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OLÁ,

“A Segunda Mãe”: com narradora surpreendente, livro questiona certezas sociais

Romance de estreia de Karin Hueck trata da opressão entre aparente iguais em uma sociedade sem homens

Por Luisa Destri
14 jun 2025, 07h00
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A autora Karin Hueck (Renato Parada / Todavia/divulgação)
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Carta-resenha à autora de A segunda mãe (Todavia, 2023)

Ká,

Assim que comecei a ler o seu livro, que vem gerando arrebatamento entre tanta gente, pensei na grande leitora que você sempre foi. 

As páginas de abertura são reveladoras de muitas das qualidades do romance, a começar pela procura das palavras justas, que, dispostas em frases sempre bem construídas, apresentam a protagonista, Madalena, de maneira fascinante. Não é só porque costuram o conflito conjugal com a ameaça de chuva – “o tempo virando presságio” –, correlação que poderia parecer gasta se não fosse tão bem realizada. O grande trunfo está, acho eu, na constituição do ponto de vista, que dá dignidade aos dilemas da protagonista mesmo quando baseados em videotutoriais sobre bolos de unicórnios.

Na contramão da tendência literária predominantemente, seu narrador é uma terceira pessoa onisciente. Isso, associado aos temas femininos do romance, basta para criar um deslocamento, pois não se trata nem de edificar uma trajetória individual, como fazem hoje muitos livros sobre mulheres, nem de produzir distanciamento a partir de uma narradora “canalha” (como acontece em A pediatra).

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Esse deslocamento é, para mim, a marca não só de uma diferença, mas de uma qualidade. A matéria do texto são experiências que reconheço como próximas a nós – as insatisfações conjugais, a visão da maternidade, a relação com o trabalho. 

(Devo dizer, aliás, que fiquei emocionada no capítulo sobre o passeio no zoológico, talvez o retrato mais profundo de Madalena como mãe. Foi justamente no zoológico, quando pela primeira vez passeamos juntas como mães, que você me contou sobre o livro.)

Madalena poderia facilmente pertencer ao nosso círculo de amizades e passar despercebida. A finalidade do romance, no entanto, não é a vida de mulheres como nós – e é isso que o torna tão interessante.

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A finalidade tampouco é a sociedade distópica, revelada lentamente pelo narrador, mas as questões subjetivas nascidas do imbricamento entre a existência individual e a configuração social. Seu olhar delicado para os sentimentos mais diversos (o amor, o desejo, a inveja, a hesitação, a insegurança) os reconhece como produtos de relações e reações. Portanto, como algo ao mesmo tempo individual e coletivo.

Assim, os afetos de Madalena, tão contemporâneos, passam a articular essas duas dimensões, colocando em debate o controle dos afetos – sob o mesmo recorte das questões de gênero que hoje ocupam a centralidade das discussões públicas. Mas, como se trata de literatura, você não “traz verdades”, antes questiona certezas, abre questões, desfaz caminhos. 

Tenho muitas razões para adorar seu livro. Espero que estes comentários organizem a principal delas, que é o modo como o romance enfrenta as questões do momento. Espero ainda passarmos muito tempo conversando a respeito – até o dia em que os filhos estejam crescidos, as questões sejam outras, e o momento e a literatura também. 

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Vida longa a Madalena!

Um beijo e toda a minha amizade,

Luisa

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*Luisa Destri é professora, crítica literária e coautora de Eu e não outra – a vida intensa de Hilda Hilst.

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