Matheus Nachtergaele reencontra João Grilo
O aclamado ator, que conquistou os palcos e as telas com sua versatilidade, fala sobre seu retorno em "O Auto da Compadecida 2"
Matheus Nachtergaele é o tipo de ator que nunca sai de cena. Seja em alguma série na televisão, ou viajando pelo país com alguma peça de teatro, ou estreando um filme, às vezes como ator ou diretor. Por uma casualidade, foi exatamente isso que ocorreu nesses últimos dois anos, quando esteve presente na TV com Cine Holliúdy e no teatro com Moliére – uma comédia musical – além de estar prestes a estrear Mais pesado é o céu em festivais de cinema. Após três décadas de carreira, aparentemente não há nenhum papel que Matheus não seja capaz de fazer.
Embora, à primeira vista, tudo indique um compromisso de longa data com as artes cênicas, esse acabou sendo um desvio de percurso na carreira. Pode-se dizer que foi um rápido encontro com a atriz Bibi Ferreira que definiu seu destino. Na ocasião, Matheus estava iniciando a faculdade de Artes Plásticas na FAAP e acompanhou sua colega, Andrea, a uma peça de Bibi. No fim da apresentação, sua amiga, que desejava ser atriz, pediu para ir ao camarim da consagrada atriz, em busca de conselhos sobre a profissão. Bibi recomendou que ela buscasse treinamento com Antunes Filho, renomado diretor. Para isso, seria necessário passar por uma seleção com mais de 800 outros atores aspirantes. Matheus acompanhou Andrea, sem pretensão e sem se inscrever no processo. O objetivo era apenas fazer réplica numa cena de Romeu e Julieta. Afinal, ela precisava de um Romeu.
Ao fim de tudo, Antunes ficou surpreso com o talento escondido daquele jovem e disse para ele voltar para a segunda fase. Dali, seu futuro estava selado. Trabalho após trabalho, ele chamava atenção pela sua versatilidade e paixão. E hoje segue como um dos atores mais queridos de sua geração. Um dos motivos de tanto sucesso e carinho pelo público veio de seu papel como João Grilo em O Auto da Compadecida, obra de Ariano Suassuna, adaptada para televisão e cinema. E que agora caminha para ganhar uma sequência.
Foi a partir desse cenário que começamos a conversa, que percorreu também o passado do ator, sua participação no Teatro da Vertigem, e por assuntos mais pessoais, como a descoberta, em sua adolescência, do motivo da morte de sua mãe. Durante anos, o ator buscou encaixar as peças sobre a história da mãe, Cecília, mas todos pareciam evitar o assunto. Na adolescência, seu pai, finalmente, entregou os poemas que a mãe, Cecília, escreveu. Desse encontro, ele criou o espetáculo Processo de Conscerto do Desejo, provavelmente uma de suas obras mais importantes, na qual ele compartilha sua tragédia pessoal.
Matheus, que surpresa boa foi esse retorno de O Auto da Compadecida.
Sim, é uma coisa honrosa e assustadora ao mesmo tempo. O desejo de fazer O Auto da Compadecida 2 veio um pouco antes da pandemia, no momento em que o Brasil estava prestes a cometer aquele voto suicida que nos jogou para em um abismo de caretice, negacionismo e desejo de domínio branco.
Foi uma sugestão do João Falcão, um dos autores da minissérie O Auto da Compadecida, com Adriana Falcão e Miguel Arraes. Ele lançou a ideia de refazermos no sentido de devolver ao Brasil uma vontade de gostar de si e de dar de presente para nós mesmos, os fazedores do Auto. Depois de algumas discussões, nos questionamos: “será que vamos macular o clássico que o Auto virou? Será que ainda temos talento e força de vontade suficiente para fazer com alegria?” Decidimos fazer, mas aí veio a pandemia, e meio que coincidentemente, com o tempo da produção, agora é que nós vamos fazer o Auto 2, em um período em que o Brasil pelo menos parece estar tentando retomar o amor próprio.
Quando começam as filmagens?
20 de agosto. Estamos ensaiando.
Quanto tempo de ensaio?
Bastante. Cinco semanas ensaiando, depois oito semanas gravando.
Para você foi fácil reconstituir esse personagem?
Estou nesse processo. Não está feito o trabalho.
Esse acaba sendo um momento importante de redescoberta do personagem. Mudou o pensamento sobre como você faria esse personagem?
Não, eu não faria o personagem diferente. Quando eu assisto O Auto da Compadecida, eu aprovo o resultado do nosso trabalho. O que, aliás, dificilmente ocorre. Agora há uma oportunidade de rever o arquétipo, o João Grilo do ponto de vista de um ator mais maduro ou mais envelhecido, como eu sou. Então é um susto. Tem um lado afetivo de como repercorrer um caminho já vivido. Tem algo de me reaproximar de um personagem muito querido. Por outro lado, de algumas coisas eu já me sinto incapaz e estou descobrindo quais novidades posso trazer para esse Arlequim brasileiro.
“Acredito que poucas pessoas viveram algo tão intenso. São personagens arquetipais da sobrevivência brasileira, representando a alegria do pobre brasileiro, apesar das ameaças que pairam sobre sua sobrevivência. Esses dois palhaços personificam a sobrevivência no Brasil. Lembro-me da clara diferença de caminhar pelas ruas do país antes e depois do Auto”
A pergunta que eu me faço todos os dias nos ensaios é: o arquétipo envelhece? Porque o personagem e o ator são indissociáveis em algum ponto. O Auto da Compadecida 2 acontece concretamente 25 anos depois do primeiro. A segunda história vai se passar nos anos 1950. Éramos trintões, jovens atores, agora somos cinquentões. No que isso vai atingir e transformar os personagens, não sei, mas alguma coisa deve acontecer. O novo roteiro é muito bonito, ele é escrito pelas mesmas pessoas que fizeram o primeiro filme, com a inclusão do Jorge Furtado, outro gênio. Os escritores são feras, o Guel é um gênio, um obcecado por Suassuna.
Me parece que já aqui, na escritura, há uma diferença importante. Há uma homenagem ao primeiro, muita coisa vai ser revisitada e o público quer isso, mas há novidades. Os personagens todos morreram no Auto, praticamente. Então tem toda uma galera nova e novas situações. Me parece que o grau da sobrevivência buscada pelos dois heróis ou anti-heróis mudou um pouco. Antigamente, eles faziam grandes esforços para conseguir uma migalha de comida. Agora eles estão num outro patamar, eles não querem só comer, querem algumas coisas a mais. Acho que isso já vai dar um ponto de partida um pouco diferenciado. No mínimo, vamos devolver um carinho ao público nessas bodas de prata. Estar com o Guel e o Selton na sala de ensaio tem sido emocionante.
Foi uma obra muito importante para todo o elenco.
Nossa vida mudou, efetivamente. Eu já tinha feito trabalhos de bastante repercussão antes, e depois também. Mas o Auto mudou a minha e a vida do Selton. Fomos jogados para dentro do coração de todos os brasileiros.
Você nunca tinha vivido nada parecido até então?
Acredito que poucas pessoas viveram algo tão intenso. São personagens arquetipais da sobrevivência brasileira, representando a alegria do pobre brasileiro, apesar das ameaças que pairam sobre sua sobrevivência. Esses dois palhaços personificam a sobrevivência no Brasil. Lembro-me da clara diferença de caminhar pelas ruas do país antes e depois do Auto.
Certa vez, comentei com Selton, e ele sempre se lembra disso, eu disse a ele: “Selton, nunca mais passaremos fome”. Essa perspectiva é quase milenar para o ator que se apresenta em troca de comida e hospedagem. Eu disse a ele: “Se um dia estivermos na pior situação possível, na sarjeta, algum brasileiro nos acolherá e dirá: ‘você não, você é o João Grilo, você é o Chicó'”.
Acredito que alguns atores possam ter passado por isso no Brasil. Grandes nomes como Otelo, Dercy Gonçalves, Lima Duarte, creio que entendam bem o que estou dizendo. Eu senti isso na pele através do Grilo.
Minha trajetória foi bastante presente na televisão, mas ainda mais forte no cinema e no cinema alternativo. Sempre coloquei à prova personagens amargos para o espectador, personagens críticos em relação à realidade brasileira. O João Grilo é um desses personagens de tradição tão antiga, de pobres sobreviventes, que fez com que eu habitasse esse lugar especial. Não sei se sou digno de receber de volta esse presente.
Você mencionou que percebeu ser incapaz de algumas coisas. Quais são essas coisas?
Existe uma vivacidade física que já não temos e que fazia parte da essência final daqueles palhaços naquele momento. Não sei se ainda a temos, afinal, estamos 25 anos mais velhos. O ator não é apenas uma ideia projetada e cumprida, ele também tem os limites de seu corpo. Acredita-se que a cada sete anos todas as células do corpo são trocadas, então, no mínimo, já tivemos três renovações celulares completas. Aquele Matheus de 1999 não existe mais. Às vezes, reconheço claramente aquele personagem na sala de ensaio, mas em outros momentos me pergunto “quem é esse?”.
“Suassuna me presenteou com um CD contendo seus poemas gravados e uma cartinha, escrita por ele, me agradecendo. Logo em seguida, publicamente, para minha surpresa, ele declarou que eu havia sido o melhor João Grilo que ele já havia visto”
Você mencionou que seus personagens são sempre muito críticos, o João Grilo também o é. Você acha que a recepção desse personagem pode ser diferente no Brasil atual, após vivermos um governo de extrema direita?
Acredito que estamos em um momento favorável para João Grilo e Chicó. Não foi fácil sair daquele buraco, mas conseguimos. A humanidade parece estar muito dividida, como se estivéssemos em um momento de xeque-mate. É hora de decidir se avançamos ou retrocedemos. Eu estou ao lado dos que querem seguir em frente. No entanto, o avanço, por vezes, baseia-se nos personagens mais antigos que têm algo a ensinar.
Lembrando que o Auto também é fundamentado nas tradições e é um auto de fé, escrito e amado em um país com muita devoção religiosa. Neste segundo Auto, desejamos que o aspecto religioso do trabalho esteja menos ligado a um catolicismo específico e mais voltado a uma religiosidade mais aberta e reflexiva. Vamos ver se conseguimos acertar o tom. De qualquer forma, o Grilo encontrará novamente o diabo, Nossa Senhora e Jesus Cristo em circunstâncias mais maduras, num debate mais reflexivo. E sim, vamos conversar, inclusive com as pessoas que, neste momento do Brasil, são mais conservadoras.
Não temos mais Suassuna em 2023. Você chegou a conhecê-lo?
Sim, eu o conheci. Estive em sua casa com Pedro Bial logo após a peça Auto da Compadecida. Se não me engano, foi em 2002, por ocasião da estreia de Amarelo Manga no Festival de Recife. Pedro Bial estava presente, tínhamos amigos em comum, e ele me convidou para acompanhá-lo à casa de Ariano Suassuna. Foi uma experiência emocionante; eu estava com medo de que Suassuna não tivesse gostado do meu João Grilo. Afinal, Auto da Compadecida é a peça brasileira mais montada e isso já acontecia naquela época, e continua sendo até hoje.
No final da conversa, Suassuna me presenteou com um CD contendo seus poemas gravados e uma cartinha, escrita por ele, me agradecendo. Logo em seguida, publicamente, para minha surpresa, ele declarou que eu havia sido o melhor João Grilo que ele já havia visto. Não acredito que seja verdade, pois vários atores fizeram ótimas interpretações do personagem em várias montagens pelo Brasil. Mas o carinho que ele me demonstrou foi muito bonito. Toda essa experiência me deixa ansioso para fazer novamente o papel, e espero fazer tão bem quanto antes.
Você já conhecia o Selton?
Nós nos cruzamos nas filmagens de O Que É Isso, Companheiro?, mas não filmamos juntos. Foi um dos primeiros filmes da retomada do cinema brasileiro após o período de ditadura. Foi o meu primeiro longa-metragem e, se não me engano, também foi o primeiro de Selton. Nós mantivemos um grande afeto e respeito mútuo, e nunca estragamos nossa amizade com excessos. Outro dia, percebi isso: não saímos para beber juntos, não nos encontramos para farra, nem ficamos conversando ao telefone sobre qualquer coisa. Sempre mantivemos um respeito mútuo, acompanhando a trajetória um do outro. Quando estamos juntos, é muito agradável, mas não temos uma amizade alimentada pelo dia a dia. Não criamos oportunidades, mas temos algo especial em comum, sendo ambos obcecados pelo trabalho, capricornianos, solteiros, pessoas bem distintas, mas com alguns pontos em comum.
Gostaria também de saber sobre o início de sua carreira e como você se envolveu com as artes.
Eu cresci em uma família de classe média, com vivência artística, mas sem artistas profissionais. Minha mãe era poetisa e adorava música. Meu pai, sendo engenheiro eletrônico, foi um dos fundadores da Traditional Jazz Band na USP. Eu nasci de um romance artístico, já que eles se conheceram em um dos ensaios da banda. Minha avó era uma cantora de ópera amadora antes de vir para o Brasil. Na parte belga da minha família, havia um forte apreço pela cultura. Apesar de não ter pessoas próximas envolvidas diretamente com teatro ou cinema, tinha familiares apaixonados por arte. Meu avô foi um dos primeiros cinegrafistas amadores na Bélgica, e herdei dele as primeiras câmeras, negativos da família e uma coleção de revistas e livros que ele acumulou. Sempre gostei de ler, escrever e desenhar, pois eu era um menino tímido. Devido a todas essas influências, fui me aproximando das artes plásticas.
Foi então que você estudou na Escola de Arte Dramática?
Sim, foi depois disso. Eu estava indeciso entre estudar Zoologia ou Artes Plásticas, mas não fui aprovado em Zoologia e entrei em Artes na FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado). Ali começou uma jornada irreversível.
Lembro que uma amiga queria ser atriz e fomos ao camarim de Bibi Ferreira no teatro da FAAP para pedir conselhos sobre a profissão. Na época, eu não queria ser ator, não pensava nisso. Nós adoramos o papo com Bibi, e ela mencionou muito Antunes Filho. Então, minha amiga se inscreveu para o teste do CPT (Centro de Pesquisa Teatral), e eu me inscrevi para fazer a réplica dela. Foi uma cena de Romeu e Julieta, e podia ter apenas um minuto de duração. Foi a primeira peça que li.
Nos apresentamos no Sesc Anchieta para Antunes Filho, que estava sozinho na plateia. Ele estava buscando oito atores para integrar o elenco de Paraíso Zona Norte, que unia dois textos de Nelson Rodrigues. Fizemos o teste e, ao final, enquanto estávamos saindo, ele disse: “Menino, não estou vendo sua ficha aqui”. Eu respondi que estava apenas acompanhando minha amiga. Ele retrucou: “Não, você voltará para a segunda etapa do teste”. Assim foi, etapa após etapa, até que fui admitido no CPT. Entrei para os ensaios e tranquei a faculdade. Minha família entrou em pânico, perguntando “como vai ganhar a vida?”.
Nunca mais parei. Fiquei oito meses no CPT. O Antunes não deixou eu estrear, com razão, porque eu era muito novo. Dali fui para a Escola de Arte Dramática. Voltei um pouco para a FAAP, mas já não via mais sentido gastar tanta energia ali. Já tinha sido raptado pelo teatro, onde eu encontrei meus pares na vida, as pessoas que olhavam para o mundo do mesmo jeito que eu. Antes disso, estava sozinho na vida.
Quando passei na primeira etapa do CPT, me vi lutando por uma coisa como nunca havia lutado. Quando senti a adrenalina de estar em cena, estava plantado em mim uma fúria que eu nunca tinha visto. Aquele menino franzino.
Logo no começo de carreira, você participou da montagem da Trilogia Bíblica com o Teatro da Vertigem. Mesmo tão jovem e inexperiente, você arrasou e conquistou todos os prêmios. Até hoje, fala-se muito dessas peças e da sua performance.
Sim, foi muito intenso. Eu interrompi meus estudos na Escola de Arte Dramática (EAD) durante a peça. Eu queria voltar para a escola, mas já não fazia mais sentido porque eu tinha perdido minha turma. E, ao mesmo tempo, estava viajando para festivais e sendo recrutado para a retomada do cinema brasileiro após a ditadura. Mas minha trajetória foi cuidadosa, passando por Antunes e depois pela EAD. Foram anos de estudo. Além disso, a pesquisa do Teatro da Vertigem era muito intensa, com treinamentos físicos. Em Paraíso Perdido, estudamos poemas de John Milton e trabalhamos a física de Newton. Em O Livro de Jó, abordamos o texto do Antigo Testamento e fizemos treinamentos físicos, incluindo o Butô. Os ensaios duraram mais de um ano.
E como foi participar desses espetáculos?
Não sei nem como descrever. Era como se eu estivesse apresentando uma obra de arte muito precocemente. Eu era jovem e me sentia jovem, mas também percebia que havíamos alcançado um resultado artístico instigante. No espetáculo, sentia a voracidade do que estava acontecendo. Era um trabalho muito moderno e físico, fora do palco italiano, ousado esteticamente, mas com muita poesia clássica. O ator precisava saber falar. E a minha geração não foi muito bem treinada para isso. Fomos formados para um tipo de teatro-dança, que estava na moda na época. A maioria dos grupos era de teatro-dança, e os atores eram muito influenciados por essa vertente.
Vocês queriam abordar a peste da AIDS e relacioná-la ao poema bíblico?
Isso mesmo. A época era de epidemia ainda, correto? As pessoas ainda estavam morrendo. Não era como hoje. Elas morriam ou ficavam gravemente afetadas, porque os medicamentos não estavam tão desenvolvidos e causavam muitos efeitos colaterais. Era uma peste, e o livro de Jó falava metaforicamente sobre a injustiça do sofrimento humano.
Ninguém falava abertamente sobre a AIDS. Eu ficava nu e ensanguentado em cena, seguindo o texto. Todos sabiam que tratava disso, mas não era só isso; era sobre o sofrimento humano. O que Jó quer romper e rompe é isso: não existe uma doutrina de retribuição. O sofrimento faz parte da vida, independe de você ser uma boa pessoa ou não.
Houve uma história que os artistas do teatro contam até hoje sobre o nascimento do cacoete “satisfeita, Iolanda”. Ele surgiu da peça, não foi?
Sim, aconteceu em O Livro de Jó, no primeiro ato. Na segunda aposta entre Deus e o demônio, eles arrancavam minha roupa e eu caía num balde de sangue, depois me levantava diante do espelho. Uma senhora virou-se para outra e disse: “Satisfeita, Iolanda?”. Todos ouviram, pois havia apenas 60 pessoas na plateia. Algumas pessoas não conseguiram seguir até o fim do espetáculo, e eu quase perdi o rumo ali. Foi engraçado, pois ficou óbvio que essa tal Iolanda insistiu muito para que a amiga assistisse à peça que todos comentavam. A senhora deve ter dito algo como: “Não, ficar de pé em um hospital, assistir a uma peça alternativa, com gente pelada e referências à AIDS, e ainda pessoas desmaiando no espetáculo”.
Houve desmaios?
Sim, muitas pessoas desmaiavam. Em certo momento, começamos a ter um grupo de pessoas treinadas em primeiros socorros. A peça era forte, com uma ambientação hospitalar e um tema impactante. Minha figura ensanguentada afetava algumas pessoas. Pelo menos uma vez por semana acontecia um desmaio.
Podemos dizer que a trilogia teve um efeito semelhante ao de O Auto da Compadecida, catapultando sua carreira?
Acredito que ambos aconteceram simultaneamente.
Uma característica marcante em você é que está sempre envolvido em projetos artísticos, mas raramente se expõe em questões não relacionadas ao trabalho artístico.
Assim deve ser. Descanso carregando pedras. Prefiro a cena à vida, o que é um defeito meu. Acredito que as duas se misturam. Prefiro passar mais tempo em cena do que no cotidiano. Acho mais prazeroso, bonito, controlável, poético e vibrante.
Em cena, muitas dores podem ser sentidas, mas tudo é mais controlado, tudo dentro da realidade poética. A cena protege um pouco da brutalidade. E a cena, às vezes, pode ser mais brutal, mas está sob o controle do poema. É muito mais fácil suportar isso do que andar pelas ruas e ver tanta miséria.
Essa experiência me leva a outra pergunta. Não precisamos abordar esse assunto se não se sentir confortável. Mas, quando você descobriu sobre o suicídio de sua mãe, você conseguiu transformar isso em poesia.
Sim, guardei os poemas de minha mãe por muitos anos e mostrei para alguns amigos artistas, que sempre me diziam que eu deveria publicá-los em algum momento. Eu me questionava se a beleza que eu enxergava neles não era apenas por meu afeto pessoal. Talvez eu tivesse uma predisposição para amar aquela mulher e tudo o que viesse dela. Em certo momento, há cerca de dez anos, decidi que era a hora certa. Coincidiu com a época em que parei de beber e me tornei sóbrio. Percebi que estava pronto para embarcar em uma jornada do tamanho de O Livro de Jó, mas com mais maturidade. Encarar a tragédia pessoal de forma poética, aberta e visceral em cena. E assim foi. Faço o espetáculo há quase uma década. Ainda hoje estava pensando nas próximas apresentações, sempre há convites. Existe um projeto grande em andamento, que é levar Processo de Conscerto do Desejo para igrejas em todo o Brasil, como uma missa. Já fizemos na matriz de Tiradentes, durante o Festival de Tiradentes. Eu já havia vivenciado algo semelhante em Paraíso Perdido, quando ocupamos uma nave da Igreja Católica com um espetáculo teatral. Me senti seguro em aceitar esse convite e entendi que ali poderia dar um passo ainda mais bonito com a peça.
Lidar com a morte de Cecília é lidar com tudo o que eu sou o tempo todo. Sou muito fruto disso, fiquei muito impactado. Primeiro, fiquei abalado com o segredo. Você sempre ama sua mãe, mesmo sem conhecê-la. Eu tinha um amor inexplicável por Cecília muito antes de saber como ela partiu, e sempre busquei saber o que tinha acontecido, procurava notícias sobre ela. Como ela morreu dessa forma e essa forma é um tabu, as pessoas evitavam falar sobre o assunto, e isso me instigava ainda mais. Eu tinha uma clara sensação de que estavam me contando muito pouco.
O que você sabia até aquele momento?
Sabia que ela era bonita, que era pequena, que mancava de uma perna por ter caído de um telhado, que tocava violão muito bem e que adorava ler e escrever. Sabia que ela amava meu pai, que me adorava, e várias coisas me faziam perceber isso. Sabia que ela tinha um temperamento vivo, mas também era melancólica. Alguns detalhes escapavam, e eu tentava entender. Às vezes, ganhava uma foto dela, e tudo que recebia se tornava um tesouro, mas sempre terminava em reticências.
Quando entrei na adolescência, percebi que as versões sobre a morte dela variavam entre as famílias, então me calei. Eu tinha apenas três meses quando ela morreu.
No único dia em que meu pai falou sobre isso, estávamos em Ubatuba. Ele havia bebido muito e me entregou os poemas de minha mãe, dizendo: “Sua mãe se matou, esses eram os poemas dela, cuide disso”. Ele estava tão bêbado que não conseguia conversar. Eu fui para a praia, li os poemas e liguei de um orelhão para Carmem [madrasta de Matheus] pedindo que buscasse meu pai, pois ele não estava bem.
“Admiro muito que ele tenha conseguido falar, mesmo que de forma desajeitada e bêbado. Meu pai sempre me chamava, nessas horas em que ele tocava violão, para me apresentar algumas músicas de um jeito especial, dizendo: ‘essa música sua mãe gostava’. Era como se ele estivesse me pedindo para prestar mais atenção nelas”
O que passou pela sua cabeça?
Fiquei muito emocionado e horrorizado, mas também aliviado por finalmente saber a verdade. Fiquei fascinado pelos textos, parecia que eram palavras que saíam da minha própria boca. Eram estranhamente familiares. Eu me senti adulto, muito sozinho, mas definitivamente acompanhado por essa mulher.
Quantos anos você tinha?
Tinha 16 anos. A Carmem foi buscar meu pai, pois foi muito difícil para ele falar sobre isso. Sinto pena de que esse tema tenha sido tão difícil para ele. Isso fez com que nunca conseguíssemos conversar calmamente sobre minha mãe. Ele já faleceu, então nunca mais teremos essa oportunidade. Sinto muita pena mesmo.
Admiro muito que ele tenha conseguido falar, mesmo que de forma desajeitada e bêbado. Meu pai sempre me chamava, nessas horas em que ele tocava violão, para me apresentar algumas músicas de um jeito especial, dizendo: “essa música sua mãe gostava”. Era como se ele estivesse me pedindo para prestar mais atenção nelas.
Você lembra de alguma delas?
Lembro de todas. A música que ela mais gostava se chama “Io Che Amo Solo Te”, de Sergio Endrigo. Inclusive, eu canto essa música em Processo de Conscerto do Desejo.
Isso mudou sua perspectiva em relação à vida e à morte?
Sim, acredito que acelerou minha ida para o teatro.
Não sei avaliar totalmente, mas foi muito esclarecedor, fortaleceu minha mitologia pessoal e embasou o artista que sou. Forneceu tintas para a minha existência. Foi um aprendizado de libertação muito bonito: conseguir amar alguém que abandonou a vida e que te abandonou no berço. Amar e admirar profundamente é conseguir conferir liberdade a alguém. Em “Processo de Conscerto do Desejo”, eu a homenageio, mas também me queixo. Se fosse apenas uma homenagem pura e límpida, talvez não fosse tão forte. No meio de tudo isso, há um eterno menino se queixando.
Por outro lado, há uma questão humana que se pergunta, e eu entendo, que é: “vou ou não vou até o fim? Nós somos seres pensantes, não estamos totalmente presos às leis da vida, há decisões a serem tomadas”.
Mas aqui estou eu, sendo arauto em poesia e carne da Cecília. Talvez a morte nem exista.