Clarice Lispector e Vinicius de Moraes falam sobre amor
Reeditado pela Rocco, Clarice Lispector Entrevista apresenta 83 entrevistas, incluindo uma conversa sensível com Vinicius de Moraes sobre poesia, música e amor
Uma das facetas menos conhecidas de Clarice Lispector, que completaria 104 anos hoje (10), é a de jornalista e entrevistadora, um papel que revela sua versatilidade e curiosidade inata. Embora a Clarice escritora seja amplamente celebrada por seus romances, contos e crônicas, sua habilidade como entrevistadora também merece destaque. Em suas conversas com grandes nomes como Elis Regina, Chico Buarque e Vinicius de Moraes, ela explorava temas profundos, refletindo sobre arte, os dilemas da existência e, inevitavelmente, o amor.
Reeditado pela Rocco, Clarice Lispector Entrevista reúne 83 entrevistas, das quais 35 são inéditas em livro, consolidando um importante registro da sua sensibilidade jornalística. Leia abaixo um trecho da conversa com o poeta Vinicius de Moraes.
Vinicius de Moraes (I)c
“Detesto tudo que oprime o homem, inclusive a gravata.”
– Vinicius, prepare-se. Acho que vamos conversar sobre mulheres, poesia e música. Sobre mulheres porque corre a fama de que você é um grande amante. Sobre poesia porque você é um dos nossos grandes poetas. Sobre música porque você é o nosso menestrel. Vinicius, você amou realmente alguém na vida? Telefonei para uma das mulheres com quem você casou, e ela disse que você ama tudo, a tudo você se dá inteiro: a crianças, a mulheres, a amizades. Então me veio a ideia de que você ama o amor, e nele inclui as mulheres.
– Que eu amo o amor é verdade. Mas por esse amor eu compreendo a soma de todos os amores, ou seja, o amor de homem por mulher, de mulher por homem, o amor de mulher por mulher, o amor de homem por homem e o amor de ser humano pela comunidade de seus semelhantes. Eu amo esse amor, mas isso não quer dizer que eu não tenha amado as mulheres que tive. Tenho a impressão de que, àquelas que amei realmente, me dei todo.
– Acredito, Vinicius. Acredito mesmo. Embora eu também acredite que, quando um homem e uma mulher se encontram num amor verdadeiro, a união é sempre renovada, pouco importam as brigas e os desentendimentos: duas pessoas nunca são permanentemente iguais e isso pode criar no mesmo par novos amores.
– É claro, mas eu ainda acho que o amor que constrói para a eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais perigoso, certamente o mais doloroso. Esse amor é o único que tem a dimensão do infinito.
– Você já amou desse modo?
– Eu só tenho amado desse modo.
– Você acaba um caso porque encontra outra mulher ou porque cansa da primeira?
– Na minha vida tem sido como se uma mulher me depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor paixão, pela sua própria intensidade, não tem condições de sobreviver. Isso acho que está expresso com felicidade no dístico final do meu soneto “Fidelidade”:“que não seja imortal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure.”
– Você sabe que é um ídolo para a juventude? Será que agora que apareceu o Chico, as mocinhas trocaram de ídolo, as mocinhas e os mocinhos?
– Acho que é diferente. A juventude procura em mim o pai amigo, que viveu e que tem uma experiência a transmitir. Chico não, é ídolo mesmo, trata-se de idolatria.
– Você suporta ser ídolo? Eu não suportaria.
– Às vezes fico mal-humorado. Mas uma dessas moças explicou: é que você, Vinicius, vive nas estantes de nossos livros, nas canções que todo mundo canta, na televisão. Você vive conosco, em nossa casa.
– Qual é a artista de cinema que você amaria?
– Marilyn Monroe. Foi um dos seres mais lindos que já nasceram. Se só existisse ela, já justificaria a existência dos Estados Unidos. Eu casaria com ela e certamente não daria certo porque é difícil amar uma mulher tão célebre. Só sou ciumento fisicamente, é o ciúme de bicho, não tenho outro.
– Fale-me sobre sua música.
– Não falo de mim como músico, mas como poeta. Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções.
– Vinicius, você já se sentiu sozinho na vida? Já sentiu algum desamparo?
– Acho que sou um homem bastante sozinho. Ou pelo menos eu tenho um sentimento muito agudo de solidão.
– Isso explicaria o fato de você amar tanto, Vinicius.
– O fato de querer me comunicar tanto.
– Você sabe que admiro muito seus poemas e, mais do que gostar, eu os amo. O que é a poesia para você?
– Não sei, eu nunca escrevo poemas abstratos, talvez seja o modo de tornar a realidade mágica aos meus próprios olhos. De envolvê-la com esse tecido que dá uma dimensão mais profunda e consequentemente mais bela.