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Lembranças de Zé Celso

Em depoimento, o cineasta Noilton Nunes conta como ele e Zé criaram o filme ‘O Rei da Vela’

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 26 dez 2023, 11h23 - Publicado em 22 dez 2023, 09h43
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 (Zé Celso/arquivo)
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Depoimento de Noilton Nunes para Humberto Maruchel

Eu estava na Jornada de Cinema da Bahia de 1978, com o curta “Leucemia”, inspirado no drama dos refugiados brasileiros em Portugal. Feito em 35MM, o filme teve uma projeção maravilhosa. Zé Celso tinha acabado de retornar do exílio e fez sua primeira aparição pública. Ele foi convidado a fazer a apresentação de encerramento do festival.

Meu filme ganhou o prêmio de Melhor Filme do festival. No final, Zé Celso se aproximou de mim e disse: “Cara, vi o seu filme e estou impactado. Eu trouxe todas as latas de O Rei da Vela”. Quando ele fugiu do Brasil, levou latas de gravações em 35MM e 16MM para preservar os registros da ditadura. Tinha medo de que o governo autoritário destruísse todo aquele material. “Preciso terminar esse filme, preciso de ajuda”, clamou ele. Zé se apaixonou por O Rei da Vela incentivado por Renato Borghi, que leu a peça e apostou na montagem. Eu assisti no Rio, no Teatro João Caetano, a uma das últimas apresentações que foi documentada e aparece no filme.

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(Zé Celso/arquivo)

Eu morava no Rio de Janeiro, e ele em São Paulo. Tinha uma produtora que era considerada a mais simpática do Rio de Janeiro. Falei sobre ela e disse que não podia abandonar tudo no Rio, mas gostaria, sim, de ajudar em O Rei da Vela. A brincadeira levou um ano. “Só vou terminar este filme com você”, ele falava. Em 7 de setembro de 1979, fui para São Paulo. Eu fazia montagem em 35MM em moviola como um grande pianista toca piano. Pensei que terminaria em três meses e logo voltaria para pegar sol do Rio. Grande engano. Quando cheguei em São Paulo, percebi a situação em que estava.

Logo que cheguei, estourou a briga entre Sílvio Santos e o Teatro Oficina. Foi quando percebi a importância do Oficina. Era um teatro clássico com um palco italiano e uma cantina no subsolo. Muitas pessoas procuravam o Oficina em busca de trabalho ou para apresentar suas peças.

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A briga com Sílvio Santos cresceu, e eu não tive outra escolha a não ser me envolver. Houve manifestações nas ruas e no Palácio do Governo. Cantávamos uma canção de protesto que começava assim: “Que meus inimigos tenham longa vida para testemunhar nossa vitória e contar nossa história”. Essa canção foi criada por Edgar, um dos últimos músicos da Pauliceia, juntamente com Sandy Celeste. Isso é mostrado em ‘O Rei da Vela’.

O ano de 1979 passou. No final do ano, organizamos uma festa no ginásio do Ibirapuera que foi memorável. Convidamos artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gonzaguinha e Gal Costa. Arrecadamos dinheiro com a venda de ingressos, mas ainda não era suficiente para comprar o prédio do Oficina. Ficamos em uma situação complicada.

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(Zé Celso e Noilton Gomes/arquivo)

Logo que cheguei, estourou a briga entre Sílvio Santos e o Teatro Oficina. Foi quando percebi a importância do Oficina. Era um teatro clássico com um palco italiano e uma cantina no subsolo. Muitas pessoas procuravam o Oficina em busca de trabalho ou para apresentar suas peças.

Noilton Nunes
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(Zé Celso e Noilton Gomes/arquivo)

Zé Celso perguntou: “O que faremos com esse dinheiro?”. Sugeri que não ficássemos com ele na mão, pois ele acabaria logo. “O Oficina precisa se modernizar”, eu disse. “Vamos comprar equipamentos de vídeo para documentar todos esses movimentos.” Ele concordou, mas isso causou um escândalo, pois, em vez de comprar o teatro, compramos equipamentos de vídeo.

Houve um detalhe importante. Fernando Meirelles foi o grande responsável em nos introduzir nessa compra. Ele disse que ia ao Japão e compraria um equipamento, mas que se nós adiantássemos o dinheiro, ele compraria dois. Na época, a filmadora U-Matic era considerada a mais moderna. Nós topamos e adiantamos a grana. Ele foi para o Japão, voltou pelo Paraguai para poder entrar com o equipamento via terrestre, senão ele seria barrado. Tudo isso em 1980.

A partir daí, comecei a documentar tudo o que acontecia no Oficina. Usamos muito desse material na edição de O Rei da Vela. Levou todo o ano de 1980. No final dele, Celso Amorim, presidente da Embrafilme na época, veio de Rio para São Paulo para assistir ao filme na moviola. Ele viu e disse que precisávamos finalizá-lo.

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(Zé Celso/arquivo)

Propôs que fôssemos ao Rio para concluir a edição. Ele financiou o estúdio e gastamos muito na mixagem. Terminamos e realizamos a primeira exibição no cinema Ricamar, que agora é a Sala Baden Powell. Convidamos um pai de santo conhecido pelas celebridades da Globo, que fez um Bori impressionante. Foi uma ocasião inesquecível.

No final, todos aplaudiram. Nessa época, o filme já batia muito forte nas pessoas. Foi emocionante. Tínhamos contratado amigos, incluindo Luiz Carlos Saldanha, técnico de som que agora é um cineasta renomado, para realizar um espetáculo de fogos de artifício. Inicialmente, os fogos deveriam ser lançados na praia para criar um efeito visual na saída do cinema. No entanto, sem nos consultar, eles trouxeram para a calçada, e eram peças enormes.

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(Zé Celso/arquivo)
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O primeiro foguete acertou uma janela de um prédio em Copacabana. Causou um estrago enorme. Naquela altura, já não era possível interromper o show. O segundo foguete destrambelhou e atingiu os outros foguetes, causando um caos. O último foguete caiu à frente do cinema, lançando um jato de fogo. Naquela hora passava um táxi e a bola de fogo entrou e queimou todo o veículo por dentro. Eu e Zé Celso fomos levados à delegacia pela polícia, enquanto o motorista estava furioso, com razão. Ele ficou, mas tivemos que pagar pelo conserto do táxi.

No dia seguinte, a história saiu nos jornais. Esse foi o lançamento do filme. Mais tarde, fomos convidados para o Festival de Gramado, onde ganhamos três prêmios: Melhor Montagem, Melhor Trilha Sonora e Prêmio Especial do Júri. Saímos de lá muito contentes.

Naquela época, não havia tantos festivais e a seleção de filmes era diferente. O Festival de Berlim, por exemplo, enviava representantes ao Brasil. Cosme Alves Neto, da Cinemateca do Rio, sugeriu a eles que assistissem a O Rei da Vela. Eles vieram e nos convidaram para o festival. Em Berlim, no dia da exibição, as ruas estavam cobertas de neve. Pensei que ninguém iria comparecer. Quando chegamos ao local, o cinema estava lotado. Foi uma apoteose.

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(Zé Celso/arquivo)
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Após a exibição, o diretor do festival expressou interesse em manter uma cópia do filme na Alemanha. Ele ofereceu comprar a cópia e assegurou que ela seria preservada na Cinemateca de Berlim. Dito e feito, ela está lá até hoje. Concordamos e ele pagou 10 mil dólares. Ficamos extasiados.

Ele ainda nos arranjou uma exibição em Munique. O Zé precisou retornar ao Brasil, então eu fui sozinho. A sala de exibição era impressionante. Após a exibição, um diretor local anunciou que apresentaríamos o filme a um grupo de pessoas com deficiência visual. Assim que terminou, eles vieram me abraçar como se tivessem visto tudo. Ficaram encantados.

Nós fomos levando o filme para frente.

Assim, ‘O Rei da Vela’ começou a viajar por meio dessas exibições e se tornou um clássico. Recentemente, entrevistei Marcelo Drummond, que disse: “Vi esse filme e ele é uma obra eterna.” Cada exibição se torna um evento.

Aqueles que vivem da cultura no Brasil hoje precisam conhecer o Teatro Oficina. O estado de São Paulo está perdendo um dos maiores acontecimentos históricos da era moderna ao não transformar a praça ao redor do Oficina em um parque.

Com a morte de Zé, as exibições de ‘O Rei da Vela’ têm sido muito solicitadas. Fico muito comovido e, antes das projeções, sempre canto a canção de luta do Oficina. No apartamento dele, que pegou fogo, Zé guardava muitos cadernos com anotações do que acontecia durante o processo de montagem e as lutas para manter o Oficina aberto. Mas não sei se esses cadernos foram retirados de lá.

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(Zé Celso/arquivo)
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