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Um extremista morto nas alturas

Na boa paródia do bolsonarismo “O Crime do Bom Nazista”, Samir Machado de Machado faz ficção policial sobre um futuro-passado distópico não tão distante

Por Artur Tavares
Atualizado em 14 mar 2023, 12h25 - Publicado em 14 mar 2023, 09h37
mapa zeppellin
 (Marcelo Pliger/ Editora Todavia/divulgação)
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A editora Todavia publica agora em março o novo livro do escritor gaúcho Samir Machado de Machado, O Crime do Bom Nazista. Com um olhar fresco para as histórias policiais inglesas de Agatha Christie e Arthur Conan Doyle, o autor faz uma relação entre a efervescência dos discursos de ódio na Alemanha dos anos 1930 e os anos do Brasil sob Bolsonaro em uma comédia que soa ao mesmo tempo como uma paródia do ontem e uma distopia do amanhã.

A história se passa a bordo de um zepelim que saiu da Alemanha em viagem para o Rio de Janeiro, em 1933. A tripulação de notáveis conta com um médico anti ciência, uma integrante conservadora da burguesia e um maître isentão que se veem envolvidos em um crime cometido enquanto a aeronave sobrevoa o espaço aéreo de Recife: a morte do comerciante Otto Klein, que viu seus negócios ascenderem rapidamente depois de patrocinar a tomada do poder pelos nazistas. Cabe ao policial Bruno Brückner, também integrante do partido de Hitler, investigar o caso a tempo da nave pousar na Cidade Maravilhosa.

Antes do assassinato, os personagens jantam juntos em uma mesa, e conversando destilam ódio, preconceito, ignorância e falsos moralismos. A partir deste primeiro momento, a escrita de Samir brilha ao dar ares histriônicos à situação. Os suspeitos tomam emprestadas frases de Jair Bolsonaro e de outros notáveis personagens do período em que o capitão reformado do Exército ascendeu ao poder e chegou à presidência do Brasil, tais quais “filho meu não corre o risco de namorar com gays porque foi bem educado”, em uma livre associação entre os dois regimes de extrema-direita e uma denúncia bem humorada da queda livre social em que nos metemos.

“A associação entre o bolsonarismo e o nazismo não é exatamente uma ideia original porque, ao longo do governo dele, quantas vezes ‘coincidências estranhas’ criaram paralelismos, não só em declarações públicas de autoridades, como a do secretário de cultura Roberto Alvim, e também o próprio discurso de ódio, que replica simbologias codificadas do nazismo?”, questiona o autor nesta entrevista.

Vencedor do prêmio Jabuti em 2021 com o livro Corpos Secos, escrito coletivamente com Marcelo Ferroni, Luisa Geisler e Natalia Borges Polesso, Samir Machado de Machado é um dos nomes brasileiros mais habilidosos na literatura de gênero, que utiliza de fórmulas clássicas como apocalipses zumbis, faroestes, histórias policiais, de ficção científica ou de terror para contar uma história. Transitando muito bem entre a aventura, o suspense e o fabuloso, ele vê no gênero a capacidade de criar obras politizadas sem perder o entretenimento: “A literatura de gênero, que de certa forma é a literatura de massa, é muito mais política do que a dita ‘alta literatura’ quando se trata de trabalhar os valores de uma sociedade. Porque ela não necessariamente questiona e desconstrói valores, mas se baseia na presunção de que o texto e o leitor compartilham dos mesmos valores, e isso é muito importante.”

Confira nossa conversa:

Para seu novo livro, você traz uma abordagem clássica das histórias policiais britânicas em um jogo de ironia entre os nazistas do período da tomada de poder pelo Terceiro Reich e a sociedade brasileira que esteve à beira do colapso até bem pouco tempo atrás. Como foi construir esse retrato do Brasil e cristalizá-lo em um conto de crime a bordo de um zepelim?
Comecei esse livro em março de 2021. Na época, os apoiadores do Bolsonaro tinham conquistado a presidência do Senado e da Câmara, portanto o presidente tinha maioria para governar como bem entendesse, enquanto a história também se passa quando os nazistas ganham maioria no Reichstag alemão, colocando Hitler como chanceler e impondo sua pauta à sociedade alemã. Assim como em 2021, naquele momento a direita alemã precisou negociar com os nazistas, abraçando suas pautas.

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Antes mesmo de baixar leis contra os judeus, a minoria que os nazistas caíram em cima, nas primeiras semanas após chegar ao poder, foi a comunidade LGBT de Berlim. Não me esqueço que na primeira semana após assumir a presidência de fato, Bolsonaro mandou cancelar uma campanha do Banco do Brasil que falava sobre diversidade, uma palavra que é quase uma ofensa para ele.

Antes de O Crime do Bom Nazista, seus romances antecederam a ameaça da volta da ditadura e uma pandemia apocalíptica, e agora você olha para um extremismo enraizado na sociedade brasileira. Como você captura no ar temas latentes tão rapidamente e os transforma em romances que são retratos frescos da nossa realidade?
Corpos Secos foi escrito no finalzinho de 2018, refletindo o resultado das eleições, não havia como ser uma associação à pandemia. Mas houve uma grande coincidência, porque o livro foi lançado em abril de 2020. Já Tupinilândia eu escrevi durante o impeachment da Dilma Rousseff, em 2016. Parecia um movimento inverso ao que aconteceu em 1984, quando saímos de um regime não-democrático através de uma eleição indireta, só que dessa vez com Michel Temer eleito não-democraticamente como presidente.

Muito se fala de como autores de ficção científica e outros escritores de um modo geral têm bolas de cristal, mas a verdade é que talvez tenhamos uma sensibilidade maior para percebermos coisas que parecem evidentes e que se encaminham à algum tempo. Um livro demora para ser concluído, e quando lançamos, muitas vezes, as situações se tornam cristalinas também para um grande público.

A associação entre o bolsonarismo e o nazismo não é exatamente uma ideia original porque, ao longo do governo dele, quantas vezes ‘coincidências estranhas’ criaram paralelismos, não só em declarações públicas de autoridades, como a do secretário de cultura Roberto Alvim, e também o próprio discurso de ódio, que replica simbologias codificadas do nazismo? Não por coincidência, o nazismo se organizou politicamente nos anos 1920 através de clubes de tiro. Eles formavam grupos armados para sair hostilizando qualquer tipo de oposição, inclusive com violência.

Samir Machado
(Renato Parada/divulgação)
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Você já escreveu romances nos gêneros policial, de aventura, ficção científica, para todas as idades. Como você faz para ir mudando a cada obra, e o que desperta em você a escolha da próxima linguagem e tema?
Desde sempre, trabalho com literatura de gênero, ou aquilo que o Jabuti definia como literatura de entretenimento. Comecei minha carreira organizando coletâneas dessas histórias. Esse livro em específico nasceu de outro projeto que ainda não saiu. Era para ter sido um conto por encomenda com inspirações em Agatha Christie que tomou uma proporção e acabou se tornando um romance.

A literatura de gênero, que de certa forma é a literatura de massa, é muito mais política do que a dita ‘alta literatura’ quando se trata de trabalhar os valores de uma sociedade. Porque ela não necessariamente questiona e desconstrói valores, mas se baseia na presunção de que o texto e o leitor compartilham dos mesmos valores, e isso é muito importante.

“Muito se fala de como autores de ficção científica e outros escritores de um modo geral têm bolas de cristal, mas a verdade é que talvez tenhamos uma sensibilidade maior para percebermos coisas que parecem evidentes e que se encaminham à algum tempo. Um livro demora para ser concluído, e quando lançamos, muitas vezes, as situações se tornam cristalinas também para um grande público”

Samir Machado de Machado

Por exemplo, na Inglaterra nos séculos 19 e 20, a literatura de aventura foi usada como forma de reafirmação de uma identidade nacional. A Itália recém-unificada tinha um elemento cultural em comum, todos liam as aventuras de pirata escritas por Emilio Salgari. A cultura norte-americana das histórias de faroeste ou de super-heróis são muito baseadas em um grande individualismo liberal.

E também não basta apenas desconstruir valores, não existe vácuo de valores. Algo precisa ser construído após a desconstrução. Gosto de pegar essa literatura de gênero que é calcada em estruturas e elementos que não são só muito antigos, como colonizadores em certos aspectos, e repensá-la com base nos valores atuais e da sociedade brasileira.

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Outra coisa é trabalhar protagonista LGBT ou de outras minorias em um tipo de literatura que não está acostumada a dar espaço para esses personagens, e também onde eles estão liberados do fardo de ficarem discutindo sua própria identidade, e apenas serem protagonistas das histórias, embora em O Crime do Bom Nazista fosse essencial para o tipo narrativa que queria contar.

Outro aspecto interessante da ficção de gênero é a possibilidade de tratar um assunto como o deste livro no campo da comédia, escrever até mesmo em tom jocoso, algo que está distante da “dita alta literatura” que você mencionou. Esse é outro aspecto que dá possibilidade da história alcançar um outro público, e até mesmo parte da massa da extrema direita?
De certa forma, sim. Eu tiro diálogos de brasileiros de extrema direita do século 21 e coloco na boca de nazistas alemães dos anos 1930, e você vê que não há diferença entre uns e outros. Como paródia, isso evidencia o absurdo da coisa, porque, olha, vocês estão reproduzindo o discurso nazista. Mas também me questiono o quanto as pessoas estão inconscientes, de fato, de estarem reproduzindo essas falas. Acho que muitas delas sabem o que estão fazendo, e esse talvez seja um dos pontos que não abro concessões.

Claro, Bolsonaro teve uma votação expressiva na última eleição; não se sabe o quanto disso em função dos inúmeros assédios eleitorais, mas tem simpatizantes. Nós vemos nas redes sociais e na invasão da Praça dos Três Poderes que ele tem uma fatia generosa de público fanatizado, mas não cabe a mim propor como negociar com isso. Não acho nem que cabe negociar com esse tipo de extremismo. No momento em que o bolsonarismo é análogo ao nazismo, não acho que seja possível um diálogo.

Existiram ações no pós-guerra alemão para desnazificação na Alemanha, mas também uma grande dose de hipocrisia e conveniência com nazistas que diziam que estavam somente cumprindo ordens, chegando até a negar que fossem nazistas.

Não cabe a mim propor diálogo com esse tipo de extremismo. Em seu sentido ideológico, ele deve ser combatido e até mesmo destruído para que haja convivência democrática em uma sociedade. Não se deve incorrer à violência, mas não é como o Paradoxo de Karl Popper: não se pode tolerar o intolerante, quando o objetivo do intolerante é te destruir. Porque, senão, você está negociando com a possibilidade de sua destruição.

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Da minha parte, o próprio título do livro é relacionado a um antigo ditado de que nazista bom é nazista morto. De novo, não estou incorrendo à violência, mas devemos ser enfáticos em denunciar o bolsonarismo como um movimento de extrema direita violento que precisa ser combatido e neutralizado.

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(Marcelo Pliger/ Editora Todavia/divulgação)

Quais são seus próximos projetos?
Tenho um projeto de longo prazo, que é um épico. Como todo épico, ele trabalha com a formação de uma identidade nacional. É algo que está me tomando um tempo, e pode tomar um pouco mais ainda.

Como escritor de ficção especulativa, olhando em retrocesso, eu noto como meus últimos livros tiveram elementos marcadamente políticos. Não adianta mais projetar distopias e cenários apocalípticos, mas também propor novas formas de utopia, e se permitir a um pouco de otimismo com as possibilidades de consertar o estrago que foi feito.

Não gosto de falar de livros que não estão prontos, porque é como falar da forma das nuvens, mas alguns são bastante rápidos para escrever. Eu o fiz em apenas um ano, quando geralmente levo de dois a quatro para fazer um livro. O próximo talvez demore um pouco mais, mas até lá, enfim… às vezes as ideias surgem quando menos se espera e acabam atropelando umas às outras, e pela própria história também.

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“Eu tiro diálogos de brasileiros de extrema direita do século 21 e coloco na boca de nazistas alemães dos anos 1930, e você vê que não há diferença entre uns e outros. Como paródia, isso evidencia o absurdo da coisa, porque, olha, vocês estão reproduzindo o discurso nazista. Mas também me questiono o quanto as pessoas estão inconscientes, de fato, de estarem reproduzindo essas falas”

Samir Machado de Machado

É a segunda vez que você publica um romance pela Todavia, depois de ter passado por outras grandes editoras. Como você enxerga essas possibilidades de reconstrução dentro da literatura e do próprio mercado literário hoje?
Comercialmente falando, vínhamos falando da crise gerada pela quebra das livrarias Cultura e Saraiva, e agora as Americanas. Literariamente falando, a partir de 2016 houve a consolidação de um novo público de literatura de entretenimento no Brasil, não só literatura young adults, mas também editoras dedicadas a publicar exclusivamente horror, ficção científica, fantasia, e autores nacionais que estão investindo nessa desconstrução de gênero. Isso aos poucos está se espelhando em outras produções audiovisuais.

Acho isso bastante positivo. No momento em que parte da nossa inteligência perder um ranço histórico com a ideia de produzir entretenimento, que para algumas pessoas é quase uma ofensa, um palavrão, temos a chance de criar um público leitor de qualquer tipo de literatura. O que é o sucesso crítico e comercial do Itamar Vieira Junior, com Torto Arado? Tenho a impressão de que não via um autor com esse peso literário desde Jorge Amado e Érico Veríssimo. Fico muito empolgado quando vejo autores como o Itamar, o Jeferson Tenório e o Rafael Montes, cujos leitores esperam um novo livro assim como se fosse o show de uma banda, ou o lançamento de um filme. Isso é extremamente promissor, e faz com que me permita ser otimista em relação aos próximos anos.

Além de que temos um governo que não é hostil com a cultura, que talvez crie políticas de incentivo à leitura e ao mercado editorial. Acho que dá para ser mais otimista nesse aspecto. É necessário, também, um pouco de otimismo. Até por questão de sobrevivência, não adianta projetar apenas nossos temores, mas também tentar concretizar nossas esperanças.

O cime do bom nazista
(Editora Todavia/divulgação)
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