180 anos de Eça de Queiroz: O que seus livros têm a dizer sobre o mundo de hoje?
O escritor português segue atual ao revelar, com ironia e precisão, as hipocrisias e contradições da sociedade

Advogado, diplomata e um dos maiores romancistas da literatura em língua portuguesa, Eça de Queiroz (1845 – 1900) completa 180 anos em 2025. Filho de pai brasileiro e mãe portuguesa, nasceu na cidade de Póvoa de Varzim, em Portugal, e, por mais surpreendente que possa parecer aos leitores brasileiros, nunca visitou o Brasil. Ainda assim, suas obras atravessaram o Atlântico e se tornaram leitura fundamental nas escolas e na formação cultural de gerações no país.
Considerado até hoje o maior autor realista da literatura portuguesa, Eça construiu uma obra que oferece um retrato agudo, sarcástico e profundamente crítico da sociedade de seu tempo e, de certa forma, da nossa também. Seus romances abordam temas que permanecem dolorosamente atuais: desigualdade social, hipocrisia, corrupção, opressão das mulheres, moralismo de fachada e os abusos de poder das elites e das instituições, especialmente da Igreja e da burguesia.
É autor de livros incontornáveis, como Os Maias, considerado sua obra-prima; O Primo Basílio, uma crítica feroz à classe média lisboeta; e O Crime do Padre Amaro, que escandalizou à época por questionar o papel da Igreja e seus dogmas.
Seu pai, José Maria Teixeira de Queiroz, era juiz, poeta e amigo do escritor Camilo Castelo Branco, outro nome central da literatura portuguesa. Eça formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, em 1866, onde teve contato com movimentos intelectuais que moldaram seu pensamento. Logo após, mergulhou no jornalismo e começou a lapidar sua escrita afiada. Colaborou com importantes periódicos, como Renascença, A Imprensa e Ribaltas e Gambiarras, exercendo o ofício de cronista com a mesma precisão crítica que marcaria seus romances.
Nos anos 1870, ingressou na carreira diplomática, o que o levou a viver em cidades como Havana, Newcastle, Bristol e Paris, experiências que expandiram sua visão de mundo e enriqueceram seu olhar sobre as contradições da sociedade europeia. Foi também nesse período que publicou seu primeiro romance, O Crime do Padre Amaro (1875), marco inaugural do realismo em Portugal.
A obra de Eça permanece essencial não apenas pela qualidade literária, mas porque continua sendo um espelho incômodo da sociedade, com seus vícios, desigualdades e contradições
Mas afinal, por que lê-lo em 2025?
Retrato de classes
Seus livros oferecem não apenas leituras prazerosas, mas também uma observação aguçada dos costumes, das tensões de classe e das contradições humanas em sua época. Eça foi capaz de equilibrar humor mordaz e lirismo, trazendo personagens complexos, falhas humanas e dilemas éticos que continuam ressoando e fazendo sentido até hoje.
Transitando entre estilos
Ler Eça é também entender melhor o período de transição do século XIX, entre o Romantismo e o Realismo, perceber como certos estilos literários influenciam a literatura até hoje.
Eça foi profundamente influenciado pelo Realismo francês, especialmente pela obra de Gustave Flaubert, de quem herdou o rigor descritivo, o olhar clínico sobre os comportamentos e as relações sociais, e a recusa a qualquer idealização. Também dialogou com autores naturalistas como Émile Zola, sobretudo em sua fase mais crítica, marcada pela análise das condições materiais, sociais e biológicas que moldam os indivíduos.
Seu estilo é elegante, mas também marcado profundamente pela ironia, elemento que influenciou a literatura brasileira. E conseguia equilibrar lirismo e sarcasmo, beleza e crítica. Suas descrições constroem, camada a camada, o cenário social, psicológico e moral dos personagens.
Reflexões sobre religião, moral e poder
Grande parte da obra de Eça de Queiroz está ancorada na crítica às estruturas que moldam a vida em sociedade, sobretudo no que diz respeito à religião, à moral e ao exercício do poder. Suas narrativas revelam como dogmas religiosos, aparências de virtude e códigos de conduta social muitas vezes servem mais para controlar e oprimir do que para orientar eticamente.
No romance O Crime do Padre Amaro, por exemplo, ele desnuda a hipocrisia de uma Igreja que, em vez de ser espaço de acolhimento, amor e espiritualidade, se torna palco de interesses pessoais, repressão dos desejos e manutenção do status quo.
Formação crítica
Mesmo tratando de questões complexas e, muitas vezes, desconfortáveis, seus livros fluem com leveza, mantendo o leitor entretido tanto pela beleza da linguagem quanto pela sagacidade de suas observações.
Essa combinação rara faz de Eça um mestre na formação de leitores críticos. Suas obras não se limitam a contar boas histórias; elas convidam a observar o mundo com mais atenção, a desconfiar das aparências, a questionar normas, instituições e discursos que naturalizam injustiças. Ler Eça, portanto, ainda é um exercício de reflexão sobre a sociedade e sobre a própria condição humana.