Para Juliana Vicente, Racionais é sobre amor
Diretora do documentário “Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo” fala sobre o desafio de recontar os 30 anos da história do maior grupo de rap do país
Quando, finalmente, chegou o momento do grupo Racionais MC’s de contar sua história, não houve dúvidas sobre quem deveria estar à frente dessa empreitada. Naquela altura, quando uma decisão foi tomada, a diretora e produtora Juliana Vicente já havia conquistado a confiança do grupo. E a ela foi dado o papel de guardiã dessa memória. A relação, que começou ainda em 2012, quando fizeram o primeiro trabalho juntos, prosperou e, uma década depois, nasceu o documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo, dirigido por Juliana.
Lançado em 16 de novembro, em parceria com a Netflix, o longa reconta os primeiros passos dos artistas Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay e, para isso, se debruça sobre o mapa da cidade de São Paulo. A junção dos rappers se deu do cruzamento de duas quebradas, localizadas em regiões opostas da capital paulista. Mano Brown e Ice Blue são crias do Capão Redondo, na zona sul, uma região “quase rural” na década de 1970, lembra Brown. “Todo dia tinha um corpo [largado] lá”, completa Ice Blue. Já Edi Rock e KL Jay cresceram no Tucuruvi, na zona norte. Uma região um pouco menos perigosa do que o Capão, e que era cenário de diversos bailes realizados pelos próprios moradores. No centro de São Paulo, esses sujeito com experiências e repertórios diversos se encontraram.
“Escutei um relato de uma pessoa: ‘O que salvou a vida do meu irmão, enquanto ele estava preso, foi a [música] A Vida é desafio.’ E recebi muitas mensagens pelo Instagram que diziam ‘Racionais salvou a minha vida’”
Juliana Vicente
Em um tempo que não existiam smartphones, tampouco redes sociais, as festas e shows de black music eram plataformas necessárias para espalhar uma ideia, uma história ou uma denúncia. Eram músicas sobre sobrevivência. A violência, escancarada na vista dos jovens, se tornava tema central das letras.
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Para Bravo!, Juliana contou sobre o longo processo que desembocou na produção do documentário. Na investigação sobre o que o grupo significou para tantas gerações, não faltaram depoimentos de pessoas que tiveram as músicas dos Racionais como trilha sonora das próprias vidas. “Escutei um relato de uma pessoa: ‘O que salvou a vida do meu irmão, enquanto ele estava preso, foi a [música] A Vida é desafio.’ E recebi muitas mensagens pelo Instagram que diziam ‘Racionais salvou a minha vida’.”
Em 1988, os Racionais nasceram sem a pretensão de alcançar a fama, tampouco tinham a dimensão do que viriam a ser. O objetivo era outro. “Gravar e ser canto era uma coisa tão distante quanto Júpiter”, desabafa Brown no documentário. Mas, sem rodeios, tinham uma missão: denunciar o racismo, a miséria, a violência policial nas periferias, o encarceramento em massa. E, principalmente, ser ponte para as discussões que estavam sendo feitas por movimentos negros e os jovens. Para isso, tinham um público-alvo bem definido: “Quero que os pretos me ouçam. Preciso que eles me ouçam. Quero entrar no coração”, diz Brown em entrevista à Juliana.
E para funcionar, precisavam ir direto ao ponto. Por esse motivo, se entendia que as canções eram muito agressivas, principalmente aquelas dos primeiros anos, como Holocausto Urbano (1990) e Sobrevivendo no Inferno (1997). “Não que a gente queria ser agressivo, mas acho que a época pedia isso”, afirma Edi Rock na obra. Como de se esperar, chamavam muita atenção da Polícia Militar, o que causou intervenções em shows, chegaram a ser presos após uma apresentação sob argumento de que estariam incitando a violência.
“Tanto eu, a minha produtora (a Preta Portê Filmes) e eles, temos uma forte identidade. Nós estamos nos constantemente nos posicionando no mundo. Daí, fazer uma parada que fosse meramente comemorativa, naquele momento, não fazia muito sentido”
Juliana Vicente
Na adolescência, o contato de Juliana com os Racionais se deu por intermédio de seus dois irmãos mais velhos. Era uma família preta que vivia num espaço dominados por brancos, em um condomínio residencial, em Vinhedo, no interior de São Paulo.
Ela lembra que, então, achava as letras dos Racionais muito pesadas. A conexão aconteceu mais tarde, quando os conheceu pessoalmente. O primeiro encontro com os quatro artistas ocorreu em 2012, quando ela foi convidada para dirigir o clipe “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)”, música criada para o documentário sobre Marighella. Dessa primeira parceria, nasceram outros convites e um projeto para uma data especial: gravar o DVD de uma turnê comemorativa dos 25 anos. Em 2022, a ideia de um material comemorativo registrado em DVD está completamente fora de jogada, mas já naquela época, Juliana também pareceu estranhar essa solução. E decidiu que não queria mais fazer. “Tanto eu, a minha produtora (a Preta Portê Filmes) e eles, temos uma forte identidade. Nós estamos nos constantemente nos posicionando no mundo. Daí, fazer uma parada que fosse meramente comemorativa, naquele momento, não fazia muito sentido”, conta.
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Foi aí que a empresária do grupo, Eliane Dias, entrou em cena. “Ela me disse: ‘Esse é um negócio que tem que ser feito por você. Faz o que você quiser’.” E ela sabia exatamente o que queria fazer: entrevistar os quatro artistas.
Juliana não tinha tanta familiaridade com história deles e, para isso, precisou conhecer a caminhada de cada um dos integrantes. Era 2015, e a ideia era simples: fazer uma conversa no estúdio, de sua produtora. Descontraída, boa de papo e com muita disposição para ouvir, Juliana começou: “Conta aí: de onde vocês vieram?”. Sem imaginar o que seguiria, a conversa se estendeu por seis horas. Às conversas, ela introduziu cenas de arquivos, de mais de 300 VHS, desses 30 anos dos Racionais.
Além da responsabilidade de retratar fielmente a história de um dos grupos mais inovadores do país, havia o desafio de atualizá-lo para as questões contemporâneas, como maior representatividade e avanços nos debates raciais. Ainda que o racismo seja um problema que nunca saiu de cena. Em depoimento recente dado à revista piauí, ela falou sobre esse duplo ponto de vista. “Quis fazer um diálogo com o Brasil contemporâneo, mostrar como há avanços em relação às conquistas da população negra, ao mesmo tempo em que continuamos vendo os mesmos protestos de antigamente, porque a violência e o preconceito racial se repetem. Tem algo de cíclico nesse sentido.”
Do jornalismo para o audiovisual
De certo modo, a decisão de abandonar a ideia de gravar um DVD comemorativo, reflete seu início de carreira.
Aos 18 anos, antes de navegar no audiovisual, Juliana considerou estudar e trabalhar com Jornalismo. Mergulhar na vida de outras pessoas e contar histórias, eram esses seus propósitos. No entanto, parece que na vida de todo artista e criador há um golpe do tempo que implanta uma mudança de rumos. Naquela etapa, Juliana fez um intercâmbio para Cuba. Nessa viagem, ela tinha a intenção de produzir entrevistas e materiais para serem divulgados pela imprensa no seu retorno ao Brasil. Durante um mês, conviveu com uma família, protagonista da sua primeira aventura jornalística.
Na volta ao país materno, mudou de ideia. O envolvimento com os personagens era emocional e pessoal demais. Entregar aqueles materiais para que outros jornalistas se apropriassem deles parecia quase uma invasão de sua intimidade. “Aquilo [o jornalismo] me deu uma sensação de que era uma coisa muito vampiresca. Aí, eu comecei a procurar alternativas. E me pareceu que no cinema eu poderia contar as histórias da forma que acredito e teria tempo para desenvolvê-las.”
“Aquilo [o jornalismo] me deu uma sensação de que era uma coisa muito vampiresca. Aí, eu comecei a procurar alternativas. E me pareceu que no cinema eu poderia contar as histórias da forma que acredito e teria tempo para desenvolvê-las”
Juliana Vicente
Em 2020, quando surgiu a parceria com a Netflix, Juliana viveu duas gestações: a do documentário e a de sua filha, Amora, de um ano e quatro meses, que a acompanha em seu colo durante a nossa conversa. “Uma parte [do documentário] eu montei com ela na barriga e a outra com ela no colo.”
Para costurar a narrativa do documentário, Juliana quis se distanciar da ideia de heróis, de pessoas que tiveram sorte e oportunidade e, por isso, deram certo. “Essa imagem [do herói] afasta. Precisamos conhecer o caminho, a infância dessas pessoas para enxergar a identidade elas. Acho que muitos se identificaram com o documentário porque viram que o caminho [dos Racionais] é muito parecido com o delas.”
E, mais importante, para ela, era fundamental que uma das atribuições do filme fosse desmistificar que as músicas dos Racionais é sobre raiva. “Escutei durante a produção que o documentário precisava trazer mais raiva. Mas Racionais não é sobre isso, Racionais é sobre amor”, ela conta. “Acho que os Racionais é isso: salvou vidas.”
Direção: Juliana Vicente
Brasil – 2022 – 116 min