Virgínia e Adelaide: as mulheres que moldaram a psicanálise no Brasil
O longa, dirigido por Yasmin Thayná e Jorge Furtado, estreou neste mês nos cinemas e reconta a trajetória da primeira psicanalista não-médica do Brasil

Ao revisitarmos os primórdios da psicanálise no Brasil, um nome deveria ecoar com a força de um legado inegável — e esse é o de uma mulher negra. Virgínia Bicudo foi a primeira pessoa não-médica a ser reconhecida como psicanalista no país, além de ter sido a primeira mulher paciente de psicanálise na América Latina. Sua trajetória, marcada por pioneirismo e inúmeras conquistas, ainda surpreende, embora seu nome, sem grande espanto, tenha sido relegado ao silêncio, ou mais precisamente, apagado por estruturas racistas
Sua trajetória, agora, ganha uma nova oportunidade de ser recontada — para o deslumbramento — ao lado de outra mulher, a psicanalista Adelaide Koch (antes Adelheid Koch). A biografia dessas duas pesquisadoras é costurada no filme Virgínia e Adelaide, dirigido por outra dupla: Yasmin Thayná e Jorge Furtado.
“A ideia nasceu da minha ignorância sobre Virgínia Bicudo. Em 2018, descobri que a primeira psicanalista do Brasil havia sido uma mulher negra, em 1939. E pensei: como é que eu nunca ouvi falar dessa pessoa? Por que isso não está nos livros escolares? Comecei a pesquisar e percebi que, embora existam alguns trabalhos acadêmicos sobre ela, ainda é muito pouco conhecida. Fui a um encontro numa sociedade psicanalítica e perguntei: ‘Vocês conhecem Virgínia Bicudo?’ Ninguém conhecia. Então, não era só a minha ignorância”, declara Furtado em entrevista à Bravo!.
Adelaide, interpretada por Sophie Charlotte, foi uma psicanalista judia alemã que chegou ao Brasil às pressas, após fugir do regime nazista. Foi a primeira mulher com formação em Psicanálise a atuar no Brasil — e foi ela a responsável pela primeira aproximação de Virgínia (interpretada no filme pela atriz Gabriela Correa) com a psicanálise. O contato entre as duas aconteceu em 1937, por iniciativa da brasileira, que acreditava poder expandir seus pensamentos sobre o impacto do racismo estrutural em sua saúde mental e identidade. Com muita luta, Virgínia conquistou o reconhecimento como psicanalista, mesmo não sendo médica — uma exigência à época para os profissionais da área.
O objetivo inicial era criar um documentário, mas logo perceberam que a ficção seria um instrumento indispensável para reconstituir a história desse encontro. Há poucos documentos que deem conta das sessões entre as duas, mas o suficiente para atestar que, após a relação de terapeuta e paciente que duraria cinco anos, as duas se tornaram grandes amigas ao longo da vida. O que há no meio dessa história precisou ser completado com ficção, como explica o diretor. O que precisou ser inventado?
“Basicamente, os diálogos. As sessões entre as duas, por exemplo — a Virgínia provavelmente fez registros, anotou em diários, como era comum entre analistas, mas esses documentos foram queimados. Então, tivemos liberdade para construir essas cenas com base no que sabíamos do contexto e das personagens. As próprias sessões entre as duas a gente teve que inventar, né? Baseamos a criação em depoimentos, em falas, em entrevistas. Ou seja, foi uma criação fundamentada em material biográfico, mas, ao mesmo tempo, uma ficção”, responde o diretor.
Virgínia, além de psicanalista, foi uma importante socióloga, formada pela tradicional Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), atuou na área de saúde pública antes de iniciar os estudos sobre o inconsciente humano. Filha de uma imigrante italiana e de um descendente de pessoas escravizadas, foi a única mulher em sua turma de oito estudantes. Parte de sua trajetória, mais tarde, foi dedicada a criar uma interface entre os estudos da psicanálise, da psicologia social e das ciências sociais — atravessadas pelo viés racial.
No longa, os encontros entre as duas mulheres são potencializados pelas descobertas sobre o que é ser mulher em sociedades patriarcais. Adelaide, por sua vez, é assombrada pelos horrores do nazismo, que destruiu qualquer possibilidade de desenvolvimento pautado em liberdades, direitos humanos e igualdade de gênero.
“Acho que foi justamente a curiosidade da Virgínia pela psicanálise que a levou até a casa da Adelaide — sem saber direito o que era aquilo, quanto custava, o que iria acontecer. E a Adelaide, de forma muito generosa e profissional, abriu a porta e disse: ‘Esse é o caminho, vamos trabalhar assim, custa tanto, te vejo na semana que vem’. E disso nasceu a amizade entre elas. Então, esse entrosamento, essa curiosidade e abertura para o outro foram essenciais. Sem esses elementos, talvez a psicanálise brasileira não tivesse se desenvolvido da forma que conhecemos”, reflete a atriz Gabriela Correa.
A psicanálise não foi a única porta atravessada primeiro por Virgínia. Ela também foi responsável pela primeira dissertação de mestrado voltada aos estudos sobre relações raciais no país, intitulada Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo. Mais tarde, especializou-se na psicanálise de crianças. Além disso, dedicou-se a democratizar o conhecimento psicanalítico, na década de 1950, por meio do programa de rádio Nosso Mundo Mental, transmitido pela Rádio Excelsior. Em 1973, ela foi a primeira mulher negra a compor um plenário do Conselho Federal de Psicologia.
A psicanalista brasileira ousou também ao defender aquilo que, hoje, parece evidente — mas que, à época, era obscurecido pelo mito da democracia racial: o Brasil era, sim, um país racista. Um dos efeitos dessa crença era o constante questionamento sobre sua identidade racial. Não à toa, por ser vista como branca por alguns, conseguiu adentrar círculos da elite intelectual paulista.
“O registro da Virgínia, por exemplo, mostra muito do seu humor, da sua risada, que se transformou em um recurso para chamar a atenção. Virgínia foi uma mulher que conviveu com a escravidão de forma muito próxima e, mesmo sendo desejada por uma elite, esteve presente em reuniões que pessoas negras, muitas vezes, não frequentam nem hoje. Então, aquela gargalhada tinha um recado, uma mensagem importante”, compartilha a diretora Yasmin Thayná.
Por parte de Sophie Charlotte, houve uma poderosa imersão na história de sua própria família. A atriz nasceu em Hamburgo, na Alemanha, e veio ainda pequena para o Brasil. Para dar corpo à personagem, ela recorreu às memórias de sua avó materna.
“Toda a questão do sotaque, alguns elementos da caracterização, posturas, gestos… Ela trouxe muito da cultura alemã para dentro de casa. Eu fui criada por ela, muito próxima, e pude, por meio desse filme, desaguar essa relação — essa vivência familiar e cultural — dentro da construção da personagem. Às vezes, o ofício nos oferece espelhos, portais. E esse filme, para mim, foi um portal imenso. Através da Adelaide, consegui compreender melhor a trajetória da minha avó no Brasil: chegando a um país com uma cultura completamente diferente, uma outra língua, pessoas com outro jeito de ser — e, ainda assim, se abrindo, se transformando, se iluminando por meio dos encontros que teve. Acredito que a Adelaide tenha vivido algo muito parecido”, declara a atriz.
Virgínia e Adelaide já está em cartaz nos cinemas do país, após passar por importantes festivais brasileiros, como o Festival de Gramado, o Festival do Rio e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.