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“Para onde voam as feiticeiras”, um teste falho pelas ruas de São Paulo

Documentário de Beto Amaral, Carla Caffé e Eliane Caffé acompanha um grupo de artistas queer pelo centro da capital paulista no 1º ano do governo Bolsonaro

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 30 ago 2023, 13h52 - Publicado em 29 ago 2023, 13h49
Bastidores do filme "Para Onde Voam as Feiticeiras".
 (Henrique Hennies/divulgação)
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Em 2016, durante as filmagens do documentário “Era o Hotel Cambridge”, que retrata a rotina de uma ocupação em um edifício no centro de São Paulo, a cineasta Eliane Caffé se deparou com a diversidade que habitava aquele lugar. Comunidades diferentes precisavam estabelecer regras e acordos para uma convivência harmoniosa. Apesar das divergências, todos enfrentavam um desafio compartilhado: a falta de moradia na maior e mais rica metrópole do país. Dentro desse movimento no edifício abandonado, destacava-se um coletivo especial composto por pessoas LGBTQIA+ que carregavam as cicatrizes da discriminação das ruas.  

A compreensão da necessidade de criar alianças na luta por direitos despertou um desejo em Eliane. A vontade se concretizou anos mais tarde em outro filme, intitulado “Para onde voam as feiticeiras”, que estreia dia 31 de agosto nos cinemas. 

Em uma conversa por telefone, Eliane nos relata que fazer esse filme foi como estar em uma universidade, onde pôde aprender mais sobre as dinâmicas de diferentes movimentos, especialmente aquelas da comunidade LGBTQIA+, junto a outras batalhas de grupos minoritários. “Não podemos mais tratar as lutas de forma isolada. É fundamental identificar os pontos de convergência. E é exatamente isso que buscamos provocar com esse filme”, argumenta. A suposição era de que um inimigo em comum tinha o potencial de unir movimentos identitários diversos. Nesse contexto, ela reconhece como inimigo todo um sistema comandado por indivíduos brancos e cisgêneros.

O documentário, filmado em apenas quatro dias, foi produzido em 2019, período marcado pelo início do governo de Jair Bolsonaro. O planejamento foi realizado ao lado da diretora de arte (e irmã de Eliane) Carla Caffé e do produtor Beto Amaral, já o roteiro foi elaborado ao lado de uma comunidade de artistas-ativistas queer conhecida como “manas”, formado por Ave Terrena Alves, Fernanda Ferreira Ailish, Gabriel Lodi, Mariano Mattos Martins, Preta Ferreira, Thatha Lopes e Wan Gomez. No experimento cinematográfico, os criadores desejavam explorar as interseções entre os movimentos de minorias — LGBTQIA+, negros e indígenas — em busca de um objetivo comum. Não havia muitas pretensões além de ligar a câmera e observar o que aconteceria depois do play.

Bastidores do filme
(Henrique Hennies/divulgação)
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O filme não possuía uma narrativa pré-definida inicialmente e a equipe estava disposta a acolher os imprevistos. Tudo se desenrolava nas ruas do centro de São Paulo, que serviam, ao mesmo tempo, como laboratório e palco.

Já na sequência de abertura, somos apresentados às “manas” ocupando as vielas do centro, portando câmeras e equipamentos de gravação, deslocando-se de um lado para outro, enquanto expressam o desejo de criar um filme. A narrativa, porém, já está em desenvolvimento.

Conforme o filme avança, elas se conectam com outros indivíduos: pedestres, frequentadores de bares, vendedores ambulantes e membros de outros movimentos e causas. “Nós vamos falar dos corpos precarizados: da preta, do gay, da travesti, do sem-teto, do indígena”, declara Preta Ferreira durante o filme, para outra mulher. “Vai falar da gente”, responde a senhora, que também é negra. “Todos os povos sofrem algum tipo de violência: violência de terem seu território tirado, de perderem sua cultura”, afirma Sônia Guarani, do Pico Jaraguá.

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A aposta inicial está no estranhamento que esse grupo pode provocar no ambiente. Mas é então que emerge a primeira surpresa: a indiferença daqueles que transitavam pelas ruas. “Foi impressionante ver a indiferença, como se [a população] estivesse mais anestesiada. Não é mais como antigamente, quando algo acontecia e todos paravam para ver”, conta.

Para superar essa barreira, os diretores desenvolveram algumas estratégias de aproximação. Enquanto Eliane permanecia no set, com a câmera na mão, Carla Caffé pensava na direção de arte, que teria o papel de conectar os personagens. “Criamos dispositivos de dramaturgia. Um deles consistia em colocar uma arara com peças de roupas e adereços que simbolizavam diversas identidades, deixando-a exposta. As pessoas se aproximavam e selecionavam itens, compartilhando palavras que se conectavam com suas escolhas. Tudo sempre girava em torno das temáticas desses movimentos invisibilizados”, relata Eliane. 

Carla Caffé e Beto Amaral, diretores de
(Henrique Hennies/divulgação)

Quando finalmente superaram essa barreira, depararam-se com uma realidade de violência, que ainda destilava preconceito e ignorância. Em menos de cinco minutos, vieram as piadas transfóbicas. Em seguida, o bando novamente se reúne para debater o que acabou de acontecer. Mas tudo se monta e se desfaz numa rápida dinâmica; logo, elas riem e brincam entre si – até serem novamente atingidas por ofensas.

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Para compreender a mecânica e os questionamentos que o filme produz, é necessário voltar ao tempo, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, marcado por polarização, incertezas, medo e desejo de diálogo por parte dos grupos minoritários.

Cartaz promocional do filme
(Aurora Filmes/divulgação)

Aos poucos, criam-se espaços de discussão. De um lado, vemos pessoas defendendo seu direito de existir, muitas vezes utilizando expressões e termos pouco familiares aos seus interlocutores; do outro, pessoas talvez pouco interessadas em ouvir. Ou, segundo as palavras de Eliane, “anestesiadas” o suficiente para não dar a devida atenção. Isso, mais uma vez, demonstra a ingenuidade ou desconhecimento em relação às diferenças políticas e sociais que marcaram aquele período.

Questionada se o experimento seria diferente atualmente, Eliane se mostra cética. Pouco mudou, em sua opinião. “Não acho que vivemos uma mudança de paradigmas. Acho que seria muito parecido como foi. Ainda temos um distanciamento muito grande. Não estruturamos nada de novo, desde as formações, as escolas, os jovens, os movimentos de bairro. O que forma as pessoas é o celular, segmentando todo mundo; cada um em sua bolha”, conclui.

Para Onde Voam as Feiticeiras”

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Beto Amaral, Carla Caffé e Eliane Caffé

Brasil – 2023 – 89 min

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