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OLÁ,

125 anos de Dom Casmurro: o enigma que ainda desafia o Brasil (e as Inteligências Artificiais)

Publicado em 1899, o clássico de Machado de Assis permanece atual ao expor as fissuras entre amor e obsessão, verdade e manipulação

Por Beatriz Magalhães
Atualizado em 6 mar 2025, 21h52 - Publicado em 26 fev 2025, 15h15
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 (Marc Ferrez/domínio público)
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No final do século XIX, o Brasil vivia um período de intensas transformações. A abolição da escravidão, a Proclamação da República e a efervescência cultural do Rio de Janeiro criavam um cenário de contradições — um país que tentava se reinventar, mas carregava as marcas de seu passado colonial. Foi nesse contexto que Machado de Assis publicou Dom Casmurro (1899), obra que capturou não apenas o espírito de uma época, mas as complexidades eternas do coração humano.

Com uma escrita afiada e irônica, Machado rompeu com os romances românticos de seu tempo. Em vez de heróis idealizados, apresentou personagens cheios de falhas, dúvidas e ambiguidades. Bentinho, o narrador, não é um cavaleiro nobre, mas um homem amargurado, obcecado por uma pergunta que nunca se cala: Capitu traiu-me? A resposta, no entanto, nunca vem. E é nesse silêncio que mora a genialidade do autor.

A narrativa que ninguém confia (mas todos discutem)

A história é contada por Bentinho, já idoso, relembrando seu passado com ares de quem tenta se convencer de suas próprias versões. Seu ciúme, alimentado por memórias truncadas e detalhes suspeitos — como o olhar de Capitu para Escobar durante o velório ou a semelhança física entre Ezequiel e o suposto rival —, constrói uma teia de suspeitas. Mas e se tudo não passar de projeção?

Machado de Assis joga com a ideia de que a verdade é um espelho quebrado: cada fragmento reflete uma parte de quem a segura. Bentinho, marcado por traumas (como o abandono no seminário) e inseguranças, narra os fatos como quem busca justificar sua própria solidão.

Capitu, por outro lado, é retratada como uma mulher que desafia os padrões da época: inteligente, determinada e dona de um olhar que “pegava, arrastava e dominava”, como descreve o narrador. Sua força, no entanto, é vista como ameaça — um sinal de que, talvez, o verdadeiro pecado de Capitu não tenha sido a traição, mas o fato de existir como uma mulher complexa em um mundo que preferia simplificá-la.

 

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Mariana Ximenes e Vladimir Brichta interpretam Capitu e Bentinho em longa baseado na história do livro “Dom Casmurro”, de Machado de Assis (Divulgação/divulgação)

Capitu: entre o mito e a carne

A personagem mais discutida da literatura brasileira não é uma vilã, nem uma santa. Capitu é humana — demasiado humana. Enquanto Bentinho se esconde no seminário ou na passividade do casamento, ela age: resolve conflitos familiares, administra a casa após a falência do marido e, não por acaso, é comparada a figuras mitológicas, como as sereias que encantam e devoram. Seus “olhos de ressaca”, descritos como capazes de “arrastar para o fundo”, simbolizam justamente o que a sociedade do século XIX temia: a força feminina que não cabe em rótulos.

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A ambiguidade de sua figura levanta questões que ultrapassam o livro. Seria ela uma vítima da narrativa distorcida de Bentinho? Ou uma estrategista que desafiou as regras de seu tempo? A dúvida não é casual. Machado constrói a tensão para criticar uma elite que valoriza mais as aparências que a verdade. Afinal, em um mundo onde maridos traem, pessoas escravizadas são chicoteadas e mulheres são silenciadas, quem está realmente em posição de julgar Capitu?

Bentinho: O Narrador que (Quase) Engana o Leitor

Casmurro (teimoso, na gíria carioca da época) não é um nome aleatório. Bentinho narra sua história como quem tenta controlar o passado, mas suas palavras escorregam em contradições. Ele mesmo admite, em certa altura, que “a memória é uma ilusão”. Suas descrições de Capitu oscilam entre a devoção e o ódio, revelando mais sobre sua própria insegurança que sobre a esposa.

O ciúme de Bentinho, por exemplo, pode ser lido como medo de perder o controle — algo que ecoa a crise de identidade de um Brasil recém-saído da monarquia. Seu drama pessoal reflete, em microescala, as angústias de uma nação que ainda não sabia quem era.

Nuances e interpretações

Para ilustrar a persistência e a complexidade desse debate, reunimos prints de conversas realizadas com diferentes modelos de inteligência artificial, questionando se Capitu traiu Bentinho. Curiosamente, a tecnologia repete o mesmo dilema dos leitores de 1899: diante da ambiguidade, cada um projeta suas certezas.

Isso prova que Dom Casmurro continua vivo. Adaptado para o teatro, o cinema e até memes da internet, o romance transcende seu tempo porque fala de algo universal: o medo de não ser amado, a fragilidade da verdade e a facilidade com que destruímos histórias — e pessoas — com nossas inseguranças.

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ChatGPT

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Resposta do ChatGPT sobre a pergunta: “Capitu traiu Bentinho?” (Open AI/reprodução)

 

Bard Google

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Resposta do Bard Google sobre a pergunta: “Capitu traiu Bentinho?” (Redação/Redação Bravo!)

 

DeepSeek IA

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Resposta do DeepSeek sobre a pergunta: “Capitu traiu Bentinho?” (Redação/Redação Bravo!)

Por que reler Machado em 2025?

A obra não é sobre um triângulo amoroso, mas sobre como narramos nossa própria vida. Bentinho, ao revisitar o passado, escolhe detalhes que justificam sua amargura — assim como fazemos nas redes sociais, nos diálogos cotidianos, nas memórias que editamos para parecer coerentes. Capitu, por sua vez, representa tudo que não controlamos: o desejo alheio, a independência feminina, o mistério de quem amamos.

Machado de Assis não quis dar respostas. Preferiu nos deixar com perguntas que ecoam até hoje: Podemos confiar em quem narra? Até que ponto nossas certezas são apenas medos disfarçados? E, principalmente: Quem tem direito de contar a própria história?

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Numa era de polarizações e verdades absolutas, reler Dom Casmurro é um exercício de humildade. Afinal, como escreveu o autor, “a vida é um rasgão… é uma página rasgada de um livro”. E talvez seja justamente nas rasuras — nas partes que não entendemos — que mora a verdadeira literatura.

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Machado de Assis aos 25 anos (Joaquim Insley Pacheco / ABL/domínio público)

 

 

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