Mostra de Cinema Tiradentes de volta às ruas
A 26ª edição do festival começa com a pré-estreia de Mugunzá e a celebração da esperança de dias melhores para a cultura nacional
Começou na sexta-feira, 20, a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, um dos maiores e mais importantes festivais de cinema contemporâneo do país. Ao longo de uma semana, o evento ocupa as ruas históricas da pequena cidade no sudoeste de Minas Gerais com cinema, música, teatro, literatura e mais cinema. Trata-se de uma temporada em que a comunidade local, com seus pouco mais de 7 mil habitantes, gira em torno do cinema.
Neste ano, a Mostra homenageia os cineastas Glenda Nicário e Ary Rosa, fundadores da Rosza Filmes, que já realizou filmes como Café com Canela (2017), Ilha (2018), Até o Fim (2020), e que abriu o festival neste ano com seu longa mais recente, Mugunzá. A dupla bate carteirinha no festival desde o tempo em que eram estudantes de cinema.
Embora tenham nascido em Minas – Ary em Pouso Alegre, Glenda em Poços de Caldas –, decidiram fundar a produtora em Cachoeira, na Bahia. No início, vinham para Tiradentes com objetivo de aprender e ver o que estava sendo feito em termos de cinema contemporâneo. Não demorou muito para que fossem convidados para debater seu estilo de cinema e, claro, concorrer no festival.
Quando falam sobre o trabalho da Rosza, Glenda e Ary reforçam a importância dos investimentos públicos na educação e no audiovisual para que suas narrativas ganhassem forma. Inclusive aqueles que permitiram a criação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, onde se conheceram às margens do rio Paraguaçu, em 2005. A paixão pelo lugar e o desejo de devolver àquele território tudo que ele proporcionou foram decisivos para que permanecessem ali quando formados. “O Recôncavo já foi mostrado de diversas formas, mas nunca ou muito pouco a partir do Recôncavo, por falta de políticas públicas. Houve uma transformação muito grande dos anos 2000 para cá. E acho que ter ficado nesse território foi a escolha mais importante que nós fizemos. Mudou a nossa perspectiva de produção”, afirma Ary.
“O coletivo é um dos pilares do nosso trabalho. É impossível fazer filmes do jeito e com a frequência que fazemos se não for pelo amor e generosidade de quem está com a gente”
Ary Rosa, Rosza Filmes
Com um espaço consolidado, produzindo um filme por ano, ainda são indagados sobre o estilo de linguagem que desenvolvem em suas narrativas. Na última vez que vieram como convidados para um debate na Mostra, ouviram de um dos participantes o seguinte comentário: “Os filmes que vocês fazem são interessantes, mas eles têm um palavreado muito específico. Será que o povo vai entender?” Sem precisar pensar muito, Glenda logo refutou: “É o povo que está fazendo esse filme. Prazer.”
Cinema mutirão
O tema da edição deste ano da Mostra diz respeito ao cinema de grupo, que resiste e é criado em meio a um contexto de precariedade, especialmente em cenário de precariedade, e só é possível a partir do trabalho coletivo. Afinal, cinema não se faz sozinho. A temática, no entanto, faz alusão aos difíceis anos de pandemia e também ao desmantelamento do setor cultural no país . O cinema mutirão define bem o que Glenda e Ary fazem com a produtora Rosza Filmes. “O coletivo é um dos pilares do nosso trabalho. É impossível fazer filmes do jeito e com a frequência que fazemos se não for pelo amor e generosidade de quem está com a gente”, comentou Ary.
Antes de encontrar o cinema e Ary, Glenda veio do teatro. É a primeira da família a entrar na universidade, algo que nem ela mesma esperava fazer. “Só cheguei aqui por conta do Sisu [Sistema de Seleção Unificada]”, completa, em menção ao sistema criado em 2010, que permitiu o ingresso em universidades a partir da nota do Enem.
Festa e política
Entre curtas e longas, ficção e não ficção, a programação deste ano traz mais de 130 títulos de realizadores de 19 estados brasileiros. Entre eles estão: Alegria é a Prova dos Nove, de Helena Ignez, A Menina e o Mar, de Gabriel Mellin, Amazônia, a Nova Minamata?, de Jorge Bodanzky, o documentário Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, de Pedro Bronz.
Após a intromissão da pandemia, que instaurou uma muralha aos encontros, o festival volta às origens no formato presencial – embora, parte da programação possa ser vista online. “Nós estamos voltando ao presencial com a certeza de que não podemos abandonar o online”, afirma Raquel Hallak d’Angelo, uma das organizadoras da Mostra. “Descobrimos com o online a possibilidade de levar o cinema brasileiro para todos os cantos do mundo.”
Calhou deste retorno acontecer numa fase em que a cultura volta a brilhar os olhos com o restabelecimento do Ministério da Cultura e a aprovação definitiva de importantes legislações para o setor, como a Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc 2 [Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura], que visam repasses bilionários anuais para o fomento de atividades culturais e a implementação das mesmas nos municípios onde elas são inexistentes. O clima em Tiradentes é de celebração.
Por ser um festival de cinema contemporâneo, a mostra exibe curtas, médias e longas-metragens que raramente estão presentes no circuito comercial de cinema. Ademais, o evento estabelece um ponto focal de encontros entre os realizadores, produtores, pesquisadores e gestores da economia criativa. É possível ver diretores, atores e músicos subirem e descerem as vielas pedregosas de Tiradentes.
Uma das novidades neste ano é a criação de um Fórum de Tiradentes, que reúne mais de 50 profissionais do setor, divididos em grupos de trabalho para realizar diagnósticos sobre os desafios, entender as demandas do audiovisual e pensar diretrizes para criação de novas políticas públicas para o meio. Ao fim do evento, será entregue um documento oficial, com tais orientações, ao Ministério da Cultura. “A proposta era: vamos aproveitar que estamos apresentando produções de 19 estados brasileiros, onde temos uma presença maciça de representatividade, então vamos instituir um fórum para podermos dialogar com o Ministério, que está sendo recriado, e assim nos transformarmos em um agente colaborativo. Não apenas debater a nossa temática, mas entender o que o setor está demandando após tantos anos silenciado e sem espaço para diálogo” , conta Raquel.
O grupo deve partir de quatro eixos propostos pela coordenação da Mostra: descentralizar o cinema, valorizar a diversidade, promover o desenvolvimento econômico e defender a democracia. “A transversalidade de discussões é o grande diferencial para termos um documento consistente e representativo do que o setor quer e o que ele pode apresentar ao Ministério da Cultura como uma demanda real legitimada”, completa Raquel.
“Não tem como não ser político falando de imagens que nos representam. Estamos falando de um cinema brasileiro, contemporâneo, feito agora. E o cinema que a gente apresenta é um retrato do país. Estamos aqui debatendo as imagens que assistimos, e tratando dessa conjuntura política em que esse cinema foi feito”
Raquel Hallak d’Angelo, organizadora
O lugar é de festa, mas também é de política, que busca a democratização do audiovisual. A Mostra de Tiradentes mostra o desejo cada vez mais latente de se aproximar de um cinema que seja um reflexo um pouco mais acurado do que é o Brasil. “Não tem como não ser político falando de imagens que nos representam. Estamos falando de um cinema brasileiro, contemporâneo, feito agora. E o cinema que a gente apresenta é um retrato do país. Estamos aqui debatendo as imagens que assistimos, e tratando dessa conjuntura política em que esse cinema foi feito.”
A reportagem está em Tiradentes à convite da Secretaria de Cultura,
Tiradentes – MG
De 20 a 28/01
Com sessões online e presenciais gratuitas
Todos os eventos da Mostra são gratuitos