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A narrativa feminista de “História para matar a mulher boa”

Em seu romance de estreia, a escritora paranaense levanta a discussão das violências do patriarcado na construção e desconstrução de um ideal feminino

Por Giulia Peruzzo
10 abr 2024, 09h00

Eu nunca estive em Tróia, mas preciso falar sobre Helena. Enquanto lia A história para matar a mulher boa, publicado pela Editora Nós, uma temática pungente suscitou em mim. Sinto estar presa em um ciclo sem fim, falando mais do mesmo que já foi falado tantas outras vezes sobre a objetificação feminina e a sociedade patriarcal. Ao mesmo tempo, entendo que essa discussão está longe de ser findada, mas carece de uma escuta sincera e profunda. Escrever e ler sobre experiências femininas talvez seja a chave para que possamos parar de correr em círculos e encontrarmos um novo caminho. E é por isso que, apesar de incomodada, escrevo essa resenha. 

Quando pensamos no significado de ser uma mulher boa, várias possibilidades podem surgir. Em uma sociedade patriarcal, esse termo exala submissão e repreensão. A mulher boa, ideal, é domada, moldada e obediente, censurada de seu prazer sexual, de suas vontades e de sua voz. A mulher boa é geralmente idealizada por um homem, para satisfazer única e exclusivamente as suas próprias vontades. A história de Helena nos permite acompanhar a construção das amarras que o feminino sofre diariamente, com a esperança de liberdade que o título carrega. 

“A menina começou a entender, já nessa época, que havia ali dois tipos classificáveis de mulheres – as santas, que se casavam, cuidavam da casa, acreditavam em Deus, tornavam-se mães e não ousavam contestar nenhuma regra criada pelo mundo dos homens; e as putas, aquelas que, mesmo sem saber, protestavam com o próprio corpo contra as versões ensimesmadas do mundo.”

(p. 32)

Como mulher, mesmo que carregada de privilégios, a leitura me trouxe muitas angústias. Quando retratadas as situações de violência vividas pelas personagens mulheres, me identificava com as dores da objetificação e violação. A dificuldade de encarar os fantasmas da realidade costuma me afastar de uma obra. Mas, além do envolvimento com a escrita da autora, a compreensão da importância dessa narrativa me impeliu a continuar e, ao passo que Helena se fortalecia, eu me fortalecia com ela. 

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Uma parte vital da experiência de ser mulher é entrar em contato com a sua sexualidade, uma relação normalmente repleta de dualidades. Helena, durante toda a sua vida, busca explorar e buscar o prazer sexual, e por muitas vezes encara situações de violação que a fizeram acreditar que o que ela procurava era inalcançável. Não só ela, mas acompanhamos diversas mulheres de sua vida que estão presas na mesma estrutura de violência, traição e desrespeito, que as levam a acreditar que esse é o jeito como as coisas devem ser. A figura feminina é constantemente alvo de sexualização, mas  nunca para o seu próprio prazer. 

“‘Você faz o café da manhã dele? O que você cozinha para ele durante a semana? Tem que pegar ele pela boca, mulher. Pelas duas.’ Ria. ‘Que tipo de calcinha você usa? Tem que ser rendada. Nada de usar calçola de mãe. Eles são visuais e gostam de trocar bastante de posição.’”

(p. 185)

Todas as mulheres têm em si um pouco de Helena. Assim como a Helena de Homero, as de Bernadette Mayer, as de Manoel Carlos, a Helena de Ana, eu e você, temos diferentes trajetórias, mas marcadas pela experiência do patriarcado e a violência troiana em uma ótica masculina que usa as mulheres como um objeto à seu favor. Mesmo não tendo conhecido Tróia, como bem proclama Luiza Romão, a vivemos incessantemente. O que é descrito nesta obra, a angústia que senti ao ler as passagens, apenas uma mulher é capaz de entender.

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“Ao longo da vida, por ter tentado algumas vezes me comunicar e ter sido agredida, toda vez que abria a boca para dizer algo, algumas lágrimas caíam, como se eu fosse uma criança com medo de punição.”

(p. 248)

A virada de chave que Ana Johann brilhantemente faz é a retomada das rédeas da própria voz de Helena. O título explicitamente mostra como o processo de narrar a si mesma e a própria vida pode ressignificar sentidos e provocar transformações. Freud, com a psicanálise, já dizia sobre a importância da linguagem para mediar a intersubjetividade. Além dele, há outras vertentes da psicologia que contribuem com a ideia da narrativa para a ressignificação, assumindo o ato de narrar como entrar em contato com si, conscientizar-se e, então, ressignificar sua história. A literatura se torna um meio fundamental para que uma pessoa se torne ela mesma pela validação de suas experiências através da narrativa, possibilitando a reflexão e a tomada de novas escolhas.

“Ser a melhor pessoa do mundo para quem? Uma descoberta de uma pergunta seguida de novas inquietações. Nesse momento entendi que havia algo imprescindível para eu continuar existindo e isso eu não podia mais esquecer. Precisava continuar tendo experiências e descobrindo palavras novas porque simular é do animal e é do homem, mas ter vocabulário para além do perigo, alimentação e reprodução é só do humano e precisa ser feito por mulheres.”

(p. 254)
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Ao (re)contar tudo o que viveu para construir a sua mulher boa, Helena dá voz às repressões e opressões vividas, libertando-as e reescrevendo sua história. Posso dizer que a experiência de prosseguir com a leitura, mesmo com um nó na garganta, também me possibilitou encarar enfrentamentos, de alguma forma matando uma parte da mulher boa que me habita.

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