“Tia Virgínia”: uma família em combustão
Com Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso, filme de Fábio Meira explora relação conflituosa de três irmãs
O filme “Tia Virgínia”, de Fabio Meira, que estreia em 9 de novembro, é um exemplo de uma guerra familiar que começa com tudo o que foi guardado por muitos anos e finalmente chega ao seu limite: os ressentimentos, os segredos e a inveja. Tudo se passa em um único dia, na véspera de Natal.
O enredo acompanha a septuagenária Tia Virgínia (interpretada por Vera Holtz), filha do meio que, ao contrário das irmãs, Vanda (Arlete Salles) e Valquíria (Louise Cardoso), não casou e não teve filhos. A ela coube ocupar a casa da família e cuidar dos pais até seus últimos dias. Logo no início do filme, vemos a protagonista se desdobrando em tarefas, esforçando-se para tirar a mãe (Vera Valdez) da cama e colocá-la na cadeira de rodas. Naquele momento, a matriarca não fala e está e indiferente a tudo que acontece ao seu redor. Em uma das passagens mais poéticas do filme, porém, testemunhamos a filha dando banho na mãe, um trecho que acerta ao não se acanhar por mostrar a realidade de um corpo envelhecido nu.
Muito além da escolha de se tornar cuidadora dos pais, essa parece ter sido uma determinação das irmãs, e a Virgínia coube aceitar. O conflito coloca em confronto os que seguiram as convenções sociais, de um lado, e os que caminharam contra elas, de outro. As discussões iniciais são por mesquinharias, como a ceia do Natal ou o quarto que cada irmã irá dormir no velho casarão. As irmãs não parecem reconhecer as dificuldades e a solidão que Virgínia enfrenta no dia a dia. Naquela hierarquia familiar, ela parece se encontrar em uma posição inferior. Ao longo do roteiro, o passado das personagens vai ganhando densidade e nova perspectiva. Durante os 90 minutos de filme, vemos a protagonista reagir a favor da própria emancipação, ainda que tardia.
A obra é composta por uma mistura de homenagem, ficção e elementos biográficos da família do diretor Fabio Meira. “Na minha família, cada um mora em um canto, e nós nos encontramos nas férias, em julho e dezembro. Durante 20 anos, nós nos encontrávamos apenas em dezembro e a frequência diminuía. Mas há mais de 20 anos, eu tinha vontade de fazer esse filme e comecei a escrevê-lo em 2013 quando ganhei um edital de desenvolvimento em São Paulo”, conta ele, em entrevista à revista Bravo!.
Naquela altura, ele não sabia ao certo qual seria o argumento do filme. Para isso, resolveu fazer uma viagem de ônibus de São Paulo a Minas Gerais. No caminho, faria algumas paradas para visitar suas quatro tias e a sua mãe. Queria ouvir suas histórias e seus sonhos não realizados. Pediu que falassem para uma câmera ligada. “Fui conversando com cada uma delas, querendo saber as histórias que eu não conhecia e também a visão delas das coisas. Decidi contar esse filme através da filha solteira, em um dia na véspera de Natal. Acredito que nesse período, para pessoas que não se veem sempre, os personagens estão em situações limites. É tudo mais intenso”, continua.
Nos relatos, saltavam também as dificuldades dos períodos em que cresceram, que apresentavam um cerco ainda mais restrito para as mulheres. “É uma homenagem, mas também é biográfico. Foram essas mulheres que, bem ou mal, me disseram que é possível ter uma vida fora do padrão social. Uma é da geração da minha mãe, ela foi fora do padrão nos anos 50, 60 e 70. A outra é irmã da minha avó, ela foi solteira nos anos 40, 50. É preciso ter muito brio para ir contra a sociedade. Por isso sempre tive muito fascínio por elas.”
–Embora as personagens sejam apresentadas de uma forma não tão favorável, e por vezes egoístas, o que está em jogo são as pressões exteriores que exigem que aquelas mulheres obedeçam aos seus papéis predeterminados. Todas, de um modo ou de outro, carregam o peso da submissão perante o patriarcado.
“Foi muito emocionante ouvi-las. No momento em que eu ligo a câmera e peço para a minha tia mais velha se apresentar, ela já fica emocionada e começa a chorar. São mulheres que não foram muito escutadas. Virgínia é a solteira, ela está no lugar de serviço, mas mesmo as mulheres casadas também estão nessa posição. As pessoas estão mais preocupadas se a comida está pronta, se está tudo pago do que em ouvir o que ela está sentindo. Isso tocou muito elas”, revela o diretor.
Além da trama em si, o filme se destaca pelo jogo de interpretações do trio de atrizes. Vera Holtz, em especial, tem chamado a atenção em todas as exibições do filme. Neste ano, ela participou pela primeira vez em sua carreira do Festival de Gramado e foi premiada com o Troféu Kikito de Melhor Atriz. Com uma carreira de muito sucesso na TV, no Cinema e no Teatro, “Tia Virgínia” será certamente lembrada como uma de suas grandes personagens. “Quando você começa um filme, a preocupação é técnica no primeiro momento. Fabio nos mostrou o vídeo com as tias. A primeira leitura que fazemos do filme a partir do vídeo é o ritmo, o sotaque, o temperamento e a energia dessa família. E vamos para o set de filmagem e ali começamos a delinear as interrelações. Daí entram as irmãs, os sobrinhos. E você começa a se surpreender. Você acha que [a família] é um território dominado, mas não é bem assim”, explica Vera à Bravo!.
Durante o tempo de produção, Vera passou a enxergar elementos de Virgínia em si. Poderia ter tido uma experiência parecida com a dela, afinal. “Eu poderia ter sido a Virgínia se eu tivesse ficado em Tatuí. Nós somos quatro irmãs, eu não tive necessidade, porque minha irmã mais velha morava ao lado da família. Elas são mulheres que repetiram esse modelo. Para o pai e para mãe, ter o neto perto é sempre encantador. O máximo que eu consigo chamar atenção é com o meu cachorro. Se eu vou com ele, todo mundo quer ver o cachorrinho, ninguém se interessa pela Vera“, conta.
Mas quando analisa a própria história, a artista percebe que os pais foram mais generosos com a independência das filhas e que esse assunto sempre foi colocado em pauta nas conversas entre família. Já a personagem Virgínia recorda os anos em que era atriz e se lamenta da vida que não pôde viver, do futuro perdido. “Papai sempre foi muito bacana, ele nos ensinou desde muito pequenas a sobreviver, a buscar estudo e independência através de uma formação. Ele sempre falava: ‘Primeiro você se forma, depois você se casa'”, finaliza Vera.
Assista ao trailer do filme “Tia Virgínia”, abaixo: