Apresentar a vida e a glória da vida de Mestre Moa do Katendê
Filme-manifesto “Môa, Raiz Afro Mãe” conta com ilustres depoentes e distinta síntese de pilares filosóficos
É fato natural e histórico que chegamos em algum nível de exaustão. Viver momentos catárticos e/ou históricos cansa. Foram vários desastres por dia nos últimos quatro anos. Isso se reflete também na cultura e na disposição que nós, ora produtores, ora público, sentimos para nos debruçar sobre determinadas obras que tratam de determinados assuntos. Se tratando, como é o caso, de um filme sobre uma figura que teve sua morte motivada pelo o que à época era prenúncio do que seria nosso futuro – e já foi!, é esperado que imaginemos revisitar todo o sofrimento.
Môa, Raiz Afro Mãe busca nos ambientar da forma mais inteligente e gloriosa possível. Para entender o que perdemos, temos que lembrar o que tivemos e celebrar o que permanece vivo, inteiro. No caso de Mestre Moa do Katendê, tivemos e temos os fundamentos raros e lindos. A trajetória gloriosa da personagem é apresentada de forma que reconheçamos seu tamanho sem depender da marca da sua morte. Antes de morrer já somos imensos. E essa é uma perspectiva que, embora pareça óbvia ou demasiadamente nietzschiana, mostra-se absolutamente presente em sua trajetória notadamente filosófica, artística e, portanto, política. Reduzir a vida de Moa ou de qualquer pessoa negra à morte é um hábito sabidamente colonial. Apresentar a vida e a glória da vida de Mestre Moa não é só uma estratégia, mas uma atitude filosófica e, para nosso acalanto e desespero, intraduzível.
Agora disponível para aluguel nas principais plataformas digitais e recentemente vencedor do prêmio de melhor documentário no Inffinito Film Festival, Môa, Raiz Afro Mãe, consegue apresentar de forma muito bem esquematizada e fluida, graças sobretudo à sua montagem assinada por Gustavo McNair e Danilo Trombela, noções filosóficas muito difíceis de se traduzir de forma coerente, didática e respeitosa com sua complexidade e segredos. É por isso que afirmo tratar-se de um filme-manifesto: apresenta-nos referenciais filosóficos da cultura afro-brasileira que destacam a relevância da vida de Mestre Moa do Katendê de forma que percebamos e nos contagiemos por sua beleza, talento, sabedoria e glórias. Contágio esse que se revela não só através do reconhecimento ou da ânsia por dar continuidade, mas sobretudo pela compreensão dessas filosofias que são fundadoras, embora rechaçadas, da nossa sociedade. São, como sempre foi, graças a pessoas, heróis e heroínas, como Mestre Moa do Katendê, que salvaguardamos saúde, axé, tempo, bem-estar, sabedoria e todas as nossas tecnologias de cura. É isso que o filme nos evidencia.
Não podemos afirmar, no entanto, que celebrar sua vida seja razão para se aprofundar na sua morte. Claro que o crime tem seu lugar no filme, mesmo que diminuto já que toda sua estrutura nos leva a analisar sua morte não apenas como a ausência de um corpo físico causada pelo bolsonarismo, mas de outra forma. Mestre Moa está no futuro como está aqui e agora graças ao que fez ontem. É uma noção de tempo não linear e não eurocêntrica, de difícil compreensão para quem nunca teve contato com tal “arquivo de corpo” ou filosofia. Com isso quero dizer que as mãos que tiraram a vida de Mestre Moa, em síntese, são as mesmas que tentam há séculos dominar a sabedoria e agência (para não dizer resistência) dos povos libertos. É a eterna selvageria branca apavorada com a liberdade, a beleza e a imensidão. Foram, como cotidianamente são, pelas mãos da polícia ou não, as mãos do retrocesso.
O assassinato de Mestre Moa sintetiza uma parte do Brasil. A outra supera a violência com uma sabedoria e grandiosidade que a branquitude sequer vislumbra. Toda a postura do Mestre Moa, toda sua vida, foi para fortalecer o que deve ficar em quem fica. Isso, não há arma branca que tire. Mestre Moa canta na cara do Brasil o que sua estupidez e violência nos levou a perder. Mas o faz cantando tudo aquilo que continua, através e graças a ele, a viver.
Embora possa parecer, não há aqui nenhuma tentativa de amenizar a dor do sofrimento. Obviamente, o que devemos perseguir obsessivamente
é um Estado no qual violências como assassinatos não sejam em hipótese alguma permitidos, tolerados ou relativizados, tampouco encorajados por autoridades. Persigamos uma nação na qual pessoas negras e pobres só morram de causas naturais e inevitáveis, jamais por violência. É absolutamente abominável o assassinato de alguém por razões quaisquer que sejam, mas é ainda mais desesperador quando um monumento (eternamente vivo) como Mestre Moa é assassinado por um esqueleto sem razão, verme tão pouco e mesquinho. Um assassino que deve ser condenado o mais justamente possível. Dito isso, trato aqui sim de um filme que opta por nos mostrar uma beleza, exemplar e digníssima trajetória. Saímos do filme querendo escutar todas as músicas e aprendê-las para, como se fossem preces, cantar. Mais do que apresentar Moa para quem não teve a chance de conhecê-lo, Môa, Raiz Afro Mãe nos faz sentir a importância de vidas como a ele para vidas como as nossas. Poderia até arriscar que talvez, o filme nos ative o ímpeto não só de celebrá-la mas incorporá-la. Salve Mestre Moa!