Conheça história de Cantagalo, romance premiado em Lisboa, que será lançado em março
De Fernanda Teixeira Ribeiro, a obra acompanha as gerações de uma família, explorando os impactos da escravidão na sociedade e nas relações de poder

O premiado romance Cantagalo (Todavia, 2025), de Fernanda Teixeira Ribeiro, chega às livrarias trazendo uma narrativa ambientada na Minas Gerais do pós-abolição. A obra recebeu o Prêmio Revelação Literária UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) no ano passado. Fernanda tornou-se a primeira mulher a conquistar essa honraria. Além da premiação em dinheiro, o livro foi publicado originalmente pela editora portuguesa Guerra e Paz.
Situado no início do século XX, o romance acompanha a trajetória de uma família cuja história se desdobra a partir de um casamento arranjado incomum: a herdeira de uma fazenda de café se une ao filho de uma mulher escravizada e um homem branco. Dessa união, o livro expande seu olhar para as gerações seguintes, revelando as vidas das descendentes do casal, das empregadas e das moradoras dos arredores. Ao entrelaçar suas experiências, a narrativa reflete as marcas profundas do período na sociedade e nas relações de poder.
Fernanda Teixeira Ribeiro nasceu em Uberaba (MG), em 1984, e atua como jornalista, pesquisadora em neurobiologia das emoções e editora de ciência. Cantagalo é o seu livro de estreia.

Leia um trecho da obra:
Com exceção do menino recusando leite, definhando a olhos vistos por culpa da cabeça tonta da mãe, os dias no rancho correm como sempre, nada mudou, insistia Julião. Tudo mudou, Julião; o milharal seco, as macaúbas sem um coco, logo não teremos de comer, os porcos agitados à noite, sonhei que eles invadiam a casa. Você é nervosa, criatura, e quer saber?, os porcos ajudariam muito se pusessem essa casa abaixo de vez, você nunca gostou daqui, Ambrosina, haja reclamação, todo dia uma necessidade: cueiro para o menino, óleo para lamparina, farinha. Ah, se ele soubesse disso há dois anos! Avisaria ao Julião noivo, pule fora, meu amigo, felicidade é correr mundo sozinho com uma peneira nas mãos, revirar cascalho rio acima, rio abaixo, teimosia chama sorte, em pouco você encontra um diamante bitelo, dinheiro a não poder, comprará terra, o cafezal do Cantagalo não será nada perto do seu. Um diamante, um só, e tudo se resolve. Viraria barão, barão Bomtempo, soa bonito.
Mandaria desenharem um brasão na sua porta, um com mais espadas e flores que o dos Lima, acrescentado ainda de um leão, força e braveza dos Bomtempo. Teria direito a banco de família na igreja, basta um dízimo gordo aos corvos de batina e se pode sentar bem à frente, debaixo do sovaco do padre. Houvesse o banco dos Bomtempo, o encheria de putas na missa de Pentecostes, as melhores, mandaria trazer da capital. Dona Praxedes seria obrigada a cumprimentá-lo, a prestar-lhe todos os respeitos de barão, de cara azeda, ignorando suas putas. Prima de Ambrosina e nunca nos convidou para o banco dos Lima, deixe estar! Vai ser engraçado quando ver o banco cheio de rameiras. Depois da missa, desceria com elas até a rinha
dos garimpeiros, façam chacota de mim, agora, façam!, Julião ria à solta. Na próxima ida a Capelinha do Chumbo contará a ideia do banco ao padre Cirilo. O padre, Ambrosina, ele me diz não blasfeme, meu filho, respeite os Lima, mas eu sei, se segura pra não rir, Julião você tem espírito!, ele me diz assim, eu digo tenho mesmo, o santo!, e não, não, Ambrosina, não vou chamá-lo para benzer o rancho, esqueça isso.
Julião, irredutível, afirmou e repetiu que não precisavam de padre nenhum, loucura dela. Isso foi um pouco antes de ser acometido por um frio sem jeito. Um cobertor não adiantou, nem dois, o corpo de espiga de Ambrosina não era capaz de esquentar nem as lombrigas, também não a queria perto, a cara e o cheiro dela irritavam-no como nunca naquela noite. Que frio! Notou as pontas dos dedos arroxeadas. Tentou se aquecer pulando no mesmo lugar, piorou. Decidiu correr em volta da casa, lá fora um breu, nem lua, nem vaga-lumes, só o som das cigarras, das pedrinhas pisadas no chão. Deu uma volta, duas, de repente parou, gélido: parecia ouvir vozes ao longe. Quilombolas. Só pode. Havia enxada e faca para roubar, alguma cachaça, uma mulher. Quem vem lá?, o grito ecoou no breu. Silêncio.
Retomou a corrida, dessa vez ouviu de perto, no pé da orelha, desgraçado, um bafejo na nuca; virou-se a tempo de ver o vulto fugir pelas paredes da casa, desaparecer nas telhas. Um fio de urina lhe escorreu pelas coxas, humilhação, ao menos o pavor esquentasse o sangue, nada! Frio, frio, isso é delírio de morte, só pode, é isso. Talvez tenha se cortado sem ver, o corpo, se envenenado com o tétano, já ouviu contarem sobre, a infecção vinha de repente, a pessoa cheia de saúde e do nada cai em espasmos, a boca de sangue. Cuspiu na palma da mão, a saliva branca, ainda. Está é ficando fraco da cabeça, como Ambrosina, é isso, mulher dos infernos. Frio, frio. Podia se deitar com os porcos, se esquentar no chiqueiro, sim. Correu para lá, se espremeu entre uma partida de leitõezinhos, a nuca virada para a respiração densa da porca parida, cheiro de esterco e de leite azedo, um conforto, seus bichos o conheciam, sim, sabiam do seu valor, os porcos, melhores que filho, mulher, galo. Dormiu costas a costas com a porca.
A quentura do sono foi atravessada pelo primeiro sol, o tempo de se reconhecer no chiqueiro, remontar os eventos da noite. Ergueu-se pesado, braços e barba pegados de esterco, se lembrou num fastio de que existiam uma mulher e um menino, chamou na porta de casa, Mulher! Nada, só o canto dos pássaros, a janela escancarada, o parapeito. O fastio deu lugar à apreensão, o que teria acontecido? Se houvessem entrado na casa, sabia como costumava ser, os quilombolas não só roubavam, diziam, achincalhavam as
mulheres; o moleque, o teriam levado, ou até atirado para longe, morto na queda. É pequeno, basta um tranco forte. Temeu encontrar o menino no chão, Ambrosina chorando abraçada aos joelhos. Com um aperto na garganta, seguiu lento, entrou; tudo igual, a casa intacta no sol da manhã. Ouviu um resmungo de criança. Frederico? A cabecinha apontou por debaixo da cama, logo Ambrosina rolou com ele nos braços, a roupa suja de terra: Enfim, Julião, me virei sozinha com o menino, as vozes pela casa inteira, subindo e descendo as paredes, amaldiçoaram a noite toda e você me aparece mijado, não me espanta.