Mariana Brennand une lirismo e denúncia em sua estreia com “Manas”
O longa que recebeu Director’s Award, principal prêmio da mostra Giornate Degli Autori, no Festival de Veneza, estreou nesta semana no Brasil

No cinema, parece não haver mais limites a serem superados. Em termos tecnológicos, os avanços já impressionam há décadas. Mas, ao nos aprofundarmos nas temáticas, percebemos que ainda há muito a ser discutido, sobretudo com ética. A representação da violência de gênero, por exemplo, foi historicamente marcada por abusos narrativos, como acontece com cenas de estupro, filmadas com pouco pudor ou até com viés fetichizado. Não por acaso, cresce a demanda por novas abordagens, conduzidas por mais mulheres à frente dos projetos.
Foi nesse ponto que a diretora brasileira Mariana Brennand decidiu tocar com seu primeiro longa-metragem de ficção, Manas. O filme tem provocado reações intensas ao abordar um tema urgente e doloroso: a exploração sexual de crianças, ainda uma realidade persistente no Brasil. Ambientada na Ilha de Marajó (PA), a história acompanha Tielle (vivida pela estreante Jamilli Correa), uma menina de 13 anos que vive com a família e tem uma relação afetuosa com o pai até que passa a perceber mudanças em seu comportamento, que culminam em uma série de abusos. Sem compreender totalmente o que está acontecendo, ela enfrenta uma jornada marcada por traumas e, sobretudo, pela necessidade de proteger a irmã mais nova para que ela não tenha o mesmo destino.
Com um elenco que inclui Dira Paes, Fátima Macedo e Rômulo Braga, Manas equilibra o tom de denúncia com um lirismo raro, sustentado principalmente pelo olhar da protagonista e a linguagem estética conduzida com maestria pela diretora. Mariana Brennand constrói uma narrativa que, sem suavizar a gravidade dos fatos, aposta na sensibilidade como estratégia de enfrentamento.
A recepção internacional tem sido calorosa. O filme estreou mundialmente no Festival de Veneza 2024 e foi agraciado com o Director’s Award, principal prêmio da mostra Giornate Degli Autori. Na mesma semana do lançamento da produção no Brasil, que aconteceu em 15 de maio, Brennand embarca para o Festival de Cannes, onde receberá o prêmio Women In Motion Emerging Talent, voltado a cineastas promissoras que vêm se destacando na indústria.
Desde seus estágios iniciais, Manas contou com o apoio de grandes nomes do cinema internacional. O brasileiro Walter Salles, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional por Ainda Estou Aqui, e os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, laureados duas vezes com a Palma de Ouro em Cannes, apostaram no projeto ainda na fase de desenvolvimento do roteiro. Como produtores associados, contribuíram com orientação criativa, apoio estratégico e articulação de parcerias essenciais para viabilizar o longa.
A Bravo! conversou com Mariana Brennand por ocasião do lançamento do filme e ouviu como essa temática atravessou sua trajetória a ponto de levá-la a uma década de pesquisa e produção para dar visibilidade a esse problema que tantas vezes é silenciado.
Como essa história chegou até você? Como foi esse encontro entre você e toda essa narrativa?
Eu entrei em contato com o tema de Manas há pouco mais de dez anos, em 2013. Eu tinha acabado de lançar o documentário sobre o Francisco Brennand, que estreou na Mostra de São Paulo, ganhou prêmio, enfim, estreou no final de 2012, e em 2013 entrou no circuito comercial. Eu estava aqui em São Paulo, pouco depois do lançamento, e numa conversa com a Fafá de Belém, que é uma grande amiga, a gente se encontrou para falar do filme, do documentário do Brennand. Ela estava muito mexida, muito tocada. Tinha acabado de tomar conhecimento dessa situação e me contou o que acontecia na Ilha do Marajó (PA) com meninas muito jovens e mulheres que eram exploradas sexualmente no Rio [Furo] Tajapuru, por tripulantes das balsas que cruzam o rio.
Fiquei completamente atravessada, revoltada. Não sabia que isso acontecia. Eu sou do Nordeste, muito próxima do Norte, mas essa era uma realidade, até então, bastante silenciada. Saí dessa conversa decidida a fazer um documentário de denúncia, para lançar luz sobre esse tema. Comecei a pesquisar, dividi com a Carolina Benevides, minha produtora, que se envolveu profundamente nessa missão comigo.
Logo no início da pesquisa, percebi que seria impossível fazer isso de forma documental. Eu teria que colocar essas mulheres e crianças diante da câmera e pedir a elas que recontassem uma vivência traumática. Isso, por si só, seria uma violência. Tanto que, no filme, há uma cena em que a delegada Aretha (Dira Paes) toma o depoimento da Marcielle através de um desenho, utilizando uma técnica chamada escuta assistida. É uma forma de conversar com uma pessoa que viveu uma situação de violência e entender o que aconteceu com ela sem fazê-la reviver diretamente o trauma. Existem técnicas diferentes, com desenho, bonecos…
Essa técnica é realizada lá também? Em Marajó?
Sim, é uma técnica difundida. Conselheiros tutelares, psicólogos, delegados, assistentes sociais podem aprender esse procedimento, fazem cursos para aplicar a escuta assistida.
É curioso, porque muita gente faz o caminho oposto — começa com a ficção, mas acaba indo para o documentário para não sensacionalizar o assunto. No seu caso, foi o contrário. Por que seguiu por esse caminho?
Foi uma escolha ética, uma forma de preservar essas mulheres.
E, durante a sua investigação, como foram esses encontros com as meninas e mulheres?
Foram dez anos desde aquela primeira conversa. E a verdade é que nunca parei de pesquisar. Mesmo durante a filmagem, estávamos checando fatos, trazendo elementos que enriqueciam a construção narrativa e emocional dos personagens. A pesquisa foi viva, presente até o último momento, ajustando detalhes de cena, de vivência. O processo de escrita do roteiro foi fruto dessa pesquisa. Trabalhei com cinco roteiristas — eu e mais quatro — além da Carolina, que também colaborou. Foi um processo muito profundo, complexo e dedicado.
Acho que essa maturidade que aparece no filme vem desse processo: dessa obsessão por retratar a realidade de forma ética, profunda e complexa. Queria construir personagens que não fossem maniqueístas, que trouxessem a complexidade do que é representar uma dor, uma violência.
E o quanto você sente que foi transformada por esse processo?
Totalmente. Desde o momento em que ouvi essa história, a conversa com a Fafá foi um chamado. Minhas idas ao Marajó, as vivências, as conversas… todo o processo de filmagem me transformou. Não tem como sair ilesa. E meu desejo é que o público também saia transformado dessa experiência. Que consiga se colocar no lugar dessa menina enquanto ela sofre as mais terríveis violências.
Tem uma coisa muito delicada que você faz no filme, e acredito que isso tenha chamado a atenção tanto do público quanto da crítica: a maneira como você elabora a violência. De forma delicada, no limite do possível, sem ser explícita.
Sim, é curioso pensar nisso, porque a violência já está presente no nosso cotidiano. Ela é tão retratada no cinema, nas telas… que quando você escolhe não mostrar, quando escolhe não assinar embaixo de um ato de violência, as pessoas agradecem. E não deveria ser assim? Mas foge completamente do que estamos acostumados. A violência nos é imposta na vida, no cinema. Poder contar essa história a partir de um ponto de vista feminino, como uma mulher diretora, foi um privilégio. Escolhi não esteticizar essa violência nem o corpo feminino. Era sobre respeitar o corpo dessa criança na construção das cenas, nos enquadramentos, na maneira de mostrar esse corpo e sua existência.
A gente está acostumado a ver esse tipo de narrativa por um olhar masculino que, de alguma maneira, sexualiza o corpo da menina, mesmo sendo uma criança. Como se houvesse algo que justificasse o olhar de desejo desse pai ou abusador, o que é um absurdo. É uma criança. Então, para mim, uma das coisas mais libertadoras desse filme foi poder contar uma história sobre o feminino, sobre a violência contra a mulher, de forma ética e respeitosa. Acho que a delicadeza do filme vem daí.
Queria te perguntar sobre o trabalho com a Jamilli Correa. Foi o primeiro trabalho dela como atriz, não é?
Sim, ela tinha a mesma idade da personagem: 13 anos. A JamilIi, a Emily [Pantoja], que faz a Carol, e a Samira [Eloá], também tinham 11 anos. Fiz questão de que as atrizes tivessem a mesma idade para trazer essa verdade para o filme.
Como foi esse preparo, as conversas? Porque imagino que, para elas, também fosse algo muito delicado.
Foi um processo muito delicado e cuidadoso, desde a escolha do elenco. Fizemos um workshop com as crianças que tinham o perfil, vivências e conversamos muito. Era importante entender o nível de maturidade emocional delas, a experiência de vida, conversamos bastante com os pais também. Foi um trabalho de escuta, preparação e cuidado o tempo inteiro.
Todas as meninas sabiam qual era a temática do filme, e isso era muito importante, essa honestidade. Os pais também sabiam do que se tratava a história. Mas, para proteger o emocional delas, tomamos a decisão de que o elenco infantil não teria acesso ao roteiro completo. Nenhuma das crianças leu o roteiro.
Trabalhávamos as cenas com o René Guerra, que foi o preparador de elenco, de uma sensibilidade ímpar. Criamos com elas uma preparação lúdica, simbólica, sensorial — focando na atmosfera, na energia das cenas, sem abordar diretamente o conteúdo. Antes de filmar, a gente lia os diálogos e ensaiava com elas, mas sem nomear explicitamente o que acontecia em cada cena.
Por exemplo, a Jamilli não sabia que a cena da caçada era, de fato, uma cena de abuso. Só entendeu isso quando assistiu ao filme na pós-produção. E foi muito impressionante esse momento. Ela é extremamente inteligente, uma força da natureza. Jamais havia atuado, nunca fez teatro, nunca teve experiência com cinema. E, mesmo assim, teve uma entrega, uma concentração e uma coragem admiráveis. Ao mesmo tempo, havia leveza: entre uma cena e outra, ela ria, vivia aquele momento com espontaneidade e curiosidade.
Mas ela entendia o que estava acontecendo na cena, os abusos?
Quando assistiu ao filme, ela veio falar comigo e disse: “Tia Mari, agora entendi… aquela cena da caçada é a cena em que o Marcílio abusa da Marcieli, né?”. Foi um momento muito forte. E bonito, também, porque mostra o cuidado que tivemos. Afinal, estamos falando de um filme sobre violência, sobre enfrentar e denunciar todo tipo de violência. Então seria inadmissível que, para realizar esse filme, uma criança fosse submetida a qualquer tipo de violência emocional ou psicológica.
Desde o início, eu queria trabalhar com uma menina de 13 anos, do Pará, de Belém, onde o filme foi rodado. Fizemos testes em escolas, em oficinas de teatro… Não limitamos, mas todas as crianças que acabaram no elenco estavam vivendo sua primeira experiência artística. E isso foi lindo.
Filmamos em ordem cronológica, para acompanhar o arco emocional da protagonista. Como a Jamilli tinha apenas 13 anos, tínhamos jornada reduzida. E usamos a maré do rio como metáfora para o interior dela. No início do filme, a maré está cheia, o rio caudaloso. À medida que os abusos ocorrem e ela começa a trabalhar na balsa, a maré vai baixando. No momento em que foge de casa, o leito do rio está exposto, com troncos retorcidos à mostra. Tudo era muito pensado para que o espectador acreditasse no que via. O desejo era esse: que a vida estivesse acontecendo diante da câmera, em cada respiração, em cada gesto.

Nisso tudo, o que você achou mais desafiador? Todo esse processo das filmagens.
Acho que tudo! A filmagem é desafiadora, né? E, ao mesmo tempo, é encantadora, é mágica. Quando você conta com isso, acho que a equipe estava muito imbuída, muito dedicada a fazer esse filme.
O processo todo foi desafiador, claro. Filmamos em plena natureza, com água, luz natural. Nosso hotel ficava às margens do Rio Guamá e pegávamos barco todos os dias para chegar aos sets. Saíamos ao nascer do sol e voltávamos no pôr do sol — era mágico e cansativo ao mesmo tempo.
A gente teve um ambiente muito, muito lindo, muito acolhedor, verdadeiro. Todo mundo se apoiando. Mas foi muito desafiador. A gente estava filmando na água. Nosso hotel ficava na beira do Rio Guamá, em Belém, e a gente pegava um barco todos os dias para filmar. O que é lindo, encantador. A gente saía no nascer do sol e voltava no pôr do sol.
Mas filmar… A Jamilli é protagonista absoluta. E ela é uma menina de 13 anos, então a gente tinha jornada reduzida. A gente filmou em ordem cronológica para ajudá-la nesse processo emocional da personagem.
A gente também teve um elemento da maré. Eu queria que a maré do rio, a água, representasse o emocional, o interior dela. Então, no começo do filme, as cenas iniciais, a maré está alta, muito cheia, o rio está caudaloso. Nesse momento inicial em que você acompanha ela, antes das violências acontecerem. À medida que os abusos começam e ela começa a ir na balsa, a maré vai secando, até que, em determinado momento, quando ela foge de casa, você vê os troncos retorcidos das árvores — a maré está completamente retraída. A gente chamava isso de Crashberg.
Quando vocês começaram a gravação? Em que mês? Dezembro? Janeiro?
Setembro. Foram oito semanas e meia de filmagem. E o desafio era trazer verdade. Meu desejo era que você assistisse ao filme e tivesse a sensação de que a vida estava acontecendo ali, bem na sua frente. Que você acreditasse em cada frame, em cada respiração, em tudo que visse. Então, acho que foi um desafio coletivo. Eu tive uma equipe brilhante, todos incríveis.
A personagem da policial Aretha foi escrita especialmente para a Dira Paes. Como se deu essa parceria com Dira no filme?
A policial, a personagem da Aretha, foi escrita para a Dira Paes. Ela está nesse filme desde o momento inicial. O primeiro edital que a gente inscreveu, que eu considero o marco do nascimento mesmo do filme, foi o edital do Fundo Setorial para desenvolvimento de roteiro. A Dira já estava lá.
Quando ela soube que eu estava fazendo um filme sobre uma realidade do Pará, foi uma das primeiras pessoas a quem eu contei sobre o meu desejo de realizar esse projeto. E ela me apoiou desde o início, falou: “Eu tô com você”. Essa personagem da Aretha foi escrita especialmente para ela, inspirada na irmã Henriqueta, no delegado Rodrigo e em assistentes sociais, conselheiros tutelares, psicólogos que conheci lá. Pessoas que representavam esse lado humano de quem atua naquela região, protegendo as crianças.
Gente que, às vezes, leva uma criança para casa porque não há abrigo disponível. Pessoas que assumem um papel que o Estado deveria cumprir, mas que, ali, falha. A personagem da Aretha representa isso: o Estado ausente, que não consegue chegar até essas regiões, que não atua, que não protege essas crianças. E ela, como mulher muito humana, tem como missão proteger essas meninas.
Como foi a colaboração com Walter Salles e com os irmãos Dardenne. Como foi essa troca? O que você tirou de aprendizado com essa experiência?
Sim! Foi uma troca… imagina! Muito enriquecedora. Poder trocar com o Walter e com os irmãos Dardenne foi uma experiência enorme. Os irmãos Dardenne entraram no projeto em 2018, quando a Mostra de Cinema de São Paulo fez o primeiro mercado para conectar produtores brasileiros com produtores e distribuidoras do mundo todo. A Delphine Tomson, produtora dos Dardenne, veio ao Brasil, e a gente apresentou o projeto para ela nesse mercado. Ela se envolveu muito com a proposta, se apaixonou pelo filme, apresentou ao Jean-Pierre e ao Luc, e foi a partir daí que começamos a trocar.
A gente desenvolvia os roteiros, os tratamentos… Quando chegávamos a um tratamento consistente, traduzíamos para o francês e mandávamos para eles. Eles nos devolviam com notas, comentários. E acompanharam também a montagem do filme.
A minha relação com o Walter vem de muito tempo. Ele foi quem escreveu minha carta de recomendação para a faculdade. Eu estudei na UCSB (Universidade da Califórnia em Santa Bárbara), e o Walter também foi aluno de uma universidade na Califórnia. Ele escreveu essa carta em 1996 — eu fui para a faculdade em 1998, então imagina.
Na época, escrevi para ele contando sobre minha paixão pelo cinema, sobre o meu desejo de trabalhar com isso. O Walter é uma pessoa generosa, que faz questão de apoiar a carreira de diversos diretores. Ele escreveu essa carta pra mim, eu fui para os Estados Unidos, me formei, e, quando voltei com o projeto do documentário sobre o Brennand, levei o projeto direto para a Videofilmes.
A Videofilmes foi coprodutora e distribuiu o filme. E quem me orientou naquela época foi o João Moreira Salles, que também é documentarista. Então minha relação com o Walter e com a Maria Carlota [Bruno], diretora-executiva da Videofilmes, já vem de bastante tempo. Foi muito bonito, porque a gente estreou juntos em Veneza. Pra mim, foi algo muito especial.
E o Walter falou do filme de forma muito espontânea — desde que assistiu, ele ficou muito comovido, e comentava o tempo todo sobre Ainda Estou Aqui lá em Veneza, falava também sobre o Manas. Foi muito significativo porque, quando eu estava na Califórnia, entre 1998 e 2002, foi justamente a época do lançamento de Central do Brasil — Globo de Ouro, Festival de Berlim, todo aquele momento de projeção do cinema brasileiro, de orgulho da nossa cultura.
Agora, com Ainda Estou Aqui e com o lançamento de Manas, minha primeira ficção, a gente se reencontrando em festivais como Veneza, Palm Springs… foi um ciclo muito bonito.

E aí entra uma pergunta: como você vê todo esse reconhecimento internacional, especialmente em Veneza, tratando-se de uma realidade tão específica do Brasil, uma realidade pouco conhecida lá fora?
Acho que isso revela a força do cinema, desse poder de contar histórias, de impactar o espectador, de transportá-lo para outras realidades. Manas conta uma história muito específica, que se passa no Marajó e aborda temas como exploração sexual e abuso intrafamiliar, mas, ao mesmo tempo, é uma realidade universal.
O prêmio em Veneza reconhece Manas como uma obra cinematográfica importante, relevante, mas também evidencia a conexão que o filme estabeleceu com o público e com o júri. Foi uma conexão pela universalidade da experiência. As pessoas se identificaram com essa história, com a trajetória da Marcieli.
O cinema tem esse poder. E isso vem se confirmando desde a estreia em Veneza. Fomos para a França, Alemanha, Espanha, Cuba… E em várias cidades do Brasil também, por meio de festivais. Onde quer que o filme passe, infelizmente, há essa identificação imediata — muitas pessoas vêm me dizer: “Isso também acontece aqui do lado”, ou “Eu vivi algo parecido”, ou “Conheço alguém que passou por isso”. Então, a potência do filme também está aí.
E olhando para o cinema brasileiro hoje, a gente percebe como as mulheres diretoras estão se destacando, fazendo alguns dos trabalhos mais importantes do momento. Mas, da sua perspectiva, trabalhando ativamente nesse cenário, você sente que esse espaço tem realmente se ampliado para as mulheres? Ou ainda é algo restrito?
Acho que estamos conquistando cada vez mais espaço, mas ainda temos que continuar lutando por ele. O prêmio que vou receber em Cannes (Women In Motion Emerging Talent) tem justamente esse objetivo: fortalecer a carreira de diretoras estreantes. Porque, ao longo da história de Cannes, apenas três mulheres ganharam a Palma de Ouro, o que mostra como essa luta ainda é necessária — não só no Brasil, mas no mundo todo.
A potência do cinema feito por mulheres é inegável. E, no Brasil, temos diretoras que são verdadeiras referências para mim e que me inspiram profundamente: Laís Bodanzky, Anna Muylaert, Sandra Kogut… sem falar na Carla Camurati, com Carlota Joaquina, que marcou a retomada do cinema brasileiro lá atrás. As mulheres têm um papel fundamental na indústria audiovisual.
Você está ansiosa para receber o prêmio?
Estou animada, ainda meio sem acreditar. É realmente extraordinário esse reconhecimento — ser a primeira mulher brasileira a receber esse prêmio, escolhida pela diretora que ganhou no ano anterior, uma cineasta da Malásia que fez um filme brilhante chamado Tiger Stripes (Amanda Nell Eu), vencedor da Semana da Crítica em Cannes.
Estar ao lado da Nicole Kidman, que vai receber o prêmio principal pelo conjunto da carreira, também é muito marcante. Ela é uma mulher ativista, que luta pela igualdade de gênero na indústria do cinema americano. Já declarou, há muitos anos, que faz questão de trabalhar com uma diretora mulher a cada ano, e vem mantendo esse compromisso.
Então, acredito que esse prêmio é muito importante para o nosso cinema. Vivemos uma retomada no passado, e agora estamos nos fortalecendo. Tudo o que aconteceu com Ainda Estou Aqui abriu um portal para o cinema brasileiro, para a valorização da nossa cultura e da nossa história. As pessoas voltando ao cinema, se reconectando com suas raízes.
E esse ano o Brasil será homenageado em Cannes. Teremos a estreia de O Agente Secreto, do Kleber Mendonça Filho, na competição principal, e eu estarei recebendo esse prêmio. É um momento muito significativo.
E, para encerrar, eu queria saber se você tem acompanhado os casos em Marajó e se percebe alguma mudança desde que começou esse trabalho.
Infelizmente, não. Isso continua acontecendo. E uma das minhas grandes angústias ao fazer esse filme era justamente perceber que os anos iam passando… e a situação lá seguia a mesma. Mas acho que isso também revela uma questão estrutural.
O que eu realmente espero é que Manas consiga lançar luz, de maneira específica, sobre o que acontece no Marajó. Porque é isso: a sociedade precisa olhar. Precisa olhar para o Marajó, precisa enxergar a realidade daquelas mulheres e crianças.
Mas o abuso intrafamiliar não acontece só lá — ele está também ao nosso redor. Infelizmente, a violência contra a mulher ainda é muito silenciada. Há muito medo envolvido, muita vergonha. E acho que o que a Gisèle Pelicot falou, durante o julgamento dela na França, foi muito poderoso: “a vergonha tem que mudar de lado”.
Para mim, isso é fundamental. Porque a sociedade colocou a vergonha nas mulheres. Além de sofrerem a violência, além de serem vítimas, ainda carregam a vergonha. Então, quando a Gisèle diz que a vergonha tem que mudar de lado… é isso. A vergonha é do abusador. A vergonha é de quem violenta. Isso precisa ficar claro.
Só que é um tema cercado de muitas camadas. Muitas vezes, uma mulher que sofre violência demora para entender que aquilo que viveu foi, de fato, uma violência. Quando entende, muitas vezes está diante de alguém mais poderoso — alguém que ameaça, que intimida, seja física ou moralmente. Por isso é tão necessário falar sobre isso, lançar luz, romper esse silêncio. Eu espero que o Manas inspire isso. Que contribua para esse movimento.