Memórias sufocadas em eterno retorno
Documentário "Memória Sufocada", do cineasta brasileiro Gabriel di Giacomo, aborda o autoritarismo e impunidade na história recente da política brasileira
Há desgraças cujos rastros são indeléveis, verdadeiras maldições insuperáveis. Quando algo assim ocorre de forma sistemática e orquestrada nas vidas dos cidadãos e cidadãs de um país, as teias do passado podem não ser o suficiente para conter seu eterno retorno. O documentário Memória Sufocada, dirigido, roteirizado e montado por Gabriel Di Giacomo, está em cartaz nos cinemas de todo o país apresentando-nos uma importante ponte entre o ainda atual autoritarismo na política brasileira e nosso passado ditatorial.
Passados quatro anos desde que Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente presidente de um país democrático, ainda buscamos entender como foi possível ele, um ex-deputado que tornou-se amplamente conhecido após homenagear a memória do torturador Carlos Brilhante Ustra, não compreendeu tamanha contradição. Como um fruto de um dos mais fortes símbolos da democracia pode louvar quem a ameaça? Talvez não seja exagero afirmar que Memória Sufocada apresenta-nos alguns indícios para compreendermos melhor a questão.
Foram quatro anos sanguinários, não apenas sangrentos. Não são poucas as pessoas que sequer suportam as memórias traumáticas desse período tão próximo. O contrário: querem afirmações de mudanças positivas no futuro próximo. Parte significativa da população parece desejar um respiro aliviado, pulmões plenos do ar da humanidade, da dignidade garantida, do bem-estar, sem fome, sem armas. A mentalidade geral é que precisamos esquecer o passado. No entanto, Memória Sufocada nos planta uma semente da dúvida. Será que conseguiremos esquecer? Talvez precisemos lembrar para garantir o bem-viver no futuro.
Sim, Memória Sufocada não é um filme aprazível, facilmente suportável ou leve como pluma. Dói! Mesmo escolhendo estrategicamente não apresentar cenas que reproduzem violências fetichizadas pelos fanáticos, o filme expõe outro tipo de violência: a que permitiu que permaneçam ainda hoje intactas as sementes da ditadura militar brasileira de 1964. Lembrar os momentos nos quais erramos enquanto nação, enquanto democratas e nos quais todas as nossas instituições falharam, parece ser um dos principais objetivos alcançados pelo filme que, aliás, se propõe a ser quase didático ao escolher um formato que insere recursos digitais e através deles, de maneira objetiva e direta, apresenta informações capazes de desmentir absurdos e elucidar questões fundamentais. Mesmo quando o filme parece de mãos atadas diante de mentiras e distorções, o que ele nos mostra é que o problema está na incapacidade e indisposição do Estado em responder a ideias, práticas e grupos que atentaram e/ou seguem atentando contra o Estado Democrático de Direito. As mãos que estão atadas não são as do filme, mas sim as mãos atadas pelo silêncio da Justiça.
Muitas dessas mãos e almas atadas são de vítimas que tornam-se reféns dos delírios provenientes de mentes criminosas. Tais delírios não raramente são recursos das mentes que precisam, elas mesmas, se convencer da própria inocência. Por exemplo, há momentos nos quais o chorume Brilhante Ustra parece enraivecido com o apontamento a uma contradição que interfere na sua imagem de inocente. Sua ira é motivada pela necessidade de se dizer íntegro, decente e inocente, quando não vítima do processo no qual é réu. Mesmo sendo ele o cuspe do cu do mundo, sua mente fará o necessário para dizer-lhe o contrário e assim fazê-lo tomar atitudes a fim de convencer a todos do seu irreal heroísmo. O problema é que o oposto de acusação não é inocência, é outra acusação delirante. É como se vingam. Esse é um fator absolutamente relevante quando tratamos de mentes que unem fanatismo, sadismo e crimes. Se tratando de símbolos políticos, seus delírios assumem uma dimensão ameaçadora. É algo a ser considerado porque se distingue da presunção da inocência por se tratar de um universo paralelo, portanto inválido à realidade compartilhada. Temos que discutir não apenas a realidade íntima, mas realçar a validade do mundo real. Isso é também uma disputa de narrativa que, assim como muitas outras etapas, foi completamente ignorada pelo Estado Brasileiro no que se refere à ditadura militar resultante do movimento golpista cívico-militar de 1964. O que nos garante que agora será diferente em relação ao movimento que culminou no último dia 8 de janeiro, Dia da Infâmia? Memórias Sufocadas faz questão de destacar a evolução de um delírio de nível pessoal que torna-se coletivo e assume o caráter criminoso já presente na sua origem. E agora, o que faremos com os nossos delírios contemporâneos e potencialmente criminosos? O que faremos com quem cometeu crimes em nome dos seus delírios?
São perguntas que não se deixam calar. Suas respostas são incompatíveis ao menor erro. Aliás, no final do filme há um magnífico: Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão são creditados como presidente e vice-presidente do Brasil, respectivamente. O melhor momento do filme (e das nossas vidas) é lembrar que não mais o são. Mas e agora? A justiça ainda precisa ser feita.