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Christina Sharpe fala sobre insistência na existência da negritude

Autora é uma das convidadas da Flip 2023 e conta à Bravo os detalhes de sua pesquisa acadêmica sobre e (r)esistência

Por Laís Franklin
Atualizado em 25 nov 2023, 11h45 - Publicado em 24 nov 2023, 10h09
 (Laís Brevilheri/Redação Bravo!)
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“Para quem morreu há pouco. Para quem morreu no passado e ainda não passou. Para quem permanece”. É assim que Christina Sharpe inicia as dedicatórias de “No Vestígio”, livro recém-lançado no Brasil pela Ubu, que será discutido pela autora durante a Flip 2023

Escritora, professora e pesquisadora pelo programa Canada Research Chairs em Estudos Negros nas Humanidades na Universidade York, em Toronto, e pesquisadora associada sênior no Centro de Estudos de Raça, Gênero e Classe na Universidade de Joanesburgo, ela teve que fazer um verdadeiro malabarismo na agenda atribulada para ir até Paraty e aproveitou a viagem para fazer um encontro de autógrafos também em São Paulo e em Salvador. 

Na publicação, que compõe sua tese de doutorado em Língua e Literatura inglesas pela Universidade Cornell, em Ithaca, a acadêmica faz uma investigação a partir de poemas, obras de arte, filmes, ensaios de autores que também pesquisam sobre pessoas escravizadas e também revisitou o luto pessoal de perder entes queridos consecutivamente. Tudo para refletir sobre as várias memórias negras afro-americanas que sobrevivem em meio a uma sociedade configurada para excluir pessoas negras de diferentes âmbitos sociais.

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(Christina Sharpe/divulgação)

“Acredito que o conceito de ‘no vestígio’ (originalmente ‘in the wake’, em inglês) seja algo tanto metafórico quanto material. Eu estava interessada nas múltiplas definições. Ele começou na materialidade daquele padrão de onda que seguiu os navios negreiros do século XV até o século XIX. Esses navios existem até hoje, só que com outros nomes. São navios de refugiados, navios de imigrantes com pessoas que são deixadas para morrer no meio de uma travessia”, conta a escritora em entrevista à Bravo! por videoconferência dias antes de desembarcar na Festa Literária. 

Para isso, ela toca na ferida e dá os nomes para dores coloniais e violências do sistema escravista que sangram até hoje. O livro é também sua tese de doutorado. Se você conhece o trabalho de Toni Morisson ou de Saidiya Hartman, está na hora também de incluir Christina Sharpe no seu repertório. “Viver ‘no vestígio’ é sobre o conjunto de práticas que nos acompanham lamentando os mortos (como num velório) e também nos conduz para o futuro. É também sobre estar conscientemente acordado para essas questões de negritude”, continua. 

Dividido em quatro partes, o livro acompanha as definições e locais que, para Sharpe, definem a existência de ser negro no mundo: o vestígio, o navio, o porão e o tempo. “É um conjunto de palavras que nos ajudam a pensar onde e como estamos localizados. E sobre o que sabemos e o que resistimos, sobre aquilo que fazemos e o que recusamos. Despertar a trajetória do navio, da consciência, da linha de voo, da linha de recuo de uma arma, sentar-se com os mortos e festejar. Acordar conscientemente para pensar a vida negra em meio a todas as forças que nos empurram para a morte”, argumenta. 

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(Fotografia: Rachel Eliza Griffiths/divulgação)

O livro foi considerado um dos melhores do ano de 2016 pelo jornal The Guardian e, no ano seguinte, foi finalista da categoria Não Ficção do Hurston/Wright Legacy Award. Em um diálogo constante com o Brasil, Sharpe cita o legado de Marielle Franco, e, nesta entrevista, também adianta detalhes de “Algumas notas do dia a dia”, livro de 18 notas do elogiado Ordinary Notes [Notas do dia a dia, no prelo], que está em pré-venda e será lançado com a presença da autora especialmente durante a Flip. Leia a entrevista completa: 

Como é o seu processo de escrita?
Eu não acho que tenha um único processo geral. Depende de cada livro, cada um pede uma coisa diferente em termos de pesquisa e, em seguida, em termos de escrita. Monstrous Intimacies é diferente de No Vestígio, que é diferente de “Algumas notas do dia a dia”, que é diferente do livro em que estou trabalhando agora. 

Mas, geralmente não faço muitas pesquisas de arquivo, não vou muito aos arquivos de uma biblioteca ou museu, mas leio muitos livros teóricos e artigos. Eu mergulhei muito no pensamento de autores que pesquisam sobre pessoas escravizadas, mas não sou historiadora. Meu doutorado (PHD) é em literatura, então li muitos romances, muita poesia, muitos ensaios, muita teoria, muitas obras de artes visuais também. Mas, como eu disse, o que cada livro precisa é ditado pelo próprio livro.

Como foi a construção para o conceito de “vestígio” que você defende no livro e também das metáforas de “navio” e de “propriedade”, que permeiam a publicação?
Acredito que o conceito de “no vestígio” (originalmente “in the wake”, em inglês) seja algo tanto metafórico quanto material. Eu estava interessada nas múltiplas definições desse conceito que, para mim, começou na materialidade daquele padrão de onda que seguiu os navios negreiros do século XV até o século XIX. Esses navios existem até hoje, só que com outros nomes. São navios de refugiados, navios de imigrantes com pessoas que são deixadas para morrer no meio de uma travessia. Então viver “no vestígio” é sobre o conjunto de práticas que nos acompanham lamentando os mortos (como num velório) e também nos conduz para o futuro. É também sobre estar conscientemente acordado para essas questões. 

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É interessante porque quando você traduz para o português, a palavra não tem toda essa dimensão.
Exatamente. Jess fez a tradução do livro e ela fez um trabalho realmente maravilhoso. Nós conversamos sobre como não havia uma única palavra que fizesse o que “the wake” faz na língua inglesa. Foi um processo bem interessante e eu concordei totalmente com a decisão de usar “no vestigio”. Ela também traduziu Algumas notas do dia a dia” (que será lançado durante a Flip). 

O livro é dividido em quatro partes bem definidas: o vestígio, o navio, o porão e o clima. Por que você escolheu essas divisões?
Escolhi essas quatro definições como locais para categorizar a existência de ser negro no mundo. É um conjunto de palavras que nos ajudam a pensar onde e como estamos localizados. E sobre o que sabemos e o que resistimos, sobre aquilo que fazemos e o que recusamos. Despertar a trajetória do navio, da consciência, da linha de voo, da linha de recuo de uma arma, sentar-se com os mortos e festejar. E acordar conscientemente para pensar a vida negra em meio a todas as forças que nos empurram para a morte.

Então, se antes da escravidão o que você tem são grupos étnicos e grupos linguísticos, durante a Idade Média e a escravidão, você tem a produção de algo que em inglês poderíamos chamar de negro. Eu pensei bastante nas formas de domínio que se repetem, como explicado em estudos de Frank Wilderson e de Saidiya Hartman. Seja o domínio da cela da prisão, de educação carcerária, de plantation e a forma como a lógica da plantation ainda funciona. 

Eu pensei na questão do clima, do tempo como aquilo que faz e reproduz a anti-negritude. Ao mesmo tempo, existe também uma espécie de microclima onde fazemos algo mais em meio a esse tipo de condição estrutural de supremacia branca, anti-negritude, e agora, muito fascismo. Essas eram as quatro maneiras que eu queria elaborar neste livro. Elas estão todas conectadas e articuladas juntas.

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(Christina Sharpe/divulgação)

Você mencionou o trabalho da acadêmica Saidiya Hartman nas suas pesquisas. Qual é a influência dela na sua obra? 

Meu primeiro livro, tem uma dívida enorme com “Scenes of Subjection”, de Saidiya Hartman. Eu não poderia ter escrito o livro que escrevi se não tivesse lido e aprendido muito com os arquivos que Saidiya usa para escrever esse trabalho. Todo o meu trabalho está em conversa com o trabalho dela. “No Vestígio” conversa em profundidade com o que ela chama em “Lose Your Mother” como a vida após a morte da escravidão.  “Algumas notas do dia a dia” também dialoga com cenas de “Vidas Rebeldes, Belos Experimentos”. Há uma relação profunda entre o meu trabalho e o de Saidiya.

Aprendi muito com os tipos de perguntas que ela faz, com os tipos de intervenções que ela fez ao pensar sobre individualismo, sobre a impossibilidade de certos tipos de empatia, sobre o que a escravidão fez e faz, sobre as formas como as condições criadas pela escravidão continuam até o presente. Meu trabalho seria muito diferente se não fosse pelo meu envolvimento e pelo que aprendi com o trabalho de Saidiya.

Lendo “No Vestígio” eu aprendi demais com as notas de rodapé que estão presentes em quase todas as páginas. Elas não são apenas descritivas, mas realmente complementam e integram a leitura de maneira dinâmica. Como você fez essa seleção? 

Como este é um trabalho acadêmico, eu li e citei muitas pessoas. Mas algumas das notas de rodapé são puramente bibliográficas e outras são narrativas nas quais você pode explicar algo que não caberia exatamente no corpo do texto, mas que você pode então expandir no tipo de nota narrativa mais longa. É um livro acadêmico e quero mostrar autores com quem posso estar concordando ou discordando. É também uma maneira de dizer: essas são as pessoas que os leitores também deveriam conhecer. 

Você já falou um pouco sobre isso, mas vamos nos aprofundar um pouco mais no debate entre o otimismo negro e o pessimismo negro e a “insistência na existência” de pessoas negras que você cita em “No Vestígio”?

Devo dizer que não estou particularmente interessada no debate entre o otimismo negro e o pessimismo negro. Temos Fred Moten, Frank Wilderson, etc. Como eu li todos esses trabalhos, acho algo útil em todos os seus trabalhos, e não estou realmente interessado em refazer esse debate. Mas vou dizer que não acho que a negritude precede o navio negreiro.

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Acho que a negritude é feita no navio. Deixe-me encontrar a citação exata, no penúltimo parágrafo de The Wake. Estar na esteira é reconhecer as formas como nós, e com isso quero dizer os negros, somos constituídos através e pela vulnerabilidade contínua à força esmagadora, embora não seja conhecida apenas por nós mesmos e uns pelos outros por essa força.

E isso para mim é talvez o ponto-chave ao qual voltarei duas outras vezes neste livro, e que realmente acredito e quero continuar, que os negros são constituídos por uma vulnerabilidade contínua à força avassaladora, mas essa não é a única maneira de conhecermos a nós mesmos e uns aos outros. Mesmo diante de uma violência tremenda, e de uma espécie de impulso em direção à morte, nós, pessoas negras, continuamos insistindo em existir. 

Isso me lembrou muito uma citação de Conceição Evaristo que diz: “Eles combinaram de nos matar e a gente combinamos de não morrer”. Aqui no Brasil, costumamos dizer que a cor sempre vem primeiro, quer você queira ou não. Minha última experiência em NY foi bem traumática, inclusive. Durante três ocasiões diferentes, em lojas de roupas e maquiagens, me questionaram se eu estava trabalhando no local em que eu era consumidora. Eu estava de férias, só queria me divertir, mas fui constantemente lembrada das barreiras invisíveis do racismo. Detalhe: em todas as situações eu estava com um vestido branco e todos os vendedores estavam de uniformes pretos. 

Essa é parte da razão pela qual eu quis escrever “No Vestígio”. Nós temos que saber que é assim que somos percebidos no mundo. É assim que somos constituídos no mundo. É assim que entramos no mundo. E precisamos agir diante disso. 

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(Fotografia: Rachel Eliza Griffiths/divulgação)

O que você aprendeu com este livro?
Esta é uma boa pergunta. O livro foi lançado em 2016 nos Estados Unidos e eu terminei de escrevê-lo em 2015. Então, já se passaram oito anos.

Acho que aprendi algo sobre como conceituar nossa relação entre o passado e o presente em termos de pessoas negras. Mas, por outro lado, não tenho certeza se é isso que você está perguntando. Então, acho que parte do que aprendi foi que eu poderia realmente escrever um livro para o público para o qual queria escrever.

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Como digo o tempo todo: mulheres negras primeiro, pessoas negras depois e, então, todos os outros. Eu poderia realmente escrever um livro que alcançasse somente as pessoas da academia, que é onde está meu trabalho, mas eu queria que pessoas negras e pessoas de todas as raças que não estavam na academia pudessem lê-lo. E isso aconteceu, tenho leitores que nas prisões, nas escolas secundárias, nas faculdades, em grupos de leitura comunitários.

Tem uma entrevista que o estudioso Roderick Ferguson fez na Los Angeles Review of Books, acredito que em 2018 ou 2019, e ele conta algo que a professora Lisa Lowe lhe disse. E ela disse a ele que, entre outras coisas: ‘Você sabe que a questão não é ser brilhante no trabalho. O objetivo é escrever algo que outra pessoa possa utilizar’.

E acho que o que aprendi ao escrever em “No Vestígio” é que poderia escrever algo que outra pessoa poderia utilizar como ferramenta.

Seu livro foi lançado nos Estados Unidos há quase uma década, mas só saiu aqui no Brasil. agora. Como a morte de George Floyd impactou a sua história? Porque aqui no Brasil foi algo gigante. Infelizmente ainda olhamos muitas vezes mais para a morte de um homem negro estrangeiro do que para as nossas próprias dores. Só para dar um exemplo, temos uma estatística triste de que a cada 24 minutos, um jovem negro morre no Brasil. E é tão doloroso pensar que, em menos de meia hora, uma pessoa negra já morreu.

Tenho certeza de que algumas outras pessoas que não conheciam meu trabalho foram apresentadas a ele naquele momento pós George Floyd. Mas também acho que, como você diz, um negro morre a cada 24 minutos no Brasil. É uma coisa meio estranha recusar a violência da própria nação e olhar para outro lugar como se isso fosse pior. É preciso encontrar uma maneira de conversar sobre a profunda violência que está acontecendo no Brasil. Não é coincidência que Marielle Franco tenha sido assassinada ao sair de uma reunião de feministas e pessoas negras queer se organizando para um tipo diferente de mundo. Essa violência também é endêmica no Brasil.

Por isso, não sei bem como responder à sua pergunta, excepto dizer que, por um lado, a natureza espectacular do assassinato de George Floyd abriu por um minuto algo que dizia que toda essa violência tinha de acabar. Mas isso foi rapidamente transformado em uma questão de reforma e de substituição de alguns empregos aqui, alguns empregos ali. Depois esses empregos desapareceram.

O sistema se reorganiza o tempo todo, certo? 

Absolutamente. Isso não quer dizer que as coisas não mudem. As coisas mudaram e a reorganização do sistema deve-se em parte ao sucesso dos nossos movimentos para fazer um mundo diferente.

E como você mencionou, o trabalho da Marielle, ela foi muito, muito importante para levar adiante, para levar adiante temas raciais importantes por aqui. E depois da morte dela, falamos que tem muita semente da Marielle Franco aqui no Brasil. Porque ela precisa estar viva em seu trabalho. 

Absolutamente. Seu trabalho continua. 

Como estão suas expectativas para vir ao Brasil e para a Flip 2023?

Faz muito tempo que eu quero visitar o Brasil e, até agora, não tinha tido a oportunidade. Quando recebi o convite da Flip, reorganizei toda minha agenda na universidade para poder estar com vocês. Irei para Paraty, depois vou lançar meu livro em São Paulo e terei um lançamento de livro em São Paulo e, de lá, sigo para Salvador, na Bahia. Estou muito ansiosa para todos esses encontros!

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