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Alba de Céspedes: uma voz entre mundos

Neste mês, a Companhia das Letras lança o romance "Na voz dela", de 1949, da ítalo-cubana recém descoberta na literatura latino-americana

Por Veronica Botelho
Atualizado em 22 abr 2025, 12h09 - Publicado em 5 mar 2025, 07h00
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A escritora italiana, Alba de Céspedes (Site New Italian books/reprodução)
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Em março, a Companhia das Letras lança “Na voz dela”, tradução de “Dalla parte di lei”, romance que Alba de Céspedes publicou em 1949. O título original, que significa literalmente “Do lado dela”, já indica a perspectiva feminina que permeia toda a obra, a versão dela.

O romance nos apresenta Alessandra, uma mulher que carrega desde o nascimento não apenas seu nome, mas também a sombra do irmão morto, Alessandro – presença que ela evoca para justificar muitas de suas ações, como se seu corpo fosse habitado por ele. Ambientada na  Segunda Guerra Mundial, a narrativa revela feridas ainda latentes: a incomunicabilidade, a invisibilidade dos desejos e o silenciamento das vozes femininas.

Ao longo da história, Alessandra representa a persistente luta feminina por reconhecimento e escuta, numa tentativa incansável de fazer-se compreender, de explicar seus sentimentos e desejos, como quem pacientemente tenta ensinar uma nova língua a alguém que se recusa a aprendê-la. 

Sua história transcende o individual para tornar-se um manifesto da resistência feminina contra o silenciamento sistemático, culminando num ato que ecoa como um grito de redenção coletiva. 

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Alba de Cespédes na década de 50 (Wikipedia Commons/domínio público)

Em “La bambolona” (“A marionete”*, 1969), por exemplo, De Céspedes disseca as relações de poder entre homens e mulheres através do advogado Giulio Broggini, um homem de quase 40 anos que desenvolve uma obsessão por Ivana, uma jovem de 17 anos. Com frieza calculada, ele planeja sua sedução e posterior abandono, usando seu prestígio social e poder econômico como instrumentos de manipulação.

O romance, posteriormente adaptado para o cinema por Franco Giraldi, alterna momentos de tensão com cenas de ironia cortante – em minha opinião, o livro contém uma das cenas eróticas mais elegantes e cômicas que já li. Sob esta aparente leveza, porém, a narrativa expõe de maneira crua a mentalidade machista, seus cálculos e suas justificativas – temas que ecoam dolorosamente nos dias atuais.

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De Céspedes desvenda como o status social e econômico podem comprar reputações e silêncios. Embora tratando de situações distintas, o recente depoimento da jornalista e escritora Vanessa Bárbara no podcast da Rádio Novelo evidencia como esses mesmos mecanismos de dominação masculina permanecem presentes, apenas mascarados sob novas formas, onde a influência e o poder continuam servindo como instrumentos de coerção. 

CPF na nota?

Fui apresentada à Alba de Céspedes pela minha livreira de Greve in Chianti – município na Toscana, região da Itália onde morei por 7 anos. Pedi alguma novela que tivesse sido escrita na época do fascismo, e ela, sem pensar duas vezes, me aconselhou “Dalla parte di lei”. Explicou que a tinha lido quando era adolescente nos anos 1980 e que foi o livro que mais marcou. Graças à Catarina, descobri uma das vozes mais potentes da literatura italiana do século XX. 

Nascida em Roma no dia 11 de março de 1911, Alba Carla Laurita de Céspedes y Bertini era herdeira de dois mundos: filha do diplomata cubano Carlos Manuel de Céspedes y de Quesada e da italiana Laura Bertini. Do lado paterno, era neta de Carlos Manuel de Céspedes, herói da independência cubana e conhecido como o “Pai da Pátria”.

Seu pai também foi presidente de Cuba por um breve período em 1933. Do lado materno, Laura Bertini e sua tia Maria, filhas de um renomado médico em Roma, ofereceram o exemplo de mulheres que desafiavam os padrões de sua época — divorciadas, participavam de encontros espíritas e rejeitavam convenções religiosas. Curiosamente, as poucas informações que encontramos sobre elas destacam apenas a beleza e o fato de não frequentarem a igreja. 

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A trajetória intelectual de Alba é ainda mais surpreendente quando descobrimos que ela nunca frequentou uma escola formal. Em uma entrevista à RAI, nos anos 1980, revelou, com certa melancolia, a ausência de um simples certificado escolar e o desejo não realizado de brincar com outras crianças. Sua educação ocorreu em casa e durante as viagens, com tutoras particulares.

Quando tinha três anos, seus pais se mudaram de Roma, deixando-a aos cuidados das tias. Passava os verões na França, com sua tia Gloria, irmã gêmea de seu pai, e o resto do ano na Itália, com sua tia Maria. Encontrava os pais durante viagens que realizavam, que era um dos motivos para ela não ter frequentado a escola; o outro era que o pai não estava de acordo com o que era ensinado e queria garantir que ela aprendesse sobre a história e as tradições de Cuba. 

Nessa mesma entrevista, quando lhe foi perguntado sobre uma mulher que a marcou, ela respondeu sem pestanejar: eu. E daqui já se pode entender por que o seu caráter por muitos foi considerado como complicado e imprevisível. 

A vocação literária de Alba surgiu cedo: aos 6 anos escreveu seu primeiro poema, num caderno que sua Tia Maria lhe deu de presente após surpreendê-la tentando “escrever” numa folha que encontrou na rua. Temendo uma repreensão ao mostrá-lo ao pai, prometeu que não escreveria mais. Para sua surpresa, ele a incentivou a continuar e respondeu com um comovente “pobrecita” — palavra que ela só compreenderia mais tarde, reconhecendo o peso da vida de escritora, definida por eternas reflexões. 

Além de escritora, foi roteirista, ensaísta, tradutora e poeta, e teve obras adaptadas para o cinema, televisão e teatro. Durante os anos em que a arte fazia parte das Olimpíadas (1912 a 1948), Alba participou da edição de 1932 com o texto “Io, Padre” (“Eu, Pai”). O seu maior objetivo era demonstrar que podia viver da escrita, porque seus pais, que já estavam em Cuba, a pressionavam para voltar para “su patria”. 

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A sua própria existência era atravessada por contradições. Alba só conheceu Cuba quando tinha 13 anos, e mesmo assim se sentiu em casa, mas anos mais tarde ela também se sentiria em casa cada vez que ia para Sestriere, na região do Piemonte na Itália, na sua casa de Roma, e em Paris. 

Apesar de ter nascido dentro de um contexto privilegiado na Itália e de ser filha de mãe italiana, Alba só conseguiu a cidadania quando se casou, aos 15 anos, com o conde Giuseppe Antamoro, em Paris. Isso porque a Lei de 1912 impedia mulheres italianas de transmitirem sua cidadania aos filhos e determinava que, ao se casarem com estrangeiros, perdessem automaticamente a cidadania. Essa discriminação de gênero vigorou até a Lei n. 123 de 1983, sendo plenamente corrigida apenas em 1992. 

Desse primeiro casamento, prematuro e por amor, Alba teve seu único filho aos 17 anos. Pouco depois percebeu que a vida de casada lhe ficava apertada. Além de que o seu marido não  entendia que ela quisesse escrever. Aproveitou uma viagem dele, pegou a criança e se mudou para uma pensão que recebia jovens universitárias católicas. Se divorciou com vinte e um anos, coincidindo com o início da sua carreira literária.

O tempo que passou na pensão lhe serviu de inspiração para o seu primeiro romance: Nessuno torna indietro (Ninguém volta atrás*) (1938), que narra a vida de oito mulheres jovens, que convivem numa pensão católica para estudantes em Roma, cada uma enfrentando os desafios de entrar na vida adulta. Elas compartilham conflitos, anseios e desejos por futuros diferentes, enquanto lidam com as expectativas impostas pela sociedade da época.

Entre os diversos conflitos marcantes das personagens, destaca-se um retrato não romantizado da maternidade na história de Emmanuela, que esconde de todas as amigas que tem uma filha e aprende a amá-la aos poucos, desafiando a idealização do amor materno instantâneo. Há também a história de Xénia, que decide não querer ser mãe e que faz escolhas audazes, inclusive ainda hoje, para não ter que voltar para sua casa. No romance, ela também insere expressões e diálogos em espanhol, criando uma teia linguística fascinante que reflete a Guerra Civil Espanhola como uma advertência para a Itália fascista. 

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O romance rendeu-lhe o prêmio Viareggio de literatura em 1938, que posteriormente lhe foi retirado por questões políticas. Essa experiência marcou profundamente de Céspedes, que nunca mais se interessou por concursos literários, defendendo que a literatura deveria permanecer imune a manipulações políticas. A obra também foi alvo da censura fascista, que tentou retirá-la de circulação. No entanto, Arnoldo Mondadori, amigo de Alba, conseguiu driblar as autoridades alegando não haver novas edições – uma informação falsa que permitiu que o livro continuasse circulando. A obra tornou-se um fenômeno de vendas e foi traduzida para mais de 20 línguas. 

O seu segundo casamento foi com o diplomata Francesco Bonouis. Embora tenha mantido Roma como sua base principal, onde se dedicava à escrita, Alba acompanhou o marido em missões diplomáticas em Washington, Moscou, Chipre. Permaneceram amigos até a morte dele, mas o relacionamento também acabou. Para ela a escrita ocupava o primeiro lugar. Sentia como se estivesse perdendo tempo quando o acompanhava nos eventos, nas festas. E se inicialmente aceitou a ideia de não ter um filho, por acreditar que não poderia dedicar-se ao seu trabalho, acabou renunciando. De Céspedes passou os últimos anos em Paris, onde viveu até sua morte em 1997. 

A decisão de se mudar para a França ocorreu em um momento em que se sentia cada vez mais distante do cenário literário de seu país natal, onde havia sido injustamente rotulada como uma escritora de “romances rosa” – histórias românticas com final feliz, voltadas para um público feminino. Seus leitores, no entanto, compreendem bem seu descontentamento com tal rótulo: longe de oferecerem finais felizes, suas obras são narrativas que escancaram as facetas da sociedade italiana nos períodos pré, durante e pós-fascismo. 

A noite era seu momento predileto tanto para escrever quanto para conceder entrevistas, apreciando o silêncio que pairava sobre as horas escuras. Preferia dormir durante o dia, e com orgulho relatava que até seu filho havia aprendido a não interrompê-la durante seu processo criativo. As tardes eram reservadas para tarefas que considerava mais burocráticas, como responder cartas e revisar seus escritos – para de Céspedes, o estilo era elemento primordial na literatura, chegando a ser uma obsessão. 

Essa preferência pela noite e pelo isolamento parece refletir alguém que, tendo vivido intensamente e experimentado múltiplas realidades desde jovem, buscava agora um distanciamento das interações sociais. Em La bambolona, encontro ecos dessa sensação nas palavras de um personagem secundário – Andrea – durante um diálogo com Broggini: “…notei que as pessoas que admiramos e que alcançaram um resultado positivo em qualquer área, ou até mesmo a fama, nunca são verdadeiramente simpáticas; são respeitadas, procuradas – temidas, talvez – mas é raro que alguém as ache simpáticas. Para ser,” explicou com certo desconforto “é preciso bajular os outros, suportar a mediocridade, não se incomodar com ela. Na verdade, é preciso fingir apreciá-los por suas limitações. É preciso nunca julgar, não ter opiniões que contrariem as correntes e muito menos defendê-las quando alguém quer nos impor as suas. Então acrescentou: ‘É preciso rir de suas historinhas obscenas, escatológicas, e de qualquer forma tolas.'” *

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Seu primeiro livro, L’anima degli altri (A alma dos outros*) (1935), é uma coleção de 18 contos que já demonstram a força de sua narrativa. Com coragem, retrata a sociedade, as relações humanas e as traições amorosas com lucidez, especialmente considerando o período fascista em que foi publicado. 

Entre 1952 e 1958, manteve uma rubrica chamada “Dalla parte di lei” na revista Epoca, onde respondia às cartas dos leitores, que depois foi transformada em “Diario di una scrittrice” (Diário de uma escritora*) (1958-1960). Um dado que ela gostava de frisar é que cerca de 93% das cartas recebidas por ela na revista eram de leitores homens, contrapondo a injusta rotulação  de sua obra como literatura comercial voltada ao público feminino.

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Em sua casa, nos anos 1940 (Reprodução/reprodução)

O compromisso de Alba com a liberdade ia além das páginas de seus livros. Apesar de ter sido presa em 1935 porque o seu primeiro romance foi considerado antifascista, nem a prisão nem a censura foram suficientes para silenciar sua voz. Durante a Segunda Guerra sentiu que era a sua obrigação ser parte ativa, e sob o pseudônimo de “Clorinda” na Rádio Bari, enviava mensagens de incentivo e reflexões sobre como mulheres e pessoas idosas podiam contribuir para o fim da guerra. Em 1944, fundou a revista Mercurio, que se tornou um espaço para o debate cultural e político do pós-guerra, publicando autores como Jean-Paul Sartre, Ernest Hemingway e Natalia Ginzburg

O ensaio de Ginzburg – Discurso sulle donne (Discurso sobre as mulheres*) e a resposta de Alba tornaram-se um dos debates mais comentados da revista. Enquanto Ginzburg criticava a tendência das mulheres de sucumbirem à melancolia – o que ela metaforicamente descrevia como “cair em um poço”– e que as mulheres não deveriam deixar transparecer essa fragilidade, de Céspedes oferecia uma perspectiva diferente. Para a autora ítalo-cubana, esse mergulho nas profundezas emocionais não era necessariamente negativo, mas podia ser fonte de força criativa. Em sua visão, cada descida ao “poço” representava um encontro com as raízes mais profundas da humanidade, onde residiam fragilidades, sonhos, melancolias e aspirações – elementos que, segundo ela, moldavam e refinavam o espírito humano, e que era o que faltava aos homens. Que as mulheres não deveriam se igualar a eles, mas que a nossa força estava em ser diferentes. 

Durante a divulgação do seu primeiro romance, seu pai adoeceu, e ela passou um período em Cuba. Ele acabou falecendo, e ela voltou para Itália, porém após a morte do pai, a mãe desenvolveu um transtorno mental e Alba retornou à Cuba. Iniciando uma amizade com Fidel Castro, mesmo tendo tido todas as propriedades confiscadas pelo regime. Ela simpatizava com o movimento, e dessa relação e admiração, nasceu o que ela considerou o seu projeto mais importante: um livro intitulado “Con grande amor”. Ela o considerou uma declaração de seu amor por Cuba. Infelizmente permaneceu inacabado. 

Quanto mais mergulho em seus livros e sua história, mais me fascino. Sua trajetória por diferentes países e contextos sociais cultivou nela um olhar multifacetado e, por consequência, imparcial, pois ela se sentia parte de muitos lugares ao mesmo tempo. 

Acredito que de Céspedes tivesse raízes aquáticas, dessas que se adaptam em qualquer lugar, situação. Por isso navegava por diversos ambientes com um olhar múltiplo que conferiu às suas obras uma perspectiva única e abrangente, onde se entrelaçam experiências femininas, observações agudas sobre e desde o universo masculino, e análises profundas de diferentes contextos sociais e culturais. Mesmo após décadas, suas palavras permanecem atuais. 

O legado de Alba de Céspedes continua vivo não apenas através de suas obras, mas também por meio de sua generosa doação à Fondazione Arnoldo e Alberto Mondadori, onde se encontram os seus diários pessoais, livros, documentos, fotos. 

A (re)descoberta recente da escritora ítalo-cubana nos lembra que certas lutas, embora transformadas pelo tempo, persistem. Sua literatura não apenas atravessou décadas, mas manteve sua força e relevância. No Brasil, onde até agora apenas “Caderno Proibido” estava disponível em português, o anúncio da tradução de “Dalla parte di lei” pela Companhia das Letras abre caminho para um reconhecimento merecido dessa escritora extraordinária que demonstrou saber como ninguém navegar entre mundos. 

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Na Voz Dela, Alba de Céspedes (Companhia das Letras/divulgação)

*tradução livre

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