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Memórias sufocadas em eterno retorno

Documentário "Memória Sufocada", do cineasta brasileiro Gabriel di Giacomo, aborda o autoritarismo e impunidade na história recente da política brasileira

Por João Victor Guimarães
13 abr 2023, 16h14
Trecho do documentário "Memória Sufocada"
 (Gabriel Di Giacomo/reprodução)
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Há desgraças cujos rastros são indeléveis, verdadeiras maldições insuperáveis. Quando algo assim ocorre de forma sistemática e orquestrada nas vidas dos cidadãos e cidadãs de um país, as teias do passado podem não ser o suficiente para conter seu eterno retorno. O documentário Memória Sufocada, dirigido, roteirizado e montado por Gabriel Di Giacomo, está em cartaz nos cinemas de todo o país apresentando-nos uma importante ponte entre o ainda atual autoritarismo na política brasileira e nosso passado ditatorial.

Gabriel Di Giacomo, diretor do documentário
Gabriel Di Giacomo, diretor do documentário “Memória Sufocada” (Gabriel Di Giacomo/reprodução)

 

Passados quatro anos desde que Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente presidente de um país democrático, ainda buscamos entender como foi possível ele, um ex-deputado que tornou-se amplamente conhecido após homenagear a memória do torturador Carlos Brilhante Ustra, não compreendeu tamanha contradição. Como um fruto de um dos mais fortes símbolos da democracia pode louvar quem a ameaça? Talvez não seja exagero afirmar que Memória Sufocada apresenta-nos alguns indícios para compreendermos melhor a questão.

Trecho do documentário
(Gabriel Di Giacomo/reprodução)

Foram quatro anos sanguinários, não apenas sangrentos. Não são poucas as pessoas que sequer suportam as memórias traumáticas desse período tão próximo. O contrário: querem afirmações de mudanças positivas no futuro próximo. Parte significativa da população parece desejar um respiro aliviado, pulmões plenos do ar da humanidade, da dignidade garantida, do bem-estar, sem fome, sem armas. A mentalidade geral é que precisamos esquecer o passado. No entanto, Memória Sufocada nos planta uma semente da dúvida. Será que conseguiremos esquecer? Talvez precisemos lembrar para garantir o bem-viver no futuro.

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Sim, Memória Sufocada não é um filme aprazível, facilmente suportável ou leve como pluma. Dói! Mesmo escolhendo estrategicamente não apresentar cenas que reproduzem violências fetichizadas pelos fanáticos, o filme expõe outro tipo de violência: a que permitiu que permaneçam ainda hoje intactas as sementes da ditadura militar brasileira de 1964. Lembrar os momentos nos quais erramos enquanto nação, enquanto democratas e nos quais todas as nossas instituições falharam, parece ser um dos principais objetivos alcançados pelo filme que, aliás, se propõe a ser quase didático ao escolher um formato que insere recursos digitais e através deles, de maneira objetiva e direta, apresenta informações capazes de desmentir absurdos e elucidar questões fundamentais. Mesmo quando o filme parece de mãos atadas diante de mentiras e distorções, o que ele nos mostra é que o problema está na incapacidade e indisposição do Estado em responder a ideias, práticas e grupos que atentaram e/ou seguem atentando contra o Estado Democrático de Direito. As mãos que estão atadas não são as do filme, mas sim as mãos atadas pelo silêncio da Justiça.

Trecho do documentário
(Gabriel Di Giacomo/reprodução)

Muitas dessas mãos e almas atadas são de vítimas que tornam-se reféns dos delírios provenientes de mentes criminosas. Tais delírios não raramente são recursos das mentes que precisam, elas mesmas, se convencer da própria inocência. Por exemplo, há momentos nos quais o chorume Brilhante Ustra parece enraivecido com o apontamento a uma contradição que interfere na sua imagem de inocente. Sua ira é motivada pela necessidade de se dizer íntegro, decente e inocente, quando não vítima do processo no qual é réu. Mesmo sendo ele o cuspe do cu do mundo, sua mente fará o necessário para dizer-lhe o contrário e assim fazê-lo tomar atitudes a fim de convencer a todos do seu irreal heroísmo. O problema é que o oposto de acusação não é inocência, é outra acusação delirante. É como se vingam. Esse é um fator absolutamente relevante quando tratamos de mentes que unem fanatismo, sadismo e crimes. Se tratando de símbolos políticos, seus delírios assumem uma dimensão ameaçadora. É algo a ser considerado porque se distingue da presunção da inocência por se tratar de um universo paralelo, portanto inválido à realidade compartilhada. Temos que discutir não apenas a realidade íntima, mas realçar a validade do mundo real. Isso é também uma disputa de narrativa que, assim como muitas outras etapas, foi completamente ignorada pelo Estado Brasileiro no que se refere à ditadura militar resultante do movimento golpista cívico-militar de 1964. O que nos garante que agora será diferente em relação ao movimento que culminou no último dia 8 de janeiro, Dia da Infâmia? Memórias Sufocadas faz questão de destacar a evolução de um delírio de nível pessoal que torna-se coletivo e assume o caráter criminoso já presente na sua origem. E agora, o que faremos com os nossos delírios contemporâneos e potencialmente criminosos? O que faremos com quem cometeu crimes em nome dos seus delírios?

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Trecho do documentário
(Gabriel Di Giacomo/reprodução)

São perguntas que não se deixam calar. Suas respostas são incompatíveis ao menor erro. Aliás, no final do filme há um magnífico: Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão são creditados como presidente e vice-presidente do Brasil, respectivamente. O melhor momento do filme (e das nossas vidas) é lembrar que não mais o são. Mas e agora? A justiça ainda precisa ser feita.

 

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