenço no filme vem aos Estados Unidos por questões diferentes das que eu, Pigossi, vim. Mas, de alguma maneira, essa distância de casa, do seguro, do conhecido, do familiar causa sensações muito semelhantes. O pertencer é um desejo humano universal. É disso que o filme trata. A gente sempre quer pertencer a algo, a um grupo, a alguém, a si mesmo, e tem muita beleza nisso.

Você já fez grandes produções ao longo da carreira dentro do Brasil, com novelas, filmes e séries, e vem também construindo uma filmografia relevante internacionalmente. Mas esse filme, o High Tide, vem colhendo muitas críticas impactantes positivamente sobre sua atuação. Como você vem observando tudo isso? Podemos considerar uma virada de chave da sua carreira? Deseja fazer papeis mais densos e dramáticos como esse?
Quando decidi vir para os Estados Unidos, eu entendi que de alguma maneira seria um recomeço profissional. Os mercados são muito diferentes e distantes e não se comunicam entre si. O americano não assiste nossas novelas e, com raras exceções, nossos filmes. Então foi definitivamente um recomeço, mas um recomeço mais calmo. Com mais base e estrutura para poder escolher meus projetos, poder fazer uma curadoria mais afinada da minha carreira e do que eu quero para mim. Poder focar mais no cinema independente e escolher histórias que me interessam como humano e como artista. Hoje tenho menos interesse em trabalhar na televisão ou para grandes estúdios e muito mais vontade de focar no cinema independente. Quando a gente inicia um projeto, ainda mais um como esse, tão pessoal, a gente sempre espera que seja um sucesso, que toque as pessoas de alguma maneira, mas eu nunca penso necessariamente nas críticas. Nesse caso eu me surpreendi muito com críticos e canais tão importantes de comunicação exaltando a minha performance nesse nível. Acho que nem no Brasil eu recebi críticas tão poderosas sobre meu trabalho. Isso serve para me mostrar que estou no caminho certo, mas tento deixar nesse lugar e não me deixar levar muito por isso. A vaidade é inimiga da criação do ator, eu acredito.
Desde que você tornou pública sua sexualidade, você já produziu um documentário sobre subrepresentatividade LGBTQIA+ (“Corpolítica”, do diretor Pedro Henrique França, premiado melhor documentário no Festival do Rio) e agora vem como produtor e protagonista de um drama romântico também LGBT. Como tem sido botar pra fora do armário também esses desejos profissionais e essas narrativas?
Esses projetos realmente fazem parte de uma transformação pessoal. Eu tinha interesse em explorar isso como pessoa e como artista. No caso do “Corpolítica” foi um encontro maravilhoso com um grande amigo, uma causa que me envolve, e onde de alguma maneira, eu pude usar do meu privilégio para dar voz a outros que até então não tinham. Veja só onde está a Érika Hilton hoje. E quanta potência há nessa mulher, que a gente mostrou ali, começando. No caso do High Tide, como disse, eu sempre tive vontade de explorar a questão da autoaceitação como um homem gay no mundo através do meu ofício, que é atuar. É algo que eu passei na pele, conheço e sei que posso tocar outras pessoas e trazer atenção para essa questão. O Brasil ainda é o País que mais mata pessoas LGBTQIAPN+ no mundo. O Lourenço, em High Tide, decide sair de casa e largar tudo em busca de uma vida melhor nesse sentido. Ele não está fugindo da pobreza ou da falta de estrutura, ele está fugindo de uma sociedade e de uma família que não quer que ele exista. E como ele, existe um número gigante de pessoas passando por isso.

Você está morando em Los Angeles desde 2020 e vem construindo uma carreira internacional. Ainda encontramos muitas dificuldades de artistas brasileiros se inserirem nesse mercado? Dá pra dizer que valeu a pena?
Acredito que o mercado americano, especificamente Hollywood, está mais aberto para outras culturas e idiomas. Os próprios canais americanos como Netflix e Max (ex-HBO), entre outros, entenderam que era interessante expandir e produzir em outros países. Acho que existe uma internacionalização de conteúdo que não existia antigamente. Mas, acredito que existe certa dificuldade em entender o Brasil como latino-americano. Muito se fala sobre representatividade latina no mercado daqui e o Brasil, não sei exatamente por qual razão, não faz parte dessa conversa ainda. Acho que existe muita dificuldade de se inserir no mercado em qualquer lugar no mundo. É um mercado difícil, que tem passado por transformações muito profundas com streaming, internet, etc. O próprio conteúdo consumido é outro e não necessariamente precisa ser produzido ou ter atores mais, vide Tik Tok e Youtube. No meu caso, tudo aconteceu de maneira natural. Meu objetivo nunca foi vir para Hollywood por um sonho ou por uma vaidade,mas, sim, perseguir personagens e histórias que me interessasse e explorar novos territórios. Estava morando em Madri quando me chamaram para um trabalho aqui e fui ficando naturalmente, conheci meu marido aqui e acabei trazendo a minha vida para cá. Mas jamais deixaria de trabalhar no Brasil.
Além de High Tide, você também faz participação no longa que conta a história do Maníaco do Parque, da Prime Video, que também tem estreia no Festival do Rio antes de chegar ao streaming, e está na animação adulta O Astronauta, da Max. São muitos personagens diferentes saindo ao mesmo tempo. A versatilidade define seu papel como ator?
Com certeza! Meu objetivo foi sempre buscar essa versatilidade, trabalhar em diferentes veículos, produções e histórias. Eu acredito que o ator tem que estar sempre se reinventando e sempre buscando novos desafios. Toda vez que eu leio um personagem e penso; “ah, já fiz isso”, ou até mesmo; “eu sei muito bem como fazer isso”, eu tento procurar outro projeto, ou até mesmo outro personagem dentro daquele projeto, caso eu tenha interesse naquela história. Se eu me vejo muito confortável em cena ou com o personagem, eu sinto que algo está errado e procuro algo novo, diferente, inquietante.

Nesse balaio todo ainda tem algo que você deseja muito fazer e poderia contar? Dizem que as palavras jogadas pro universo tem poder…
Já tive muitos desejos e ambições na minha carreira, hoje penso mais em viver o momento e o dia a dia. Ler um bom livro e passar tempo com meu marido e minha cachorra. Fazer longas caminhadas e continuar vivendo da minha arte. O que tiver que vir a mim, vai vir. Tento focar mais nisso.