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Como é fazer terapia com Freud? Abram Kardiner explica

No livro "Minha Análise com Freud", o autor divide como foi o seu período de consultas com o pai da psicanálise

Por Redação Bravo!
26 mar 2024, 09h00
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 (Quina editora/divulgação)
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Poucas pessoas tiveram o privilégio de ser analisadas pelo próprio Sigmund Freud (1856-1939). Abram Kardiner (1891-1981) conhecido por seu trabalho no campo dos estudos interdisciplinares envolvendo psicanálise, antropologia cultural e sociologia – foi um desses afortunados. Em seu novo livro, “Minha Análise com Freud – reminiscências” (Editora Quina – R$ 56), ele busca revelar sua técnica a partir de um caso específico: os anos 1920, época em que o autor esteve em Viena e descobriu que Freud tratava nove pacientes ao mesmo tempo, mas nunca da mesma maneira.

“A maioria dos que estavam lá reclamavam que ele nunca dizia nada. Alguns saíam desapontados; outros, com a sensação de não terem ganhado nada com a experiência. Ganhei muito com a análise. Quando o vi novamente em 1927, em sua casa de verão em Semmering, Freud parecia doente, havia perdido muito peso, mas se lembrava de que nós havíamos passado por um período de análise estimulante. Ainda considero essa uma das experiências mais importantes da minha vida”, escreve o autor (um dos fundadores da New York Psychoanalytic Institute e professor na Universidade Columbia em Nova York) no prefácio.

Ao longo de 126 páginas traduzidas por Nina Schipper, Kardiner aborda Freud, o analista, e Freud, o homem em um misto de relatos da própria análise do autor e uma biografia foi ditada para Bluma Swerdloff e reunida na coleção Columbia University Living Biography na década de 1970. Confira abaixo um trecho em primeira mão:

Nesse clima de resistência, culpa e um sentimento generalizado de “Como fui entrar nessa confusão?”, tive um sonho bastante dramático, que intrigou tanto a Frink quanto a mim. Freud, no entanto, extraiu dele algum sentido, embora eu não tenha a certeza, mesmo agora, de tê-lo compreendido inteiramente. Eu estava em um porão onde havia uma grande quantidade de velhas peças de mobiliário que tinham sido descartadas por conta de sua idade ou de estarem quebradas. Elas estavam em desordem. Uma sacada projetava-se sobre o lado direito do porão, e nessa sacada postavam-se três italianos com seus pênis expostos, e urinavam em mim. Sentia-me humilhado e abatido. Acordei num estado depressivo. Era sábado pela manhã e eu era esperado em uma reunião de equipe. Muito pacientes foram trazidos, e seus casos, debatidos. O último dos pacientes era um homem negro.

A única coisa de que me lembro sobre ele é que parecia estar em pedaços, e o dr. Raynor contou que ele tinha um sintoma inusual para um esquizofrênico – havia perdido sua “memória”. E, com isso, fui percorrido por um calafrio. “Meu Deus, a mesma coisa poderia acontecer a mim!” Eu estava me sentindo muito desconfortável e, dez minutos depois, quando a reunião terminou, subi para falar com o dr. Raynor e pedi permissão para não voltar ao trabalho aquela tarde. Fui para o meu quarto e dormi. Tive um segundo sonho.
Eu estava na cama com a minha madrasta. Eu estava tendo uma relação sexual com ela, mas havia algo incomum nisso. Sentia que, ao penetrá-la, eu a rasgava. Acordei.

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Disse a Freud: “Frink não pôde me ajudar muito quanto a esses sonhos. Espero que o senhor possa”.

Freud: “Quais associações sobre eles você poderia fazer?”.

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Dr. Abram Kardiner, em 1980 (Gotfryd, Bernard/divulgação)

“Apenas uma. Quando eu era muito jovem, meu pai costumava me contar histórias apócrifas sobre personagens bíblicos. Uma que se destaca em minha mente era sobre Jesus Cristo. Ele era visto como um bastardo, um charlatão e um embuste. Um dia, ele foi para o Santo dos Santos e de lá roubou o Shema Phoresh, que continha algumas inscrições mágicas. Aparentemente, era um talismã ou um fragmento da escritura sagrada. Ele o tomou, abriu a pele de sua perna e o costurou na carne. Com esse poder mágico, começou a voar ao redor, demonstrando seus poderes sobrenaturais. O sumo sacerdote viu isso e decidiu expor Jesus comO um impostor. Ele também foi ao lugar sagrado, pegou o Shema Phoresh e o costurou à sua pele. E também começou a voar no céu, mas voou mais alto que Jesus. Quando estava acima deste, o sumo sacerdote urinou em Jesus, e isso lhe extirpou o poder mágico. Ele foi ao chão, humilhado e exposto. Quanto às minhas associações com os italianos, no bairro em que cresci os italianos eram considerados assassinos, rápidos no uso do punhal.

Freud: “Este é de fato um sonho muito interessante, e você fez um bom tanto de condensações nos poucos segundos do sonhar. O porão com a mobília descartada significa simplesmente um tempo remoto, em que você era um garotinho; as coisas descartadas são o passado. Os italianos eram aqueles que você mais temia. Três italianos equivalem a um grande italiano, seu pai. Você se sentia pequeno, humilhado, sobrepujado por seu pai e diminuído por ele. O homem negro amnésico que você discutiu na equipe era uma projeção no futuro daquilo que você de fato temia no passado. O que você temia, portanto, não era o que aconteceria, mas aquilo que realmente havia acontecido, que você não apenas esqueceu, mas teve medo de recordar. E o que você temeu com Frink foi que, se ele soubesse de suas intenções assassinas em relação a seu pai, ele deixaria de lhe conceder seu amor e seu apoio, como você certa vez temeu que seu pai faria. O que você receou foi a volta da sensação de humilhação, que devastou sua infância”.

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“Mas vejo pelo seu segundo sonho que você não está necessariamente disposto a se render. Você se relaciona sexualmente com sua madrasta. Esse é o lado assertivo do seu caráter e parte do seu protesto masculino. Há muita luta dentro de você. Foi um combate de vida ou morte pela sua sobrevivência. Você certamente se sentiu muito insignificante em sua infância”.
Continuei fazendo associações. “Minha madrasta me ensinou a apreciar as mulheres, e, dos meus 4 aos 7 anos de idade, ela se comportava de forma sedutora comigo. A desculpa que eu me dava para continuar a ter minhas fantasias ardentes era: “Ela não é minha mãe, e, portanto, o assédio é justo”.

Freud disse: “Não havia nada de inconsciente nisso. É uma manifestação do complexo de Édipo”. Freud então começou a esclarecer os medos despertados na minha análise com Frink: “A análise em si meramente acessou seus medos latentes de abandono e sua incapacidade de ser assertivo com seu pai. Este era o conflito em questão na análise de Frink, de forma específica: como ousaria você competir com o homem cujo auxílio e apoio você queria obter, e a quem temia que o fosse humilhar caso você revelasse que o rivalizava para substituí-lo, especialmente com sua madrasta. No sonho do intercurso com ela, você tenta lidar com essas angústias de um jeito mais assertivo”.

Bem, enquanto Frink não conseguiu avançar a partir desse sonho, durante a minha análise com Freud ele agiu como um catalisador, pois esse sonho remetia diretamente às minhas relações com meu pai na infância. O que era bastante evidente, embora eu não estivesse inteiramente consciente disso.

Até aí, Freud parecia estar no caminho certo. Ele já havia me alertado de que minhas relações com meu pai eram retouchées [retocadas], e que eu o temia, mas cobiçava minha madrasta. Ele também estava certo ao reconhecer que o comportamento dela para comigo era provocativo, e que se por um lado isso estimulava minhas fantasias agressivas em relação a ela, por outro, intensificava minha culpa para com o meu pai, de quem eu dependia tanto. Era essa a minha neurose.

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