Avatar do usuário logado
Usuário
OLÁ, Usuário
Ícone de fechar alerta de notificações
Avatar do usuário logado
Usuário

Usuário

email@usuario.com.br

Primavera nos Dentes: a série que reconstrói o impacto dos Secos & Molhados

Produção documental dirigida por Miguel De Almeida, no ar no Canal Brasil, revisita a breve, intensa e ainda incontornável passagem do trio nos anos 1970

Por Redação Bravo!
29 nov 2025, 09h00
ney-matogrosso
Ney Matogrosso em ‘Primavera nos Dentes – A História do Secos & Molhados', (Canal Brasil/reprodução)
Continua após publicidade

Há histórias que parecem retornar no exato momento em que o país precisa ouvi-las de novo. É o caso de Primavera nos Dentes – A História dos Secos & Molhados, série documental dirigida e roteirizada por Miguel De Almeida, que já está no ar no Canal Brasil e revisita a breve, intensa e ainda incontornável passagem do trio pelos anos 1970. Em breve, a produção estará disponível no DOC Canal Brasil e na Globoplay.

Cinco décadas depois, Ney Matogrosso e Gerson Conrad se reencontram em estúdio para gravar uma faixa inédita que encerra a série. O gesto se soma à participação de Emilio Carrera e Willy Verdaguer — músicos que integraram a banda entre 1973 e 1974 — convidados a criar novas composições inspiradas na sonoridade original do grupo, já que os clássicos não foram liberados pelo terceiro integrante da formação, João Ricardo.

Ney Matogrosso e Gerson Conrad
Ney e Gerson Conrad (Canal Brasil/reprodução)

Dividida em quatro episódios semanais, Primavera nos Dentes combina depoimentos exclusivos, imagens de arquivo e uma pesquisa que recupera a geografia cultural e afetiva de São Paulo e do Rio da ditadura. A série se baseia no livro homônimo escrito pelo próprio diretor, que concebeu a adaptação desde a redação do texto, estruturado com recursos próximos ao audiovisual. Miguel também recorreu a registros da imprensa, do Arquivo Nacional e de emissoras de TV para reconstruir o período entre 1972 e 1974, além de utilizar trechos de O Rei da Vela e filmes de Rogério Sganzerla como comentário estético ao contexto.

Um dos eixos da narrativa estabelece a ligação direta entre o grupo e o teatro de vanguarda brasileiro, ponto que, segundo Miguel, ainda não havia sido articulado com essa clareza. A maquiagem de Ney, os gestos de palco e a própria concepção estética do trio são apresentados como herdeiros das experiências do Teatro Oficina, do Arena e do circuito do Bixiga, onde música e cena se contaminavam mutuamente.

A produção também traz depoimentos que iluminam o desgaste interno do grupo, entre eles o do ex-produtor Henrique Suster, que detalha como questões financeiras precipitaram o fim da banda. Já artistas de gerações posteriores — Frejat, Charles Gavin e Ana Cañas — ajudam a dimensionar a permanência do conjunto, reconhecendo na obra dos Secos & Molhados uma raiz que atravessa décadas.

Como surgiu a ideia de transformar o livro Primavera nos Dentes em uma série documental?

Na verdade, a ideia surgiu ainda durante a redação do livro. Quando eu escrevia, já pensava que aquele material poderia resultar em um filme ou uma série. Tanto que a narrativa do livro tem uma estrutura quase cinematográfica.

Continua após a publicidade

O texto trabalha com fade out, fade in, idas e vindas que se sobrepõem, além de ações cinéticas muito típicas da linguagem audiovisual. Eu quis construir uma narrativa literária que incorporasse esses recursos e, ao mesmo tempo, já dialogasse com a possibilidade de adaptação. Por quê? Porque o audiovisual pode alcançar um público maior, um público diferente.

Não que quem leia o livro não possa ver a série. Claro que pode. Mas nem todos que assistirem à série vão chegar ao livro. Então, desde o início, minha intenção era que o projeto alcançasse o maior número possível de pessoas. Sempre acreditei que os Secos & Molhados funcionavam como um marco na cultura brasileira.

Quais foram os principais desafios de reconstruir a trajetória do Secos & Molhados, considerando a escassez de material de arquivo ou a distância temporal?

Sem dúvida, foi um grande desafio. A maior parte do material simplesmente se perdeu. O Brasil carrega essa dificuldade histórica de não preservar sua memória.

No caso dos Secos & Molhados, houve uma infelicidade ainda maior: os primeiros clipes produzidos para o Fantástico, na TV Globo, se queimaram em um dos incêndios pelos quais a emissora passou em décadas anteriores.

Por outro lado, a reconstrução daquele período também teve caminhos possíveis. Nós pudemos recorrer à imprensa da época, ao Arquivo Nacional e a outras emissoras que ainda guardavam registros do grupo em apresentações e programas de televisão. Esse material de arquivo trazia exatamente o recorte que eu precisava: 1972, 1973 e 1974.

Continua após a publicidade

A partir daí, foi possível reconstituir o contexto político, comportamental e cultural do momento. Há registros de como eram São Paulo e Rio de Janeiro naqueles anos, sobretudo São Paulo, cidade onde o grupo surge. Esses materiais revelam a geografia política, comportamental e afetiva do trio e da própria cena cultural paulistana, especialmente o circuito de teatros do Bixiga.

Por fim, decidi utilizar — quase como um alter-ego de diretor — o registro filmado de O Rei da Vela, de Zé Celso Martinez Corrêa, em parceria com Noilton Nunes. Por quê? Porque o texto de Oswald de Andrade oferecia possibilidades de atuar como comentário às cenas narradas. Também recorri aos dois filmes de Rogério Sganzerla, “Sem Essa, Aranha” e “O Bandido da Luz Vermelha”, que dialogam com a estética do cinema marginal e funcionam como uma dança formal com o espírito daquele período.Quais escolhas narrativas você considera mais decisivas para que a série transmitisse a intensidade e provocação do Secos & Molhados?

A série apresenta uma tese central: sem o teatro de vanguarda brasileiro daquele período — especialmente o que acontecia no Rio de Janeiro e em São Paulo — não haveria os Secos & Molhados, nem boa parte do que hoje chamamos de música popular brasileira. Aliás, a sigla MPB nasce justamente nesse contexto, ligada a nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso e Edu Lobo, entre outros que despontavam no final dos anos 1960 e ao longo dos anos 1970.

A tese parte da ideia de que a estética defendida pelo Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, pelo Teatro de Arena e por peças montadas por diretores como Amir Haddad articulava uma cultura urbana, cosmopolita e, ao mesmo tempo, profundamente brasileira. Essa mistura de referências pode ser vista, por exemplo, em O Rei da Vela e exemplifica bem essa linguagem que combinava modernidade, política e irreverência.

Esses grupos já tinham superado a noção tradicional de “identidade nacional” que marcou décadas anteriores, especialmente desde o modernismo dos anos 1920. Eles pensavam uma cultura urbana que extrapolava fronteiras: desterritorializada, expandida, conectada com o mundo.

E há exemplos concretos dessa interseção entre teatro e música. Chico Buarque surge compondo a trilha de Morte e Vida Severina para o TUCA, em São Paulo. Edu Lobo trabalha ao lado de Gianfrancesco Guarnieri no Teatro de Arena, musicando letras para espetáculos como Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes. E, claro, o caso emblemático de Ney Matogrosso: a intenção inicial dele era ser ator. Ele foi descoberto como cantor justamente no contexto teatral.

Continua após a publicidade

Houve algum episódio ou depoimento que mudou sua percepção sobre a banda durante o processo de direção?

Acho que aconteceram algumas coisas, a começar principalmente pela negativa do João Ricardo, depois de haver concordado em liberar as canções dele. Isso me mostrou o tipo de clima que era vivenciado pelos integrantes da banda, que, em depoimentos na série, vêm trazer isso nas palavras deles, que era um tipo de autoritarismo e egocentrismo do João Ricardo.

Depois, acho que os depoimentos do Henrique Suster — que é uma grande novidade dentro da história dos Secos — mostram como a banda acaba. Me mostram uma, vamos dizer, uma volúpia do João Apolinário e do João Ricardo em relação ao dinheiro, o que é corroborado pelo Ney e pelo Gerson, afirmando, aliás, que o final da banda se deve a questões financeiras, dado que havia uma combinação, desde o início da construção da banda, de que todo o dinheiro arrecadado seria dividido em três ou quatro, com o empresário. Coisa que, segundo o Ney e o Gerson, jamais aconteceu.

E, por fim, eu acho que tem os depoimentos do Oswaldo Mendes e da professora Maria Sílvia Betti, no sentido de reconstituir o que era a São Paulo dos anos 70: do ponto de vista cultural, do ponto de vista político, do ponto de vista afetivo, do que os afetos trazem através da cultura. 

Eu queria dizer ainda que muito dessa série nasce de uma prestação de contas minha, no sentido de mostrar a minha formação intelectual, minha formação cultural. Porque, quando eu assisti ao Secos & Molhados, aos 13 para 14 anos, eu ainda era um garoto naquela São Paulo que estava sob a ditadura, pensando o que eu faria na vida, mas, acima de tudo, conhecendo o mundo, conhecendo o mundo cultural, conhecendo os autores.

Não é à toa que falo que isso é como se fosse um filme de formação. Existem aqueles romances clássicos do século XIX, que são os romances de formação, que mostram como o autor, como aquele personagem se formou. A gente poderia dizer que esse filme, essa série, é uma série de formação intelectual do autor. 

Continua após a publicidade

Como foi acompanhar o reencontro de Ney Matogrosso, Gerson Conrad, Emilio Carrera e Willy Verdaguer depois de 50 anos?

Estávamos todos ali bem emocionados com esse reencontro deles. Eles não se viam havia pelo menos 20 anos — alguns deles, como o Willy e o Ney, por exemplo. Apesar de se falarem por telefone e essas coisas, fazia 50 anos que eles não estavam juntos para criar uma canção, para criar um arranjo, para gerar uma gravação.

Então, imagina o que é isso: eles estavam ali reunidos 50 anos depois, com toda a história que fizeram e com toda a camada cultural que adquiriram. O Ney Matogrosso como o grande cantor brasileiro das últimas décadas, como um criador substancial, e os outros também em suas carreiras respectivas.

O interessante é que eles se reuniram e trataram de dar prosseguimento ao que eram os Secos e Molhados. Se você ouvir as canções pelo Willy, pelo Emílio e pelo Gerson, em parceria com o Paulo Mendonça, você vai perceber que há uma continuidade sonora, musical e até temática. Não é à toa que o Gerson diz que a melodia de “Ouvir no Silêncio” ele achava que já tinha criado há 50 anos, para constar de um possível terceiro álbum dos Secos e Molhados.

Então, costumo dizer que a minha intenção era — e eu acredito que tenha alcançado — fazer com que a série fosse o terceiro álbum dos Secos & Molhados, por conta dessas canções criadas pelo Emilio Carrera, pelo Willy Verdaguer, pelo Paulinho Mendonça e Gerson Conrad

Eu fico feliz de poder oferecer e ter participado, acima de tudo, desse terceiro álbum dos Secos e Molhados.

Continua após a publicidade

Em sua visão, quais aspectos da banda continuam atuais e provocativos mais de cinco décadas depois?

Acho que os depoimentos do Frejat, do Charles Gavin e da Ana Cañas — criadores que pertencem a gerações posteriores aos Secos e Molhados, Charles e Frejat dos anos 80 e Ana do tempo atual — revelam claramente de que fonte beberam, mostrando-se como resultado direto dessa trajetória dos Secos e Molhados.

Acho que, acima de tudo, a pergunta encontra eco na atualidade dessas respostas feitas por eles. Veja a Ana Cañas, que é uma cantora mais novinha, está na casa dos 20 e poucos anos, contando o que significa o gestual do Ney no palco naquele momento, até hoje, 50 anos depois. Ou então o estilo de repertório do Ney nos Secos & Molhados, a sonoridade, que é muito falada, sobretudo pelo Charles. Quer dizer, então você tem uma atualidade aí, uma permanência.

Acho que, acima de tudo, quando eu pensei em fazer o livro com a ideia do audiovisual, eu achava que os Secos e Molhados eram muito pouco valorizados pela elite da música popular brasileira. Como eles venderam 1 milhão de discos na época, tentou-se, acredito, restringi-los a um cercadinho de banda de sucesso e tirar deles duas coisas importantes. Primeiro, a questão sonora: as canções dos Secos, você as escuta 50 anos depois, e, com os arranjos, as letras desses poetas que eles musicaram, a interpretação do Ney, você percebe a atualidade. É como se tivessem sido feitas há poucos dias.

E, segundo, os Secos são importantes pela questão política e comportamental. Numa frase: eles colocaram a questão da sexualidade na macarronada de domingo da família brasileira, coisa que não acontecia. E, por fim, terceiro, eles inauguram o espetáculo musical no Brasil. Até então, era comum os artistas se apresentarem de “banquinho e violão”, sentados ali, tranquilos.

Os Secos & Molhados criam a persona musical. Eles aparecem com outras personalidades, outras pessoas. Você não imagina que ali esteja vendo o Ney, o Gerson, porque o que você está vendo são personagens que eles criaram, as personas musicais. Isso não havia.

Se tivesse que resumir a importância do Secos & Molhados para a música e cultura brasileira em uma frase, qual seria?

Seria só um adjetivo: estupendos. Ou assombrosos.

Compartilhe essa matéria via:
Publicidade