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OLÁ,

Recriando a lenda de Ney Matogrosso

Na cinebiografia Homem com H, o diretor Esmir Filho resgata os momentos mais emblemáticos da vida e carreira do intérpreta brasileiro

Por Humberto Maruchel
28 abr 2025, 09h00
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Esmir Filho e Ney Matogrosso durante as gravações de Homem com H (Renato Hojda/divulgação)
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As primeiras vezes que Esmir Filho viu Ney Matogrosso cantando, ainda na infância, foi tomado por um turbilhão de sensações. Um certo assombro, uma estranheza por entrar em contato com um universo desconhecido — e, acima de tudo, uma identificação imediata que se revelaria como um verdadeiro fascínio. Anos mais tarde, Esmir receberia um presente — e também uma missão desafiadora: adaptar a trajetória do artista para o cinema. Assim nasceu Homem com H, filme dirigido por Esmir, com estreia marcada para 1º de maio, e Jesuíta Barbosa no papel principal.

De fato, Ney sempre causou esse tipo de impacto nas multidões, geração após geração. Até hoje, jovens seguem atraídos por seu magnetismo, como se todas as suas transgressões, sua sensualidade e, claro, seu talento como intérprete fossem algo inédito — mesmo tendo influenciado profundamente tantos artistas ao longo das décadas.

“Para mim, foi um presente porque, embora nunca tivesse imaginado isso, se eu fosse fazer a biografia de um artista da música, seria do Ney Matogrosso”, comenta o diretor. O receio diante da tarefa foi menor porque o universo do cantor já dialogava com temas que Esmir explorava em seu cinema. “Tem a ver com a pulsão dos corpos, com o desejo, com a repressão dos sentimentos, com as relações afetivas, com outras formas de afeto, com a relação entre pai e filho, mãe e filho. São todos temas que costumo abordar. Então, quando recebi esse presente, pensei: ‘Gente, eu poderia ter pensado nisso’.”

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O diretor Esmir FIlho (Sergio Santoian/divulgação)

Antes do anúncio oficial do projeto, Esmir contou a Ney que seria o responsável por dirigir sua cinebiografia. A resposta do artista foi simples, mas soou como uma bênção: “Que bom. Fico feliz que seja você.”

Quando a Bravo! conversou com o cineasta, ele havia acabado de testar a exibição do longa, prestes a estrear no Cinepólis, no JK Iguatemi, no dia seguinte. Sorridente, mas sem alarde, parecia em paz com a missão cumprida. Embora o anúncio só tenha sido feito em 2023, o processo começou ainda na pandemia, em 2021, quando Esmir recebeu o convite da Paris Filmes, em pleno isolamento social. “Transformei meu apartamento inteiro no meu ‘Matogrosso’, com fichas, anotações, coisas coladas pelas paredes. A primeira coisa que fiz foi escutar todos os discos do Ney em ordem cronológica, para entender o que ele expressava como artista ao longo do tempo. E fui cruzando isso com a vida pessoal dele.”

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(Azul Serra/divulgação)

O contato direto com Ney viria apenas mais tarde. Antes disso, Esmir mergulhou em obras fundamentais para construir sua própria leitura do artista: leu o livro de memórias Vira-Lata de Raça, escrito por Ney, Um Cara Meio Estranho, de Denise Pires Vaz, e reuniu entrevistas, vídeos e materiais diversos.

Foi em meio a esse mergulho que encontrou a premissa do filme. “Tem uma frase no Vira-Lata de Raça que me marcou muito. Logo no começo, ele escreve: ‘Eu sempre reagi ao autoritarismo.’ Ponto. Uau. Isso aqui é um personagem. Essa resistência constante ao controle atravessa toda a trajetória dele — começando pela figura do pai, a primeira grande autoridade que enfrentou. Ele conta que muitas de suas escolhas iniciais foram feitas para contrariar a vontade paterna, que não aceitava a ideia de ter um filho artista.”

Esmir entendeu que a persona de Ney nasceu como um gesto de oposição. Um “fauno”, uma entidade conectada à música, ao desejo e à liberdade — em comunhão com o instinto e o lado selvagem do ser humano. “Tudo ele enfrenta com forças que tentam conter sua libido, sua pulsão — e ele responde: ‘Não, eu sou quem posso ser. Eu sou quem desejo ser.’

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Um dos momentos mais reveladores do filme está logo na abertura: vemos um menino introspectivo, tímido, em meio à natureza. Em paralelo, Ney aparece no palco como um Homem de Neanderthal, se arrastando como um animal. Um contraste poético entre infância e a criação do mito.

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(Marina Vancini/divulgação)

Cinéfilos mais céticos podem torcer o nariz diante de mais uma cinebiografia. Para muitos, o documentário parece uma escolha mais segura para retratar a vida de um ícone como Ney. Mas vale um parêntese: o próprio artista não apenas apoiou o projeto como também participou ativamente do roteiro.

Aos fãs receosos diante do desafio de representar esse furacão, podem ficar tranquilos. O longa consegue capturar a essência do cantor e traduzir algumas das camadas que o tornaram tão especial: da timidez ao enfrentamento do conservadorismo, do amor à liberdade à sensualidade vibrante. Muito disso se deve à atuação de Jesuíta, que reconstitui com precisão gestos, olhares e a fisicalidade de Ney — como se estivesse sempre à beira de transbordar. Uma performance intensa e respeitosa, digna de reconhecimento.

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Para a preparação, Esmir pediu a Jesuíta que não se preocupasse em imitar Ney logo de início. Essa deveria ser uma descoberta gradual, ao longo do processo de três meses. “Ele começou como ele mesmo. À medida que os ensaios avançavam, criei uma ordem cronológica para que ele percorresse as fases da vida do Ney. Nos ensaios, ele foi atravessando essas etapas, e o Ney foi surgindo. Paralelamente, houve trabalho corporal, aulas de canto e dança, e estudo da prosódia — o ritmo da fala do Ney. À medida que experimentava as cenas, ele foi moldando corpo, voz e gesto.”

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(Marina Vancini/divulgação)

O filme percorre episódios centrais da vida e da carreira do artista: a expulsão de casa por ser afeminado, a descoberta de sua potência vocal, a estreia com os Secos & Molhados — onde nasce sua persona —, o primeiro beijo em Cazuza (vivido por Jullio Reis), um de seus grandes amores, e as perdas durante a epidemia da AIDS. Os marcos mais emblemáticos estão lá.

Durante a escrita do roteiro, Esmir compartilhou esboços com Ney. Em alguns trechos, tirou dúvidas. Em outros, assumiu a liberdade criativa diante das lacunas da memória — sempre com respeito à verdade emocional. Um exemplo aparece numa das escolhas de direção de arte. “Em 1983, Ney se apresentou no Festival de Montreux. Enquanto ele cantava, Keith Haring pintava um mural ao vivo. No final, assinou: ‘For Ney Matogrosso’ e deu o quadro a ele. Como ainda estava molhado, pediram para deixar secando — e a obra foi roubada. Nunca mais foi vista.”

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No filme, a equipe decidiu ressignificar o episódio. O painel foi recriado e colocado na cabeceira da cama de Ney — embora, na vida real, ele nunca tenha tido o quadro. O gesto tem carga simbólica. Keith, que também morreu de AIDS, é um ícone de sua geração. A pintura aparece num momento em que os personagens lidam com as mortes provocadas pelo vírus. Ney, então, reproduz uma frase marcante do artista: “Esse vírus não veio para nos matar, veio para dizer que existimos, que somos humanos, que amamos.”

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(Lucas Ramos/divulgação)

A direção de arte do filme também se apoia na obra de um grande nome brasileiro. A sequência ambientada na praia do Leblon, no Rio de Janeiro — quando Ney conhece Cazuza — foi concebida a partir das fotografias de Alair Gomes, conhecido por registrar corpos masculinos à beira-mar. “Aqueles quadros — com corpos masculinos e femininos — são recriações diretas do trabalho dele. Quisemos dar um recado sutil: estamos falando desse tempo, desse contexto.”

Esmir conta que Ney assistiu ao filme duas vezes  – uma delas ao lado de Jesuíta e Esmir. O diretor estava especialmente apreensivo com as cenas que retratam Marco de Maria (interpretado por Bruno Montaleone), companheiro do artista por 13 anos, morto em decorrência da AIDS. “Muita coisa já foi dita em várias biografias, mas o Marco era um lugar que ele sempre guardou de forma muito íntima — e ele abriu isso comigo. No ápice emocional dessa parte, ele pegou minha mão. Peguei de volta, achando que era só isso. Mas ele disse: ‘Não, não, não…’ — e passou meu dedo no olho dele. Foi muito bonito. Ele estava com os olhos cheios de lágrima. E eu pensei: ‘São esses gestos que mostram o quanto aquilo foi precioso.’ Não era só ‘ele gostou’. Ele se emocionou.”

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(Homem com H/divulgação)
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