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Clássicos para novas gerações

Débora Butruce, preservadora audiovisual com mais de 20 anos de experiência e curadora independente, fala sobre digitalização de “A Rainha Diaba” e de outras joias nacionais

Por Artur Tavares
Atualizado em 23 ago 2023, 10h46 - Publicado em 23 ago 2023, 10h44
"A Rainha Diaba" Direcao Antonio Carlos da Fontoura, no Cine Vila Rica. direcao: Guilherme Fiuza
 ("A Rainha Diaba"/reprodução)
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Abra seu serviço de streaming favorito e haverá nele uma aba reservada para filmes clássicos. O que pode parecer uma coincidência é, na verdade, um nicho de mercado muito bem-vindo, que está ligado a uma das áreas mais importantes do cinema: a preservação.

Ainda que um tanto deixada de lado em meio a um mercado multimilionário que vive dos próximos lançamentos, a preservação é responsável não somente pela conservação de grandes obras antigas do cinema, mas também por atividades como a localização de acervos, catalogação de obras, difusão e descoberta de pérolas desconhecidas. E isso somente falando de olhar para o passado, porque o campo tem atuações práticas no que é filmado hoje, principalmente no que diz respeito à conservação e curadoria.

É claro que citar o streaming é só tocar na ponta de um iceberg de cinéfilos que se reúnem para ver cópias restauradas ou digitalizadas em salas de cinema especializadas, centros culturais, museus, cinematecas, festivais e outros espaços dedicados à sétima arte, mas trata-se de um bom exemplo porque é o meio que mais concentra o número de exibições cinematográficas hoje e também porque tem tudo a ver com trazer a qualidade das películas antigas para os dispositivos de última geração.

Recentemente, o filme A Rainha Diaba, de Antonio Carlos da Fontoura, ganhou vida nova depois de sua digitalização ter sido exibida no Festival de Berlim, em fevereiro deste ano. Gravado em 1973, com Milton Gonçalves no elenco, o blaxploitation brasileiro foi ovacionado na Berlinale e chegou a ser exibido em sessões especiais aqui pelo país, ainda sem ter entrado novamente no circuito comercial.

processo de restauração do filme
(Débora Butruce/arquivo)

A Rainha Diaba é apenas o exemplo mais recente de uma onda de restauros e digitalizações de filmes brasileiros. Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, foi exibido em Cannes no ano passado, 58 anos depois de concorrer ao Grand Prix do festival, enquanto sua continuação, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro está disponível no Mubi. Outras plataformas, como Globoplay e Itaú Cultural Play também disponibilizam grandes clássicos, como Vidas Secas, O Pagador de Promessas e À Meia-Noite Levarei Sua Alma, apenas para citar alguns.

Atual presidenta da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), Débora Butruce foi coordenadora do projeto de digitalização de A Rainha Diaba e é uma das especialistas do assunto no Brasil. Trabalhou nas principais instituições brasileiras, como a Cinemateca do MAM-Rio e o Centro Técnico Audiovisual, e é idealizadora da Mostra Internacional de Filmes Domésticos. Seu último trabalho, a coordenação da digitalização do curta de Katia Mesel, Recife de Dentro pra Fora, de 1997, foi feito por iniciativa do filme Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, que estreia amanhã nas salas de cinema. Uma das imagens do curta integra o longa de Kleber, e foi recentemente exibido no Recife em uma das concorridas pré-estreias do filme. Na CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto deste ano, Débora, Fontoura e Aarão Marins (que supervisionou o escaneamento dos materiais originais em película) exibiram o filme e contaram sobre o processo de digitalização. Nós aproveitamos a ocasião e conversamos com Débora sobre o assunto, confira:

Você já trabalha com preservação e restauração há mais de duas décadas e é presidenta da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA). O que te levou a fazer isso, seguir esse caminho no cinema?
Eu tive a sorte de estar cursando a Graduação em Cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF) quando foi oferecida pela primeira vez em uma universidade brasileira uma disciplina sobre preservação audiovisual. Isso foi no ano 2000 e mudou minha trajetória profissional para sempre.

Na época, eu me interessava por direção de arte e tinha começado a trabalhar na área, embora também não tivesse disciplina sobre esse assunto. Ou seja, já gostava de um desafio. Com a preservação, foi amor à primeira vista. Eram aulas optativas oferecidas pelo Hernani Heffner, que era professor substituto. A disciplina só tornou-se obrigatória no currículo do curso em 2005, e por pressão dos próprios alunos.

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“A rigor, tudo deveria ser preservado no suporte original e ser digitalizado para garantir, atualmente, a difusão e o acesso mais amplo. Utopias à parte, a realidade é que acabamos trabalhando muito sob demanda de agentes externos, sobretudo em relação à digitalização. Em níveis institucionais, ou seja, dentro da dinâmica das instituições de preservação, o que existe são prioridades em termos de ações de conservação e acesso, sejam duplicações, analógicas ou digitais, e restaurações”

Débora Butruce

É bonita ver a trajetória da disciplina na UFF, desde quando foi oferecida pela primeira vez, em 2000, até a criação do Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual (LUPA), em 2017. Acredito que a criação do LUPA e a formação de uma nova geração de profissionais, na qual eu me incluo, tem total relação com esse pioneirismo da UFF em oferecer uma disciplina dedicada à preservação audiovisual. Mesmo que demore, sobretudo diante da realidade brasileira, as sementes geram frutos.

Em 2001 eu já comecei a trabalhar na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e daí não parei mais. Ainda tentei conciliar com direção de arte, fiz alguns filmes. Mas, profissionalmente, minha trajetória acabou se estabelecendo na área de preservação mesmo.

A nova versão digital de A Rainha Diaba estreou no Janela Internacional de Cinema do Recife em 2022, foi apresentada no Festival de Berlim no início de 2023, e tem sido exibida no Brasil e ao redor do mundo. De certa maneira, é um filme perfeito para uma iniciativa de digitalização, pois os materiais originais estavam bem preservados, o diretor está vivo para acompanhar o projeto, e é uma produção com grande apelo. Mas, em linhas gerais, como se dá a escolha do que se preservar ou digitalizar?
A rigor, tudo deveria ser preservado no suporte original e ser digitalizado para garantir, atualmente, a difusão e o acesso mais amplo. Utopias à parte, a realidade é que acabamos trabalhando muito sob demanda de agentes externos, sobretudo em relação à digitalização. Em níveis institucionais, ou seja, dentro da dinâmica das instituições de preservação, o que existe são prioridades em termos de ações de conservação e acesso, sejam duplicações, analógicas ou digitais, e restaurações. Além, claro, da conservação preventiva, que é a manutenção das condições adequadas para retardar a deterioração dos materiais audiovisuais nos mais variados suportes e garantir sua existência a longo prazo.

É importante ressaltar que uma restauração sempre implica em uma duplicação, embora nem toda duplicação seja um restauro. A Rainha Diaba não é uma restauração, é uma digitalização com intervenções digitais a fim de se restituir as características originais da obra e minimizar os efeitos do tempo e da manipulação dos materiais originais. O filme foi feito em película cinematográfica 35mm, e nós não retornamos a esta condição. Ainda que à primeira vista isso possa parecer rigoroso demais, como coordenadora técnica do processo acredito que seja importante consolidarmos alguns conceitos da área a partir de critérios adequados. Então eu prefiro ser mais cuidadosa ao utilizar o termo restauração.

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“A ampla circulação de A Rainha Diaba ao redor do mundo está aí pra provar que é possível. Estamos para dar esse salto de entender os filmes de patrimônio, também conhecidos como filmes de arquivo, como ativos econômicos. A preservação é essencial para garantir a memória audiovisual de um país, mas também é um elo fundamental da cadeia produtiva do audiovisual e deve ser vista como tal”

Débora Butruce

Sendo assim, o que se faz em geral? Se é um arquivo audiovisual, são elencadas prioridades a partir de um olhar geral para o acervo sob sua guarda, como, por exemplo, o que está em maior risco de sobrevivência. Se um título à beira de desaparecer, quando não existem mais materiais íntegros ou eles estão em um estado avançado de deterioração, essa obra é vista como uma prioridade e medidas urgentes em termos de duplicação ou restauro devem ser tomadas. O ideal é evitar que a obra chegue em um estágio de degradação irreversível, pois é muito menos custoso conservar preventivamente do que restaurar.

Mas, tanto no Brasil como em qualquer lugar do mundo, acaba não sendo exatamente assim que as coisas funcionam. Até porque, muitas vezes, os filmes que estão deteriorados não tem um apelo mais óbvio, seja artístico ou histórico, para chamar atenção de possíveis patrocinadores que tenham consciência da importância de sua preservação. Dessa forma, temos sempre que tentar equalizar essa balança entre tentar conseguir harmonizar o que deve ser feito em relação a determinadas obras que estão em risco de desaparecimento e também agregar outras perspectivas a fim de atrair patrocínio. É uma equação difícil.

Por isso, mesmo que a preservação seja um dever do Estado brasileiro, inclusive está na Constituição Federal, sabemos que é muito difícil dar conta, plenamente, de uma atividade tão complexa em um país da dimensão do Brasil. Então é muito importante termos diversas frentes de atuação e colaboração. Tanto os níveis institucionais, públicos e privados, quanto as iniciativas independentes. Como foi com A Rainha Diaba, que foi digitalizado a partir da iniciativa do Janela Internacional de Cinema do Recife em parceria com a Cinelimite e a Mapa Filmes do Brasil/Link Digital e o apoio da Mnemosine. Um grande esforço coletivo e independente que fez com que o filme pudesse ser digitalizado em 4K e alcançasse um resultado excelente, voltando a circular com uma força surpreendente. Como uma parte significativa do patrimônio audiovisual brasileiro precisa de ações urgentes em termos de conservação e acesso, o ideal seria termos diferentes ações para podermos abarcar a maior quantidade possível de acervos, desde os cânones até as filmografias mais obscuras.

processo de restauração do filme
(Débora Butruce/arquivo pessoal)
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No Brasil, não seria possível segmentar por períodos importantes da nossa produção, Vera Cruz, Boca do Lixo etc?
Até seria, mas o mais comum são as restaurações de filmografias de cineastas. A partir dos anos 2000 começam a surgir vários projetos de restauro capitaneados, sobretudo, por herdeiras, de filmografias como as de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman.

O caso da Cinédia, companhia produtora fundada em 1930, é interessante. A restauração de seus filmes, liderada pela herdeira Alice Gonzaga, figura emblemática na área de preservação, contempla diversos períodos da produção cinematográfica brasileira, dando conta do que você pergunta sobre a preservação de determinados períodos e produtoras. Eles produziram desde cinejornais a filmes carnavalescos, dramas populares e comédias musicais.

processo de restauração
(Débora Butruce/arquivo pessoal)

Você tem adotado um discurso de que a preservação gera ativos de mercado, que o cinema patrimonial é também um produto para passar nos cinemas, estar nos streamings, atingir o público.
A ampla circulação de A Rainha Diaba ao redor do mundo está aí pra provar que é possível. Estamos para dar esse salto de entender os filmes de patrimônio, também conhecidos como filmes de arquivo, como ativos econômicos. A preservação é essencial para garantir a memória audiovisual de um país, mas também é um elo fundamental da cadeia produtiva do audiovisual e deve ser vista como tal. Acho que o processo de digitalização dos acervos que vem acontecendo nos últimos 10 anos possibilitou que novas dinâmicas de mercado surgissem. Nos outros países essas dinâmicas parecem já estar consolidadas, e acredito que aqui estamos começando a incorporar esse olhar.

Além de A Rainha Diaba, um outro exemplo é a restauração recente de Deus e o Diabo na Terra do Sol é outro. Esses títulos têm circulado amplamente e algumas plataformas de streaming, como Mubi, têm incorporado filmes brasileiros não-contemporâneos em seu catálogo. Ainda é incipiente, visto a riqueza do patrimônio cinematográfico brasileiro, portanto é urgente trabalhar nesse sentido. Enxergar os filmes de patrimônio como ativos auxiliará na sustentabilidade da própria atividade de preservação.

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processo de restauração do filme
(Débora Butruce/arquivo pessoal)

Toda preservação envolve uma duplicação, mas nem sempre o filme depois volta para seu formato original, seja 16mm, Super 8, ou o que quer que seja. Existe uma possibilidade de futuro em que esse tipo de cinema se torne mais ou menos como o disco de vinil? Haverá cinemas com projetores equipados e público para sustentá-los?
Acho que sim. Inclusive porque esses formatos estão se tornando um tipo de suporte muito utilizado por coletivos artísticos e artistas visuais como fonte para experimentação de outras formas de criação. Tem muita gente utilizando o 16mm por conta de suas características únicas em termos de textura de imagem, visualidade, entre outras, e também por buscar essa dimensão artesanal do processo que o digital acabou encobrindo. Acho que filmes em película vão virar peças museológicas. Talvez já devessem ter virado, na verdade.

Algumas salas de cinemas de repertório estão começando ou retomando exibições em película. Oppenheimer, de Christopher Nolan, lançado recentemente, foi feito em IMAX 70mm, sendo que só existem 30 salas de cinema no mundo capazes de exibir o filme em seu formato original. Ainda assim, apostaram. Digamos que atualmente é um suporte de nicho, mas a película não acabou. Acredito que estamos, inclusive, em uma fase de redescoberta.

“O sistema patriarcal atinge todas as camadas e setores, inclusive, a preservação. A revisão de filmes, por exemplo, se estabeleceu como uma atividade majoritariamente feminina, diferente do trabalho de processamento fotoquímico nos laboratórios. Talvez porque a revisão tenha a ver com o cuidar, categorizado como um trabalho supostamente feminino, enquanto operações mais técnicas e que lidam com equipamentos tecnológicos, como as atividades em laboratórios, tenham sido consideradas da alçada masculina. Fotos antigas de salas de revisão de películas e de laboratórios demonstram isso. Isso vem mudando, paulatinamente, nos últimos tempos”

Débora Butruce

Eu faço muitas análises do estado de conservação de películas para saber se estão aptas ou não para a exibição, e tento, sempre que possível, assisti-las no cinema. Tenho visto muitos jovens nas salas quando a projeção é em película. Tanto nas salas de cinematecas quanto de centro culturais. Então acho que tem um campo a ser desbravado e isso aquece as possibilidades do mercado de exibição, ainda que seja mais restrito. Além de estimular a conscientização sobre a importância da preservação. Ou seja, também é formação de público.

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E não é só o Christopher Nolan ou coletivos de artistas experimentais que vem utilizando a película. A cantora Luisa Sonza lançou em 2022 um clipe filmado em 16mm. Poxa, se chegou em uma cantora pop como a Luisa Sonza, alguma coisa está acontecendo em termos de mercado, não é mesmo?

processo de restauração do filme
(Débora Butruce/arquivo pessoal)

Quero falar sobre o fato de que nessa conversa sobre preservação falamos apenas o nome de cineastas masculinos, Fontoura, Glauber, Joaquim Pedro, Leon. Corremos o risco de ver o campo da preservação ser tomado pelo mesmo apagamento patriarcal que é comum em tantas áreas da sociedade?
Claro, por isso que as mulheres têm que ocupar os locais de decisão. O sistema patriarcal atinge todas as camadas e setores, inclusive, a preservação. A revisão de filmes, por exemplo, se estabeleceu como uma atividade majoritariamente feminina, diferente do trabalho de processamento fotoquímico nos laboratórios. Talvez porque a revisão tenha a ver com o cuidar, categorizado como um trabalho supostamente feminino, enquanto operações mais técnicas e que lidam com equipamentos tecnológicos, como as atividades em laboratórios, tenham sido consideradas da alçada masculina. Fotos antigas de salas de revisão de películas e de laboratórios demonstram isso. Isso vem mudando, paulatinamente, nos últimos tempos. Entretanto, ainda precisamos, sempre, provar o nosso valor, tanto em termos de conhecimento técnico quanto em termos de respaldo político. Talvez haja uma camada de esforço maior para as mulheres, mesmo para as que trabalham há muitos anos como eu. Lido com preservação audiovisual há mais de 23 anos, já passei pelas mais importantes instituições do Brasil e fiz muitas especializações fora do país, tenho uma tese de doutorado sobre a restauração de filmes e, acredite, ainda necessito provar meus conhecimentos e passar por muitos obstáculos pra conseguir exercer meu ofício com o mínimo de condições adequadas e dignidade.

Em Ouro Preto, onde nos conhecemos, as representantes do Ministério da Cultura e da Educação eram mulheres, e agora temos a Margareth à frente do MinC.
Sim, esse movimento é essencial. É estratégico que mais mulheres ocupem os cargos de decisão, somente isso conseguirá promover mudanças estruturais.

OURO PRETO/MG. 18.06.2015 10ª CINEOP - MOSTRA DE CINEMA DE OURO PRETO.Exibicao do filme
Exibição do filme na CineOP (Leo Lara/Universo Producao/divulgação)

E como a preservação foi tratada pelos últimos governos brasileiros? O corte de verbas, a transformação do MinC em Secretaria, isso afetou de alguma forma?
Foi muito difícil mas, infelizmente, a preservação nunca foi encarada como integrante da cadeia audiovisual. Sempre estivemos à margem. Isso representa estar à margem de recursos, à margem das discussões políticas, à margem de editais, da elaboração de editais, enfim, das políticas públicas para o audiovisual como um todo. Nunca se pensou, de fato, uma política nacional para a área de preservação no país. O que ocorreu foram ações esparsas e concentradas em algumas instituições ao longo dos últimos anos. O Brasil é um país de dimensão continental e já provamos que isso não dá certo, descentralizar é absolutamente necessário. Mesmo diante de um contexto que parece cronicamente instável, o governo anterior conseguiu piorar o setor. A sorte é que os arquivos tem diferentes tipos de arranjo institucional, ou seja, também podem estar ligados aos âmbitos estaduais ou municipais.

O ápice do estrago causado pelo governo anterior foi a crise aguda que a Cinemateca Brasileira atravessou, permanecendo cerca de 1 ano e meio fechada, sem trabalhadores especializados. A história é complexa e não dá pra resumir aqui, mas esse é um bom exemplo de como as instituições podem passar de um período de pujança de recursos e serem quase destruídas logo após. A Cinemateca vinha de um período, sobretudo entre 2008 e 2013, de aportes significativos de recursos, mas faltou uma política estruturante para a preservação, uma política de Estado, e não de governo, que desse conta tanto da Cinemateca quanto das demais instituições.

“Acho que o Brasil adora uma tragédia, né? A crise e o incêndio na Cinemateca Brasileira chamaram muita atenção, e enquanto participava da organização de manifestações contra o fechamento da instituição e a situação precária dos ex-trabalhadores, aproveitei para levar a palavra da preservação, como gosto de dizer, para um público mais amplo. Espero que tenha surtido efeito, porque não podemos depender de crises para que algo seja feito, pode ser tarde demais”

Débora Butruce

Por conta da instabilidade, existe uma migração profissional muito grande na área. Com a pandemia e os cortes no orçamento da cultura e no audiovisual, equipes foram reduzidas, projetos foram cortados, e a situação, que já não era ideal, ficou ainda pior.

De toda forma, é muito ruim se acostumar com a escassez. Nos últimos anos eu tenho tentado mudar essa chave, porque senão sempre ficamos no modo da escassez. E podemos muito mais do que ficar apagando incêndio, tanto real quanto simbólico. Ao mesmo tempo, foi curioso porque nunca falei tanto sobre preservação quanto entre 2020 e 2021. Acho que o Brasil adora uma tragédia, né? A crise e o incêndio na Cinemateca Brasileira chamaram muita atenção, e enquanto participava da organização de manifestações contra o fechamento da instituição e a situação precária dos ex-trabalhadores, aproveitei para levar a palavra da preservação, como gosto de dizer, para um público mais amplo. Espero que tenha surtido efeito, porque não podemos depender de crises para que algo seja feito, pode ser tarde demais.

Mas felizmente, novos ventos estão soprando. O atual governo tem lançado um olhar cuidadoso e atento para a preservação, e uma inédita Diretoria de Preservação e Difusão Audiovisual foi criada no âmbito da Secretaria do Audiovisual. O Plano Nacional de Preservação Audiovisual, elaborado pela ABPA e lançado em 2016, foi revisado neste ano pelos membros da Associação e contou com a contribuição de diversos setores da cadeia audiovisual. Foi entregue ao governo durante a última CineOP, o que representou um marco para a área, a retomada do diálogo com as instâncias federais sobre a criação de políticas públicas para preservação foi um marco para a área. Precisamos mudar as estruturas, o governo está bem ciente disso. Acredito que a hora da preservação chegou, o Brasil merece, nós merecemos.

processo de restauração do filme
(Débora Butruce/arquivo pessoal)
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