Um dia nos bastidores de “Terra e Paixão”
Passamos um dia nos Estúdios Globo acompanhando as filmagens e conversando com o elenco da nova novela das 21h
Se há um produto cultural brasileiro que parece resistir ao tempo, às mudanças de comportamento, ao streaming, ou aos novos hábitos de uma sociedade, é a novela. E quando se fala desse gênero, não há como não pensar na TV Globo, a maior emissora televisiva do país. Por décadas, esse tipo de narrativa tem servido histórias, personagens e até mesmo uma curiosa companhia no dia a dia de sua audiência. Seu impacto é tanto que as tramas são capazes de fomentar debates públicos e ainda modificar a opinião popular sobre tópicos sensíveis. Lado a lado com a música, ou o futebol, a novela é uma espécie de duplo dos brasileiros. Uma cópia que, na maioria das vezes, não reflete bem o que é e quão diversa é essa sociedade, embora se comprometa permanentemente com essa missão.
“Você tem ideia de como uma novela é feita?”. A pergunta vem de Luiz Henrique Rios, diretor de Terra e Paixão, a nova produção que veio para ocupar o horário nobre da TV Globo. Estamos sentados em poltronas, lado a lado, na área de convivência do MG4, nos Estúdios Globo, o famoso Projac, na zona oeste do Rio de Janeiro. “Não faço ideia”, respondo.
“A novela nasce na cabeça de alguém.” No caso, esse alguém é ninguém menos do que Walcyr Carrasco, autor de alguns dos clássicos da emissora, como Chocolate com Pimenta, Alma Gêmea, e outros sucessos recentes, como Verdades Secretas. A ideia, dessa vez, gira em torno de uma personagem, Aline (interpretada por Bárbara Reis), uma professora que possui uma pequena, mas valiosa propriedade em Nova Primavera, uma cidade fictícia no Mato Grosso do Sul.
Numa guerra regional, suas terras são invadidas por grileiros. Nessa passagem, que acontece no primeiro episódio, seu lar é incendiado, e seu marido, Samuel (Ítalo Martins), assassinado. Para conseguir se reerguer tanto financeira quanto emocionalmente, Aline, que nunca plantou uma semente na vida, se vê obrigada a se envolver na produção agrícola, com a ajuda de seu primo, Jonatas (Paulo Lessa). Para surpresa de todos, os negócios prosperam a ponto de despertar a preocupação do magnata Antônio La Selva (Tony Ramos), o maior produtor rural da região. É, então, que os conflitos começam. “Com a história, mais ou menos desenhada, nós começamos a criar esse universo”, continua Luiz Henrique. “Ele (Walcyr) é o criador da história, eu sou o contador. Eu crio contando, ele cria inventando. Junto à minha equipe, eu começo a visualizar esse universo todo, e aí construímos tijolo por tijolo.” Para Walcyr, por sua vez, o maior desafio ao escrever uma novela “é criar uma sintonia entre os sentimentos do autor, aqueles que ele quer presentes na história, e os sentimentos do público. Esse é o segredo de um trabalho artístico”.
“Você tem ideia de como uma novela é feita? A novela nasce na cabeça de alguém”
Luiz Henrique Rios
O tijolo, a que se refere, é, também, no sentido literal. O Estúdio Globo possui fábricas, marcenarias, ateliê de costura próprios para projetar e construir todos os cenários e apetrechos necessários para apoiar a narrativa que será exibida ao longo de oito meses. Constroem, inclusive, ruas, lojas, ou mesmo bairros de toda uma cidade imaginada. Em um ponto meio periférico do estúdio, há ruínas da rua onde vivia Thelma (interpretada por Adriana Esteves), uma das protagonistas de Amor de Mãe. O cenário não é totalmente destruído, como se pode crer, mas reciclado em uma nova cenografia.
Ao meu lado, Luiz continua explicando sobre a pesquisa que concretizou tudo aquilo que estava na cabeça de Walcyr Carrasco. “A primeira coisa que pensamos foi o esquema de cor”, continua. “No interior do Brasil temos uma gradação de cores muito mais abertas do que estamos acostumados a ver em São Paulo, que tem muito roxo e cinza. Quando você viaja para o interior, você vê muitas cores. Queríamos exibir essa paleta”, ele começa. “Então busquei referências nas artes plásticas. O artista Siron Franco, para mim, apontava o que era aquele lugar. Pegamos um pouco desse recorte e aí fomos buscar algumas referências para construção desse universo. Quando construímos essa realidade, colocamos as pessoas, o elenco, que dão uma nova camada para essa história. É, portanto, um trabalho muito coletivo.”
As filmagens, conta Luiz, seguiram lógica semelhante a um calendário agrícola, com o plantio com início em janeiro e fevereiro, com a preparação do elenco e construção dos materiais, e a gravação, em março. E, finalmente, a exibição da novela, uma espécie de colheita, em maio. Há uma margem de segurança planejada de capítulos gravados, o que permite mais flexibilidade para produção quando a novela entra no ar.
Fora do set
Em Terra e Paixão, as gravações ocorrem em diversos ambientes. Há os espaços externos (fora do Projac), como as cidades fluminenses de Guaratiba, Mangaratiba, Seropédica e Itaguaí, onde se reproduzem algumas das localidades do enredo, como as fazendas. Há também as gravações locais nas cidades Deodápolis e Dourados, no Mato Grosso do Sul. Lá, equipe executiva e elenco permaneceram um mês para se ambientar e trazer referenciais para suas criações.
E, claro, há as gravações em estúdio, no novo e tecnológico MG4, lugar em que acontecem a maioria das filmagens. Os cenários, entretanto, não ficam restritos às quatro paredes dos sets. No meio do caminho, envolto por vasta Mata Atlântica, as habitações também estão presentes. Para ser o mais verossímil, a equipe de criação construiu a casa de Aline, a mesma incendiada no início do enredo. Não foi apenas construída, como também completamente incendiada e reconstruída, assim como ocorre na novela. Quase em frente do lar de Aline, separada apenas por uma estrada de terra, existe uma grande oca que será núcleo dos povos originários – entre eles está o personagem Jurucê, interpretado por Daniel Munduruku.
De volta ao MG4, encontramos Tony Ramos chegando. Desde que começou sua carreira na televisão, em 1964, já participou de mais de 80 produções, entre séries, novelas e programas de TV. Há um elemento nas novelas que agrada muito Tony. Tanto no estilo literário, quanto no formato televisivo, está a preocupação folhetinesca. Para o ator, ainda há pouca concorrência à altura que consiga ter repercussão popular semelhante à telenovela. “Os grandes escritores sempre falaram que o folhetim tem um triângulo mágico: amor, paixão e suspense. E isso está presente em tudo, até mesmo na série mais insensata, seja de produções norte-americanas, inglesas, francesas, coreanas etc. Nenhuma perde a preocupação folhetinesca, que trazem sempre as perguntas: quando, quem, por que, como vai ser, e como termina. Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, foi escrito todo em folhetim.”
Ele lembra que o popular ainda é alvo de desprezo ou, por vezes, classificado como de menor valor do que outros produtos culturais. “Muitas vezes, a novela é um gênero tratado com certo desdém. Mas temos que reconhecer que há uma identidade cultural com a telenovela brasileira, que é fruto de estudos em diversos países do mundo, do porquê dar certo seis episódios por semana e uma novela conseguir atingir, às 21h, milhões de brasileiros. Uma live, com muita boa vontade, vai atingir 2, 3 mil pessoas. Um show americano, ao vivo, quando atinge 500 mil, muitos comemoram. Um capítulo de novela atinge milhões de pessoas diariamente. A telenovela tem cumplicidade popular.”
Além da paixão pelo ofício, para Tony há outro motivo que o entusiasma a voltar ao set de gravação: retomar sua parceria de décadas com Glória Pires, que vive a vilã Irene La Selva, esposa de Antônio. Glória chega ao estúdio bem cedinho e passa por um longo processo de caracterização para a filmagem. Enquanto na vida real, ela esbanja cabelos curtos com fios prateados, para viver Irene, ela utiliza lace, uma prótese capilar castanha super realista, que demanda um processo de 3 horas para ficar pronta.
“Uma live, com muita boa vontade, vai atingir 2, 3 mil pessoas. Um show americano, ao vivo, quando atinge 500 mil, muitos comemoram. Um capítulo de novela atinge milhões de pessoas diariamente. A telenovela tem cumplicidade popular”
Tony Ramos
Quando nos encontramos pelos corredores, ela já está caracterizada, vestindo um terninho branco. Sua personagem trará vestes mais claras, em tons de branco ou rosa suave, contrapondo uma personalidade sombria, explica. “Ela é uma manipuladora. É legal porque essa manipulação, em algumas cenas, é mais óbvia e em outras é discreta. Eu adoro, fazer vilã é uma curtição. Não deixa de ser uma releitura de outras vilãs [que já fiz], mas tem algo novo porque eu estou em outro momento”, diz Glória sobre a personagem.
E que momento é esse?, devolvo a ela. “Estou no momento de busca, de rever lugares em que já estive. Nós fizemos uma série de encontros de preparação para novela e cada um tinha que trazer uma expectativa, inquietação, ou algo que o tocasse naquele momento. E para mim, é isso: como ainda traduzir essas borboletas que estão no estômago, trazer esse frescor do novo? Eu não quero fazer o que já fiz, quero que essa minha vivência tenha uma nova cara. Eu estou numa empolgação que parece que estou começando.”
Uma casa para chamar de nossa
Dentro do colossal MG4, um cenário permanente foi mobiliado, a casa de Antônio e Irene. O MG4 é o único do Projac que consegue abranger cenários fixos. Isso significa que os cenários de algumas novelas, em outros estúdios, são montados e desmontados diariamente, como enormes peças de lego. É possível imaginar a mão de obra necessária para fazer isso acontecer. No galpão central, a mansão da família La Selva foi edificada como uma casa verdadeira, com salas, quartos, banheiros e cozinha, inteiramente mobiliados, e personalizados segundo as características de cada personagem. A ilusão acaba apenas quando olhamos para o teto, onde estão pendurados os diversos refletores, ou quando direcionamos a atenção para a janela, que possui um fundo falso. É possivelmente a casa mais bonita em que já entrei, digo. “A minha também”, responde Johnny Massaro.
Johnny vive Daniel, filho de Antônio e Irene. É para ele quem Irene deseja deixar a fortuna da família. Ele, no entanto, não corresponde ao perfil cruel da mãe. Sua disputa com irmão Caio (Cauã Raymond), filho de Antônio com a primeira esposa, Agatha, acaba sendo não exatamente pelo dinheiro, mas pelo amor de Aline, por quem ambos se apaixonam. Embora, o esquema de gravação seja muito ágil, a preparação do elenco, parte que Johnny valoriza muito no processo, é bastante intensa, e envolve tanto o preparo físico, quanto estudo teórico das camadas da novela.
“É uma felicidade vir trabalhar porque tem uma galera muito boa e divertida. A preparação foi híbrida, tivemos muitos encontros virtuais com pessoas que conhecem os temas que circundam a trama. Tivemos encontros com lideranças pretas, pessoas do agronegócio, historiadores da região do Mato Grosso do Sul”, afirma Johnny em um breve intervalo.
“Sempre digo que a fruta nunca cai longe do pé quando um ator é escalado para fazer um personagem, porque aquele personagem tinha que encontrar o ator para fazer”
Bárbara Reis
O ator havia acabado de retornar das gravações externas e se preparava para realizar as cenas na casa da família. Na sala de convivência, há um monitor mostrando as cenas que serão gravadas no dia e os atores que estarão nelas. Em média, são gravadas de seis a 10 cenas por dia. Na ocasião daquela visita, os espaços eram divididos com o elenco de Travessia, que gravava os capítulos finais da novela. Um fator nesse processo torna ainda mais desafiador o trabalho dos atores: os capítulos não são gravados cronologicamente, como vemos na TV. Acontece das circunstâncias serem organizadas fora de ordem, dificultando a construção da linha evolutiva de cada personagem. Na equipe, as continuístas são funcionárias de extrema importância, que ajudam não apenas a observar a cena em sua totalidade, desde os objetos que estão alocados no cenário, mas também o progresso dos personagens.
Naquele dia, Cauã está na correria. Conseguimos conversar nas brechas de suas cenas. Nos corredores ele é ágil, não apenas no seu ritmo, mas também na mudança de humor, fazendo graça e piadas nos bastidores, e mudando para um tom melancólico e sério nas filmagens.
Quando se prepara para um novo personagem, Cauã gosta de conhecer e imaginar a história para além do roteiro. Por isso, tem grande apreço pelo improviso na cena. Como na música, nas artes cênicas, o improviso é resultado de muita técnica e domínio. “Eu gosto de chegar no set com o máximo de segurança possível. Não gosto de entrar com frio na barriga. Gosto de chegar com uma base muito sólida, com o personagem pronto”, ele conta. “Nós fizemos uma coisa muito legal aqui, que nunca fiz nesses 21 anos de casa, que é fechar um estúdio inteiro para o Walcyr nos ouvir. O estúdio estava completamente vazio, sem cenário, nós fizemos uma grande roda, e os atores levantavam e construíam a cena no meio de todos. Ele gosta muito de ser influenciado pelo que os atores trazem.”
E, claro, desse elenco, a estrela é Bárbara Reis. Bárbara vive um momento de muita alegria, não apenas por poder protagonizar uma novela em um enredo potente, mas por poder interpretar uma personagem que carrega valores muito próximos aos seus, o que para ela, não deixa de ser um grande desafio. “Sempre digo que a fruta nunca cai longe do pé quando um ator é escalado para fazer um personagem, porque aquele personagem tinha que encontrar o ator para fazer”, diz. “A Aline se aproxima muito de mim nessa esperança que ela tem de que ela vai prosperar e conquistar o que ela almeja. E ela é muito justa.”
Bárbara é uma das poucas atrizes negras a protagonizar uma novela das 21h, uma tarefa solitária e cheia de responsabilidades. Para além disso, há um encanto permanente de ver aquele mundo da imaginação ganhar forma. “A grande realização para um ator ou atriz é ver todo seu trabalho, desde a composição da personagem, até começar a gravar, ganhar forma na televisão. Nosso prazer é fazer algo para que quem assiste sinta as emoções que sentimos ao gravar.”
Mais um na multidão
Observar esses artistas tão conhecidos e populares em frente às câmeras desmonta imediatamente a aura da celebridade. Há uma multidão fora de cena, dividindo apertados os cômodos que servem como cenários. Os atores são mais uma peça nessa mecânica. Uma importante peça, diga-se de passagem. Mas não há, entretanto, hierarquia no que diz respeito ao valor ou importância de cada função.
A depender da cena e do espaço que estão sendo filmados, Luiz Henrique pode se posicionar dentro ou fora do set. Fora da mansão, há uma pequena cabine, com monitores que exibem os diversos ângulos capturados pelas câmeras. Dali, Luiz dá as orientações por microfone à equipe que está no set. As gravações são rápidas. O elenco passa as marcações, ensaia com filmagem e, em seguida, grava para valer. Naturalmente, uma gravação pode ser refeita diante de erros ou de alterações necessárias. “Se você fizer 10 vezes a mesma cena, você terá 10 cenas diferentes. É um trabalho vivo. O ator, por mais que queira, nunca dará a mesma resposta”, diz Luiz.
“Eu gosto de chegar no set com o máximo de segurança possível. Não gosto de entrar com frio na barriga. Gosto de chegar com uma base muito sólida, com o personagem pronto”
Cauã Reymond
Outras cenas exigem um pouco mais de atenção. Como é o momento de um confronto entre Antônio e Irene no quarto do casal. Luiz ajuda os atores a identificar as intenções dos personagens. Irene, com voz calma e baixa, mantém tom sereno, enquanto tenta manipular o marido. Já Antônio tem uma postura mais enérgica com a esposa. Durante a gravação, Luiz, como um coreógrafo, marca as posições e o caminhar dos atores pelo cenário. Há mais de 10 pessoas nos bastidores naquele momento, entre eles, câmera, assistente de câmera, assistente de estúdio, assistente de direção, direção, continuístas etc.
Luiz possui um método próprio, no qual convida os atores a não verem suas as cenas após terem sido gravadas. Ele entende que o resultado pode ser mais enriquecedor se os artistas não se observarem em cena. “O ator age muito na intuição, independente do estudo, do preparo. A ideia de que ele não se controle (em cena) é muito bom. Se ele se observar demais, pode ser que ele se cerceie em coisas geniais. A intuição não é racional, a observação é.” Ele é o tipo de diretor que acredita que quanto mais os atores se sentirem livres, melhor será o resultado.
A força dos personagens
Na nossa caminhada pelos bastidores, uma das áreas mais deslumbrantes é a sala de figurinos, espaço comandado por Paula Carneiro. O projeto, tanto de caracterização, quanto de figurino, são alguns dos primeiros a serem planejados, diante do desafio que é a sua criação. Em Terra e Paixão, esse trabalho começou ainda em outubro de 2022. “A gente começa sem uma peça de roupa. Nós fazemos pesquisa, buscamos entender cada personagem, trocamos ideia com autor e direção, sempre respeitando o desenho artístico que a novela propõe. O figurino precisa combinar com a cenografia e com a direção de arte. Temos uma troca intensa”, diz.
Naquele amplo espaço, diversas araras enfileiradas. É como se cada personagem tivesse um guarda-roupa próprio, que inclui desde as peças íntimas, aos acessórios, até as roupas. No fim de cada semana, Paula organiza araras menores com os figurinos que serão usados nas gravações de toda a semana seguinte. A maioria das peças são confeccionadas no ateliê de costura da Globo, outras são reaproveitadas do acervo central de figurinos (onde são armazenadas as vestimentas de todas as novelas), algumas são compradas ou emprestadas, ela explica.
Ao longo da jornada que estende por aproximadamente 8 meses, são filmados e exibidos 200 capítulos de 1h. A estrutura, tanto material quanto da fábula, precisam estar bem constituídas para dar suporte às filmagens. Isso, entretanto, não impede que as mudanças sejam feitas no decorrer da novela, conforme a reação da audiência. “Nós queríamos fazer uma novela clássica, não uma novela velha. Uma que tivesse a dinâmica de novela, algo que converse com a memória da telenovela. É narrar de maneira moderna, mas usando cânones da telenovela. Você grava seis capítulos por semana. É como se fizéssemos dois longas e meio a cada semana”, afirma Luiz.
Após um longo dia de andanças, é hora de despedir daquele universo fantasioso. O sucesso de uma novela, para Luiz Henrique, depende mais da dinâmica, do carisma dos personagens do que a própria história. “O que o público presta mais atenção é aos sentimentos e emoções.”