Dom Quixote, o mito do herói e a sátira de Miguel de Cervantes
Apontada como fundadora do romance e escrita em estilo propositalmente simples, obra é uma das mais comoventes e engraçadas de todos os tempos
Antes de ser batizado com o título de Dom Quixote de la Mancha, o modesto fidalgo rural Alonso Quijano gostava de caçar em sua propriedade, comia lentilhas às sextas-feiras e vestia calças de veludo para ir a festas. Era um homem comum, na casa dos 50 anos, “rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rosto, madrugador”. Seu principal passatempo, que por vezes lhe consumia dias e noites inteiros, era ler livros de cavalaria. Foi assim, página a página, envolto por aventuras, desafios e amores que “se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo”.
Desajuizado, montou em um pangaré, Rocinante, catou umas armas que pertenceram a seus bisavôs, remendando-as com papelão, e deu adeus à ama, à sobrinha e aos dois melhores amigos — um vigário e um barbeiro —, com quem convivera até então. Autoproclamado cavaleiro andante, saiu galopando em busca de aventuras. Louco e livre.
Foi com essa história, que tudo tem de simples, encantadora e divertida, que Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) construiu aquele que é considerado pela crítica como o primeiro dos romances e Fiódor Dostoiévski classificou como a peça “mais profunda e poderosa” da literatura.
O livro, que muitos debates e interpretações suscitou ao longo da história, foi escrito quando Cervantes já andava na faixa dos 50 anos, tendo amargado algumas desventuras e desilusões. Entre elas podem- se citar uma ferida de guerra, que lhe inutilizou o braço esquerdo, o cativeiro de cinco anos como escravo de piratas argelinos e três prisões sob a acusação de desvio de verbas nos diversos empregos públicos menores que ocupou na vida. O espanhol havia tentado o sucesso na poesia, no teatro e com seu primeiro livro, o romance pastoril Galateia, sem, no entanto, alcançar notoriedade nem subsistência.
Foi só com a publicação da primeira parte de O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, em 1605 — a segunda sairia somente dez anos depois, em 1615 — que alcançaria o Olimpo literário. À parte todas as possíveis leituras, o romance é, sobretudo, um pastiche das novelas de cavalaria medievais, que, na época de Cervantes, eram bastante apreciadas. As histórias fabulares de castelos, heróis e amores platônicos dominavam o imaginário popular, sendo difundidas não só por meio de livros, mas também oralmente.
O que Cervantes fez foi humanizar o picaresco, unindo poesia e prosa numa nova forma narrativa. Em grande medida, a sátira de Cervantes às novelas de cavalaria representou uma crítica ao antigo mundo feudal que ali se representava. Impunha-se, já então, uma nova ordem moderna, mercantilista e urbana a um homem que — iluminado pelo conhecimento — era obrigado a atentar para as contradições do meio social.
Em Dom Quixote, o espanhol cercou de ironia o mito do herói, transformando-o em um velho louco a combater moinhos de vento e ovelhas acreditando que pugnava com gigantes e exércitos. Cervantes propôs, sobretudo, a grande questão que intriga a ficção moderna: quais os limites entre fantasia e realidade? Essa questão encontra um contraponto na dicotomia entre Quixote e Sancho Pança, seu escudeiro e antigo vizinho, que abandonou a vida de camponês com a promessa de que se tornaria “governador de uma ilha”.
Pança é limitado e pragmático, enquanto Quixote é sonhador e, a seu modo, sábio. Apesar disso, conforme disse o crítico Erich Auerbach, “a experiência da personalidade de Dom Quixote não é captada por ninguém de forma tão total como o faz Sancho Pança”.
Por sua vez, para Quixote, Sancho constitui a um tempo um consolo e um antagonista, “um próximo que se afirma sobre ele e impede que a insensatez o prenda como numa gaiola isolante”. Dom Quixote é uma obra aberta. Cada período histórico a interpretou com base em seus referenciais, julgando ver na loucura do fidalgo Alonso Quijano tanto a tragédia quanto a comédia. Cervantes dotou seu romance de uma linguagem acessível, no espírito do “escribo como hablo” (escrevo como falo), influenciando o imaginário literário e social do que viria depois.
Populares, as novelas de cavalaria tentavam transmitir valores exemplares
A prosa medieval das novelas de cavalaria surgiu entre os séculos 14 e 15. Inspirada em fatos e figuras da história antiga, na mitologia e em lendas célticas — do rei Artur, dos amores de Tristão e Isolda, do Santo Graal —, traz motivos sobrenaturais como histórias de bruxarias e encantamentos.
É um gênero extremamente livre em que convergem estilos diferentes: a aventura heróica da poesia épica, o idealismo amo- roso da lírica cortês, o realismo embrutecido da narrativa picaresca e a grandiloquência dos discursos filosóficos. É comum a intercalação de versos que quebram a sequência narrativa. A figura do herói é altamente individualizada e idealizada.
Os cavaleiros substituíram os heróis clássicos no imaginário literário medieval, encarnando os valores sociais desejados e representando simbolicamente o triunfo da justiça sobre a violência e do amor puro contra a falsidade. Entre as principais novelas de cavalaria estão as narrativas francesas do ciclo arturiano e os escritos em torno da figura do cavaleiro Amadis de Gaula.
Este texto faz parte da coleção “100 obras essenciais da literatura mundial” e foi originalmente publicado em 2009.