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Uma cidade que se ilumina com o cinema

Olhares de visitantes, moradores e trabalhadores sobre a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Por Humberto Maruchel
3 fev 2023, 10h37

No último dia 28, encerrou-se a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o mais importante festival de cinema contemporâneo do país. Conhecida por abrir o calendário de mostras dedicadas ao audiovisual do ano, a Mostra recebe cerca de 35 mil visitantes de todo o país – cinco vezes mais que toda a população da cidade mineira. Entre os profissionais da imprensa, do audiovisual, os participantes do festival, os estudantes e curiosos, havia também quem foi até lá apenas pela festa. Convenhamos, todos os motivos são plausíveis, mas aproveitou melhor quem ficou para conhecer as produções que estrearam no festival e participar das discussões sobre os rumos do cinema brasileiro.

O festival de 2023 foi mais animado do que as últimas edições. Motivos não faltam. É a primeira vez desde a pandemia que o evento acontece presencialmente. Outro fator é a recriação do Ministério da Cultura e a aprovação de importantes leis culturais, como a Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc 2 (Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura), que beneficiam especialmente o cinema. Na cidade histórica com aspecto barroco, de Minas Gerais, por motivos óbvios, se falava muito de cinema, mas também sobre os planos para o setor.

Um novo tempo para a cultura

Havia também espaço para muitas perguntas. Uma delas é: por que o público do cinema diminuiu tanto depois da pandemia? Seria o valor do ingresso? Ou grande oferta de streamings? Em, contrapartida, festivais de músicas parecem ter crescido. Não há uma resposta que resolva a questão.

Neste ano, o festival deu início a outra empreitada: criou o Fórum de Tiradentes. Dele participaram mais de 70 profissionais do audiovisual, que trabalharam e discutiram ao longo de dois meses para fazer um diagnóstico sobre a situação do audiovisual no Brasil. Se dividiram em grupos de trabalho para pensar em propostas para o setor. E assim fizeram. O documento final, com proposições para políticas públicas, será entregue ao Ministério da Cultura.

Andar com fé

Quando se pensa em cidades que representam o universo cinematográfico, talvez Tiradentes não seja a escolha mais óbvia. As paisagens do Rio de Janeiro, São Paulo ou Salvador já estão fixas no nosso imaginário como cenários ideais para a narrativa visual. Mas um festival de cinema parece se beneficiar ainda mais numa região com o perfil da pequena cidade mineira. Isso porque o propósito daquele território se torna um só. Os sons dos filmes ecoam pelas ruas. Os rostos vão se tornando cada vez mais familiares ao longo dos dias, e toda a cidade parece se iluminar e ganhar vida com as atrações que acontecem nos espaços públicos. Os diversos cachorros se misturam na plateia. Alguns mais exigentes latem em protesto aos filmes exibidos. Outros fazem graça e roubam os sapatos dos visitantes (sim, isso aconteceu).

Um festival dessa espécie é, acima de qualquer outra coisa, uma lição sobre como ocupar a cidade. O cinema só faz sentido quando os encontros acontecem. A experiência é sempre coletiva, mesmo quando decidimos ir sozinhos para alguma sessão. O riso e o choro são compartilhados. E o cinema é sobre pessoas, histórias desconhecidas. Um festival, portanto, não poderia ser diferente.

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Durante a semana que estivemos na Mostra, conhecemos alguns personagens da cidade, moradores, trabalhadores e visitantes. Aqueles que, de maneira direta ou não, contribuíram para que o evento tomasse vida.

Duas fotos, uma de José Fernandes sozinho ao lado de uma pipoqueira. Na segunda José Fernandes está acompanhado de Pedro.
(Humberto Maruchel/arquivo)

Uma das figuras centrais é José Fernandes, 51 anos, nascido em Tiradentes. Todos os dias, seu Zé chega na praça central de Tiradentes e ali instala seu carrinho de pipocas. Ele vem acompanhado de seu sobrinho, Pedro, 19. Há 30 anos o percurso é o mesmo. Ocupou o lugar deixado por seu pai, Pedro Fernandes, dono da primeira geração da pipoca. “Temos um legado muito bonito em Tiradentes. A gente sempre vinha com ele para praça, ajudava um pouco ou ficava brincando.” Dos cinco filhos de Pedro, ele foi o único que decidiu permanecer e manter a tradição do pai. “Na época dele, não havia esse peso turístico aqui, era uma cidade mais tranquila. Para gente, é muito importante porque vivemos do turismo”, ele conta. “Lembro da primeira Mostra. Nós ficamos naquela expectativa de como seria. E foi maravilhosa. De lá para cá, foi só crescendo.”

Eloa sorri na foto. Veste um crachá. Atrás dela é possível ver um espaço com janelas e palco.
(Humberto Maruchel/arquivo)

Ao lado da rodoviária de Tiradentes, espaço em que foi instalada uma enorme tenda de cinema, está Eloá, 31. Nascida em São João Del Rei, trabalha há seis anos como segurança de eventos. Neste ano foi contratada para cuidar da Mostra de Cinema. Embora sua cidade esteja apenas a 11km de Tiradentes, essa foi a primeira vez que pôde participar do festival. Mas ela conhecia bem a fama do evento. “Tem gente que nunca teve a oportunidade de ir ao cinema e vai pela primeira vez aqui.”

“Temos um legado muito bonito em Tiradentes. A gente sempre vinha com meu pai para praça, ajudava um pouco ou ficava brincando. Na época dele, não havia esse peso turístico aqui, era uma cidade mais tranquila. Para gente, é muito importante porque vivemos do turismo”

José Fernandes

Neste ano, Eloá conseguiu aproveitar assistir alguns curtas que foram exibidos. “Totalmente diferentes do que passava pela minha cabeça. Imaginava algo como sessão da tarde e aqui você precisa entrar na cabeça do criador, do cineasta.” Para além dos filmes, ela conta que a possibilidade de trabalhar no Mostra trouxe algo muito importante: conhecer e ouvir histórias de pessoas de outras partes do país. 

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Pelas ruas

Em outro ponto escondido da cidade, no Centro Cultural Yves Alves, que fica na Rua Direita, estava localizado o cine-teatro. Alessandra, 49, trabalha ali com serviços gerais e não esconde seu entusiasmo com o evento. Ela participa da Mostra desde 2000. Trabalhava, até então, como cobradora de transporte coletivo e estava acostumada a deixar os visitantes na Mostra. As impressões do festival eram formadas pelos burburinhos que escutava. Neste ano foi a primeira vez que viveu o evento por dentro. “Eu gosto muito de observar tudo que ocorre ao meu redor. Eu vejo esses realizadores enaltecidos com o festival e isso me fascina.”

Alessandra sorrindo.
(Humberto Maruchel/arquivo)

“Me parece que isso aqui é um núcleo, um espaço que se estende para fora daqui. Conseguimos fomentar o cinema, definir projetos. O nosso trabalho é muito diferente do comum. Precisamos muito desse encontro”

Jesuíta Barbosa

Assim como Zé, ela ainda não conseguiu assistir às obras do festival, mas confessa que não sente tanta falta. “Eu gosto mesmo do movimento, de conversar com as pessoas. De ver Ney Matogrosso passando do meu lado. Acredita? Parece um imortal em carne e osso. Disseram que Jesuíta Barbosa estava aqui e foi muito simpático com todos.”

Conhecendo o festival presencialmente, ela faz outra observação. “Dessa vez, senti que não veio tanta gente da nossa região. Vieram mais de outras partes, de fora, mas não tanto daqui.” Quando questionada o motivo, ela faz algumas suposições. “Não sei se é por falta de informação de que está acontecendo o evento. Mas vou ser sincera: eu observo as palestras e algumas vezes não consigo acompanhar porque parece que as pessoas têm um dialeto, uma linguagem diferente. Acho que muitos só vêm quando tem uma atração mais popular. Por exemplo, fiquei sabendo que teve um pagode ontem e a tenda lotou. Acho que o povo gosta mais disso.”

Jesuíta Barbosa fala em um microfone.
(Jackson Romanelli/arquivo)

No jardim do teatro, um artista conhecido está parado. Ele é um dos convidados da Mostra por integrar uma das obras que concorriam no festival. Jesuíta Barbosa, 31, atrai os olhares por onde passa. Com jeito tranquilo, olhar atento, ele atende todos os pedidos para tirar fotos e conversa pacientemente com diversos jornalistas sobre o seu novo longa A Filha do Palhaço, de Pedro Diógenes. A obra venceu o prêmio do Júri Popular do festival. É a segunda vez que o ator participa da Mostra de Cinema. “Me parece que isso aqui é um núcleo, um espaço que se estende para fora daqui. Conseguimos fomentar o cinema, definir projetos. O nosso trabalho é muito diferente do comum. Precisamos muito desse encontro. Claro que todos os trabalhos precisam, mas a arte se beneficia ainda mais disso aqui. Essa cidade parece ter uma estrutura energética e também histórica nos torna mais aptos a pensar Brasil, pensar em histórias. Fico muito feliz com esse lugar.”

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Além da presença, chama atenção aos olhos de outros visitantes o fato de que Jesuíta não parece ter medo de se perder na multidão e a impressão é reforçada em suas palavras. “Eu gosto de me misturar.”

Guilherme Henrique
(Humberto Maruchel/arquivo)

Do outro lado da rua, no restaurante ANGAbar, Guilherme, 23, se desdobra para atender aos pedidos dos novos visitantes. Jovem que parece tímido, nascido em Barbacena, se mudou para Tiradentes há quase cinco anos. “É uma cidade calma que se torna mais movimentada em alguns períodos do ano. É perfeita para pessoas que gostam de mais tranquilidade, mas não querem cair no tédio.”

A primeira vez que veio na Mostra foi por indicação de um amigo, que viu os títulos dos filmes e ficou curioso. Depois dessa vez, virou frequentador do festival. “Para mim é o melhor evento da cidade, ainda mais por ser gratuito e pela riqueza cultural que ele traz. É um evento que abre a cabeça das pessoas e mostra que o cinema também está aí para espalhar cultura e entretenimento.”

Marina Barbosa sorri. Atrás dela é possível ver o telhado de uma casa e vegetação.
(Humberto Maruchel/arquivo)

De volta ao cine-teatro, Marina Barbosa, 33, está sentada em uma das cadeiras em frente ao balcão de um café. Naqueles dias, ela é a proprietária daquele pequeno espaço. Foi contratada de última hora para cuidar do café e dos lanches, servidos nos intervalos das atividades. Ela conta que se mudou para Tiradentes há quatro anos. Antes disso, morava em Juiz de Fora (MG), e se mudou em função de uma oportunidade para trabalhar em um restaurante em Tiradentes. Há mais ou menos um ano, abriu o próprio negócio no sítio em que mora, o Sítio do Esconde, onde faz jantar às cegas e eventos. “Eu já pensava em vir para Tiradentes. Eu gosto de cidade pequena, gosto de mato. Eu só entendi isso quando me mudei para cá. Desde então, tudo se transformou, mas eu continuo muito apaixonada pela cidade. Eu gosto muito daqui porque posso andar a pé, me sinto segura.”

“Eu gosto mesmo do movimento, de conversar com as pessoas. De ver Ney Matogrosso passando do meu lado. Acredita? Parece um imortal em carne e osso”

Alessandra
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Apesar de ter vindo sozinha, decidida a ocupar essa pequena cidade, ela conta que não se sente só nessa nova morada. “Foi um mergulho de autoconhecimento, de introspecção.” A primeira vez que veio para Mostra de Cinema foi em 2008. “Foi um mundo se abrindo. Cinema na praça, cinema de graça. Lembro de assistir ao filme Nome Próprio (de Murilo Salles), que me marcou muito. É muito bonito o que acontece aqui, ver o cortejo de arte, as festas, o envolvimento das pessoas.” 

Após alguns minutos de conversa, um senhor, de aproximadamente 80 anos, se aproxima, é um velho conhecido de Marina. Ele pergunta se o café está funcionando. Ela se levanta para atendê-lo e logo em seguida retorna. “Esse senhor se chama Paulo André, ele tem até uma cachoeira com o nome dele aqui na cidade. Eu conheci ele nesse mesmo espaço, em outro evento. Agora, ele vem sempre aqui.” Ela reflete um pouco como se estivesse lembrando dos motivos que a fizeram ficar em Tiradentes e conclui: “É muito legal isso, esses encontros acontecem o tempo todo.”

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