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É um pássaro? Um avião? Não, é o algoritmo!

O cartunista André Dahmer escancara o niilismo das redes sociais com seus Quadrinhos dos Anos 20

Por Artur Tavares
11 Maio 2023, 21h47
Tira do quadrinista André Dahmer.
 (André Dahmer/arquivo)
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Desde o início deste ano, o cartunista carioca André Dahmer tem voltado seu trabalho diário com as tiras de jornal para um personagem muito divertido. Vestido com uma roupa amarela e laranja de proteção contra incidentes nucleares, ele personifica as programações dos algoritmos e expõe nosso comportamento tóxico em relação à internet e às redes sociais.

Autor consagrado pela série Malvados, Dahmer é também escritor e poeta. Faz cartuns há cerca de 20 anos, sendo um dos pioneiros das HQ produzidas para a internet. Nesse tempo, assistiu de perto a erosão das interações sociais entre humanos no meio online, o que abriu espaço para uma automação perversa e quase distópica, e tornou esse fato o objeto de estudo dessas suas novas tiras diárias.

Quadrinista, André Dahmer.
(André Dahmer/arquivo)

“Esses vídeos curtos, que agora estão em todas as redes sociais são poeira de informação. Você vê uma pessoa caindo de patins mas não existe contexto nenhum, não existe história por trás, não se explica nada. Então, às vezes, você passa a noite inteira vendo, sei lá, acidentes de avião”, Dahmer nos conta, em conversa sobre o novo trabalho, que ele tem chamado de Quadrinhos dos Anos 20, uma autorreferência à sua produção da década passada, os Quadrinhos dos Anos 10.

Nessa entrevista, André revela que já planeja lançar um livro-coletânea das tiras do simpático e nefasto personagem laranja e amarelo, fala um pouco da sua própria relação com as redes sociais, observa o mercado brasileiro de quadrinhos e muito mais. Confira:

Seu trabalho sempre trouxe críticas muito ácidas sobre a sociedade, mas nessa nova série de tiras suas críticas passam menos pelas pessoas e sim pelos algoritmos e o que eles causam em nós. Como você decidiu trazer esse olhar para as tiras?
Essa série vai ser compilada pela Companhia das Letras em setembro, em um livro. As tiras estão sendo produzidas para os jornais O Globo e Folha de S. Paulo, e na verdade também trata de pessoas, esse maior inimigo da humanidade, que é o homem. Afinal de contas, é o homem quem escreve o algoritmo

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Eu parti da observação sobre as empresas de big data, e sobre como esse processo de automação nos tornou mais dependentes do celular. Vejo isso em amigos, em mim, nas minhas filhas, e sempre de maneira perversa.

Aumentamos o tempo de uso enquanto comemos poeiras de informação. Esses vídeos curtos, que agora estão em todas as redes sociais são poeira de informação. Você vê uma pessoa caindo de patins mas não existe contexto nenhum, não existe história por trás, não se explica nada. Então, às vezes, você passa a noite inteira vendo, sei lá, acidentes de avião.

Tira do quadrinista André Dahmer.
(André Dahmer/arquivo)

“É importante dizer que lá no início, você assistia a um vídeo e, para ir ao próximo, você clicava em um botão de play. Hoje em dia, não. Já começa outro sem você pedir! É o mesmo problema da timeline infinita, cujo criador chegou a pedir desculpas publicamente à sociedade dizendo que tinha programado um monstro”

André Dahmer

Me parece que a internet hoje funciona assim. Você procura sobre um assunto como “corrida”, e vai encontrar as teses de doutorado que só dez pessoas da academia vão ler. E aí você tem um resumo dessa tese em uma revista especializada, que algumas pessoas vão ler. Também poucas, né? Centenas ou poucos milhares de pessoas. Então você começa a desintegrar essa informação até chegar em níveis raríssimos, que são os que consumimos hoje nas redes sociais. E não ficamos sabendo de nada aprofundadamente, nem com uma base científica. Você não tem certeza se o que você está lendo sobre alimentação, por exemplo, é correto!

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É importante dizer que lá no início, você assistia a um vídeo e, para ir ao próximo, você clicava em um botão de play. Hoje em dia, não. Já começa outro sem você pedir! É o mesmo problema da timeline infinita, cujo criador chegou a pedir desculpas publicamente à sociedade dizendo que tinha programado um monstro, porque você não para de ver informação. O Instagram até tem feito algum esforço para falar assim: “Você já viu tudo nos últimos três dias”, mas então pergunta: “Você quer ver mais?”. Os mais jovens e as crianças se tornaram viciados nesse despropósito dos vídeos curtos.

Acho que foi por isso que me debrucei sobre isso para trabalhar, sabe?

Tira do quadrinista André Dahmer.
(André Dahmer/arquivo)

Ao mesmo tempo que existe essa crítica aos algoritmos, há também um olhar sobre a produção de conteúdo para a internet, para esses sites que se travestem de jornalísticos e ficam vendendo tragédias, soluções milionárias para enriquecer, teorias da conspiração. Na sua opinião, o que faz as pessoas consumirem esse tipo de informação em vez de confiar na mídia tradicional?
Todo mundo já teve problemas com o uso da rede social em demasia. É algo que temos que vigiar o tempo inteiro. Principalmente, minhas filhas têm sete e 12 anos. A menor não tem uso de celular, mas a maior temos que ficar em cima o tempo todo. Liberamos por períodos, 40 minutos pela manhã para ver mensagens, mas optamos combater isso com livros, sabe? E ela realmente virou uma leitora assídua. Fazemos isso normalmente antes de deitar.

Tira do quadrinista André Dahmer.
(André Dahmer/arquivo)

Sinto que todas essas tiras são tragicômicas, principalmente aquelas em que há uma reviravolta, como quando o herói quer ensinar a outra pessoa a fazer uma bomba, e aí diante de uma negativa ele fala “cinco ideologias que estão na moda…”, porque elas mostram que não existe escapatória nem para os mais esclarecidos. Você se sente, de alguma forma, num poço sem fundo com toda essa situação da vida online?
As redes sociais mudaram muito também. Na primeira grande, o Orkut você podia escrever um testemunho na página da pessoa, e até mesmo um anônimo, e mesmo assim não havia um grau de violência, agressividade e difamação como conhecemos hoje.

Eu me lembro como era engraçado o início das redes sociais, quando as pessoas entravam na sua página e falavam: “Ah, o André é uma pessoa muito querida, é meu sobrinho preferido”. Enfim, eram elogios. As pessoas não usavam do anonimato ou da possibilidade de escrever na página do outro para, enfim, escrotizar uma pessoa.

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Você está fazendo tiras há cerca de 20 anos, o que já te coloca entre os artistas mais longevos dessa mídia no Brasil. Como sua percepção mudou desde Malvados e o Rei Emir até hoje?
Minha cabeça mudou muito. Eu comecei a fazer quadrinhos tardiamente, com 27 anos. Hoje tenho 48, me considero uma pessoa mais tranquila e mais madura. Acho que cuido melhor do meu trabalho hoje em dia, finalmente entendi que é realmente um trabalho. Fiquei entre 10 e 15 anos meio que falando: “Ah, que legal, eu também faço quadrinhos”, e hoje sei que tenho um trabalho que merece ser cuidado e ser observado.

Tira do quadrinista André Dahmer.
(André Dahmer/arquivo)

Por falar no Rei Emir, ele era um ditador à moda antiga, diferente dessa onda conservadora que atingiu o Brasil na última década. Você brincou muito com o bolsonarismo mas nunca personificou Bolsonaro exatamente, optando por trazer críticas aos ultraliberais, militares, à polícia. Na sua opinião, o bolsonarismo é uma consequência, e não uma causa em si?
Eu acho que o bolsonarismo é um fenômeno que vem sendo construído há muito tempo, junto do avanço do conservadorismo, das neopentecostais entre os mais pobres, e um acirramento de questões morais. Acho que tudo isso desencadeou no que se chama bolsonarismo, que nada mais é do que um movimento extrema-direita mesmo.

E acho que o bolsonarismo é também um poliedro, sabe? De muitas faces, que contempla todo tipo de… vários segmentos da sociedade. Contempla pessoas que acreditam em Deus, mas também armamentistas, plantadores de soja, homens héteros que se sentem acuados com as pautas do feminismo, homens ressentidos. Também é muito bem construído, né? Porque a dona de casa evangélica não fala com o cara que é maluco e nazista, que tem arma em casa, enfim. Mas eles estão no mesmo poliedro.

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“Eu me lembro como era engraçado o início das redes sociais, quando as pessoas entravam na sua página e falavam: ‘Ah, o André é uma pessoa muito querida, é meu sobrinho preferido’. Enfim, eram elogios. As pessoas não usavam do anonimato ou da possibilidade de escrever na página do outro para, enfim, escrotizar uma pessoa”

André Dahmer

Mesmo que mais à frente as pessoas percebam que o bolsonarismo não tem um lugar permanente de poder, o conservadorismo exacerbado fica, com suas pautas morais e o fundamentalismo religioso. E há uma confusão do que seria praticar a fé hoje em dia, porque as religiões hoje são voltadas para a riqueza, o enriquecimento.

Hoje, você entra em uma igreja neopentecostal e eles prometem carro, emprego melhor, em troca de oração e o dízimo; assim como tivemos no passado uma teologia da libertação, por exemplo, que falava de um ser mais autônomo, capaz de entender a própria realidade, capaz de entender criticamente quem ele é e quem é que domina o mundo; quem manda no mundo e quem é que é mandado.

Você escreveu livros de poemas, lançou compilados, mas nunca fez uma HQ mais longa, um álbum com uma história só. Já pensou em sair do formato das tiras para contar uma história dessa forma?
Estou no meu quarto livro de poesias, o último foi Impressão Sua, lançado pela Companhia das Letras. Foi um livro bem recebido pela crítica, indicado ao Prêmio Oceanos, e ao Jabuti, eu acho.

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Sobre HQs mais longas acho que não tenho disciplina. Já me passou pela cabeça fazer só o roteiro e deixar para alguém que tenha paciência para executar o desenho. Porque eu sempre usei o desenho para coisas mais imediatas. Não trabalho com borracha, desenho à caneta direto. Nunca tive muita paciência para arte finalizar nem colorir.

Eu não sou isso exatamente, né? Eu não sou… não sei, assim, perto dos meus pares, né? Que são pessoas, muitos desenhistas de excelência, outros muito cuidadosos com traços e com a arte-final. Eu nunca precisei de nada disso, nunca me interessou. Tenho um desenho que é só funcional, sabe? Para as coisas que eu preciso.

E falo isso não como se fosse uma queixa. Acho que usei o que eu tinha e o que eu não tinha para fazer as coisas. Então, acho que construí meu trabalho também com as coisas que eu não tinha, e isso é importante.

Sua geração foi a primeira a fazer quadrinhos para a internet, e depois transportar esses trabalhos para os meios impressos tradicionais. Como você observa a evolução das tiras brasileiras no meio online?
Eu comecei a fazer tiras em 2002. Tinha um site, Malvados, e comecei a fazer meio que para aprender a escrever em HTML. Na época não existiam ferramentas de publicação como os blogs. Pensei no que eu poderia subir de imagens para a rede enquanto aprendia as linhas de código, e cheguei nas tiras. Três quadrinhos é uma coisa bem imediata e rápida de ler, e é realmente um formato que combina muito com o que a gente vive hoje em dia. Na época não tinha essa clareza também.

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Eu sou autodidata, então eu também… Você sabe que os autodidatas sofrem muito, né? Porque eles percorrem os caminhos mais difíceis, e como não conseguem aprender através do ensino de professores, ou descobrem sozinhos, demorando muito mais, ou então errando muito mais. Acho que o erro é um grande professor. Porque ele sedimenta conhecimento. Quando você erra feio, esse erro vira um aprendizado muito profundo, sedimentado. Queimar o dedo na panela é um tipo de erro que você aprende para sempre.

E observo que quando comecei, por exemplo, havia o Arnaldo Branco, o Adão Iturrusgarai, a Laerte veio entrar bem depois. O que me causa espanto e alegria é como o quadrinho brasileiro se diversificou, Então você tem gente como o André Diniz, as meninas, como a Estela May e a Helô D’Angelo, o Bruno Maron, o Ricardo Coimbra. Você tem um degradê maior, sabe? De possibilidades, de autores. É muito bonito, porque finalmente temos um olhar feminista, autores negros contando suas histórias, falando sobre coisas que são pertinentes à luta contra o racismo, sabe? Isso não tinha.

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Uma publicação partilhada por Sesc Bertioga (@sescbertioga)

O público de histórias em quadrinhos é muito fiel quando o assunto são os super-heróis e o que é pop, mas aqui no Brasil o mercado interno é praticamente artesanal, em um sentido de que se vende pouco e sempre para as mesmas pessoas. É possível furar essa bolha Marvel/DC com essa enxurrada de produtos para o cinema, televisão, brinquedos etc?
O nosso mercado ainda é muito incipiente, e não só dentro do quadrinho de herói. Você olha para a Argentina, que é um país em desenvolvimento, como o Brasil, e lá existe uma cultura de quadrinhos que vem de muito mais tempo. Você olha os belgas, os franceses, enfim…

O primeiro boom de quadrinhos que tivemos foi com Laerte, Angeli, Glauco, nos anos 1980. Isso tem 40 anos. Meus primeiros livros de quadrinhos eram colocados na sessão de livros infantis das livrarias.

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Uma publicação partilhada por Laerte Coutinho (@laerteminotaura)

Acho que falta muito ainda. Acredito que não exista uma política de incentivo, mesmo havendo sinais que mostram que estão começando a levar o quadrinho brasileiro a sério. E o que fazemos é muito bom, temos grandes artistas aqui. O Plano Nacional de Educação recomendou, já tem uns 10 anos, quadrinhos como um material de aprendizado para o cinema. Quadrinhos como um material de aprendizado importante, de interpretação de texto e gramática. Reconheceram que é uma forma saudável de… de ferramenta de conhecimento mesmo.

“É muito bonito, porque finalmente temos um olhar feminista, autores negros contando suas histórias, falando sobre coisas que são pertinentes à luta contra o racismo, sabe? Isso não tinha”

André Dahmer

Mas acho que esse é um problema para a cultura brasileira como um todo. Porque passamos os últimos anos com um projeto de poder que era transformar o Brasil numa grande fazenda de monocultura, de carne, pasto e soja. Para alimentar porcos e pessoas em outros países. Um país que voltou a ser uma fazenda, uma colônia de países que estão industrializados. E acho que a vocação do nosso país não é essa. É o contrário disso.

A nossa vocação é a cultura, é a ciência. Nós somos o país que fez o SUS,que era um exemplo de campanha de vacinação. Nós vacinávamos um país que era do tamanho de um continente de maneira exemplar! Então não é um problema para os quadrinhos.

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Uma publicação partilhada por Glauco Cartoon (@glaucocartoon)

É necessário levantar a cabeça agora e parar de achar que nós vamos viver para alguns especuladores no mercado financeiro ganharem dinheiro e não produzir nada, não produzir bens, serviços, alimentos, mercadorias. E que o Brasil não é para alguns fazendeiros
ganharem dinheiro exportando aos milhões enquanto a população passa fome.

Nós vemos nas ruas o estado em que deixaram o país, minhas filhas são capazes de perceber… minha filha de sete anos é capaz de perceber a situação indigna do povo brasileiro. Então, na verdade, acho que o que tem que ser discutido é que projeto de poder queremos para o país. Se queremos ser um país da dança, da música, das artes, do cinema, ou um país da Bíblia, do boi e da bala.

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