A passagem mais barata do mundo
Elisa Lucinda em sua coluna de julho relembra todas as terras que já visitou a bordo de um livro

Fui apresentada à literatura antes de aprender a ler. Tanto que eu nem a chamava assim, pelo nome. A história do gato Fuminó, a do Saci pegando carona na lambreta do meu avô, as histórias fantásticas de minha avó Maria, uma afro-indígena cheia de suspenses na narrativa, com longas pausas estratégicas para suspender a batida em nossos coraçõezinhos antes de revelar a próxima cena, me foram contadas desde o meu sempre. Sem contar os clássicos: Chapeuzinho Vermelho, Cinderela e Os Três Porquinhos. Consideremos também as piadas, as anedotas de minha casa, as divertidas charadas que, além de serem literatura oral, também eram interativas. De modo que, quando a literatura escolar chegou à minha vida, o meu interesse era o de alguém previamente encantado por ela. Eu ficava curiosa: por que um poema, um conto, um romance podem guardar informações cujo a compreensão só será revelada no final? A literatura, em especial a poesia, pavimentou a leitura que tenho da vida.
Mas algo grave está acontecendo aqui e no mundo: perdemos muitos leitores, em especial os jovens macabramente treinados para que tudo lhes venha à mesa, pronto e rápido. Ler e esforço para muitos, e não prazer. Ensaiados para desprezar sua potência e para não contar com suas habilidades naturais, estamos criando um corpo discente sem memória espontânea. Sou de uma geração que sabia de cabeça os telefones da mãe, do pai, dos amigos, namorados, amores. Estamos diante de uma geração que terceirizou a memória e nem sabe que pode usá-la e o quanto ela é capaz de armazenar.
A cabeça de muitos está sem imaginação. Aliás, a ideia de imaginar autonomamente sofre grandes ataques da tecnologia, já que existem chats para imaginar pelas pessoas, para terem ideias por elas e impor conceitos que o mercado exige. Erroneamente chamado de “inteligência artificial”, esse programa alimentado por padrões formados pela maioria dos dados colhidos pela ideologia que sustenta as big techs tem sido ovacionado pelo próprio ser humano, como se fosse mesmo uma inteligência. Acontece que não é inteligente pensar assim. A inteligência natural ainda é a campeã, porque é única e só tem mesmo ela.
A saber: quando tínhamos que escolher a cor da cartolina, os materiais físicos com os quais apresentar nosso trabalho de escola, a abordagem, as figuras, as ilustrações, a dinâmica da narrativa com começo, meio e fim, acionávamos nossa capacidade imagética. E o prazer produzido pelo exercício dessa pequena dose de criatividade é capaz de gerar dopamina suficiente para nutrir a sedenta alma humana. Tenho fortes desconfianças de que a queda no costume da leitura, ou a falta do hábito de ler aumenta a depressão em muitas pessoas, em muitas vidas que precisam da ficção específica da literatura. Pois, de alguma maneira, as séries, os filmes, as novelas e o próprio teatro, ao adaptarem uma obra literária, mostram o olhar dos seus realizadores e nos impedem de sonhar nossas cores, nossas escolhas, nossas idiossincrasias, de acordo com a nossa ancestralidade, nossa cultura, nossa história. É saudável imaginar tudo que a palavra está dizendo. O leitor é um coautor. O autor escreve “amarelo brilhante”, mas toda a condimentação é do leitor: o tom deste amarelo, o tipo de brilho, alguns sonham amarelos opacos, discretos, purpurinados… outros mais pro carnaval da Sapucaí. E quando a autora escreve: “Lá vai Orlando, mas que homem gato”, cada leitor colocará ali, no bojo daquela pequena oração, o seu desejo e o seu gosto. O que quero dizer é que, dentro de um livro, há uma imensidão. Condição que faz com que nosso cérebro se transforme, junto com todos os nossos sentidos, em um parque de diversão cerebral, criando novas sinapses provocadas pelas arrumações das palavras de cada um dos artistas que as escrevem. Escrever é uma arte, repito. Tanto que não basta ser alfabetizado para ser um escritor. Quem escreve realiza um tear. Uma tema.
Guimarães Rosa, por exemplo, é um exímio arrumador de palavras e não é concebível que se possa dizer que alguém leu sua obra sem realmente lê-la. Explico: quando um estudante, ao invés de ler diretamente o Rosa, recorre a um resumo feito por um chat, ele até pode ficar por dentro do conteúdo, mas sem o encantamento da trama. Então esse estudante conhece a história, mas não leu o Rosa. Não foi exposto às armadilhas sedutoras do seu jeito de nos atrair para sua narrativa do Brasil profundo. A narrativa literária inclui a ciência das pausas, as respirações entre os períodos e todo o tear particular de cada inventor. O jeito que cada um tem de escrever e imprimir sua voz no papel, chamamos de estilo quando aquilo caracteriza sua estética.
Ainda não falei aqui, da durabilidade de um livro. Ele pode durar séculos, pode ir sendo reeditado, podem relê -lo por gerações. É tão impressionante a ação que os enredos que nós lemos têm sobre nossa cultura, que existem muitos personagens aos quais nosso inconsciente coletivo trata como vultos históricos, como se tivessem existido: Dom Quixote, Hamlet, Alice no país das maravilhas, Cinderela, O pequeno príncipe, Gabriela e Saci Pererê…a todos tratamos como gente que existiu.
Um casal transando no banheiro bem gostoso; uma mulher sofrendo porque deseja quem não sabe amar; a mãe desesperada até colocar na justiça o assassino do seu filho; um planeta misterioso que ninguém nunca ouviu falar ameaça a terra; um homem de cinco olhos é o verdadeiro dono da velha casa mal assombrada; então, Diana virou a esquina e lá estava a mulher que ela sempre amou e com quem mostraria ao mundo que qualquer maneira de amor vale a pena. Essa lista acima é sem fim. Exibi apenas pequenas possíveis sinopses que podem ser encontradas dentro da literatura. Ora se tem dentro dela as variações do desejo , do interesse humano, por que nossas aulas não conseguem atrair novos leitores e, em especial, os adolescentes da geração Z? Esse não é o único motivo, mas o principal: é que estamos errando na entrega. Estamos entregando mal e por isso se faz tão necessária a sequência de políticas públicas de olho no livro e na leitura. Essa semana participei da entrega de livros feitas pelo governo a uma biblioteca comunitária em Nova Iguaçu e novamente tive a certeza da importância da mediadora da leitura nessas instituições para que ela traga o encantamento na prática. Conte as palavras com sentimento. Quem não lembra de piadas nas quais riu, porque o contador era o mais engraçado? Ele fazia com que a piadinha ganhasse nosso riso. Acontece na literatura, também. Histórias muitos simples e muito bem contadas. podem arrancar silenciosas lágrimas do leitor ou produzir uma profunda e leve paz.
Quem são os agentes que apresentam a literatura aos pequenos seres humanos pela primeira vez? No caso de pessoas mais pobres, certamente cabe a escola esse papel em geral. Nos outros casos, madrinhas, tios, pais, todos são normalmente iniciadores potenciais da leitura na vida do pequeno indivíduo.
Por que insisto tanto nos prazeres desta arte? Ora, é que, por ser uma arte, tem alto potencial pedagógico. Tanto que de tanto ouvir tocar no rádio, a gente acaba cantando até música que a gente não gosta, tamanha é a eficiência dos recursos artísticos para ensinar.
No momento em que vemos uma atrofia no desenvolvimento cognitivo das gerações atuais, comprovada cientificamente, por conta do excesso de telas, estou segura de que a era nos convoca, nós escritores, nós os adultos, a reagir, a assumir o nosso papel na preservação da memória na produção do autoconhecimento do indivíduo em formação, de modo que ele cresça com desenvoltura de coordenação motora fina, capaz de realizar coisas com as mãos: escrever, pintar, colorir, cortar, raspar, preencher, encaixar, cozinhar, arrumar, cuidar. Curiosamente a literatura nos leva ao conhecimento de quase tudo que a gente quer. Inclusive é capaz de nos fazer mudar de atitude.
Me lembro que a primeira vez que fui a Portugal, eu tinha ido com meu namorado e lhe disse que eu nunca tinha estado na Europa. Mal pisei naquele país e comecei com mil programações na boa Lisboa: vamos no Rossio, no Chiado, preciso ir a Sintra, não posso deixar de ir ao Porto. Surpreso, ele me disse: Ah, então não é a primeira vez que você pisa em Portugal? Era e não era, Fernando Pessoa tinha me levado a tais lugares antes, muito antes de eu ali chegar. Pelas palavras. Ele mesmo dizia: “Viajei por mais terras do que aquelas que me pus os olhos…”
Tive a oportunidade de idealizar e realizar a Festa da palavra em Itaúnas, no norte do Espírito Santo, naturalmente rico culturalmente, porém sem opções artísticas das que a gente vê nas grandes capitais. Então havia uma falta de uma certa nutrição que muitos nem sabiam que sentiam. Enchemos de encantamento a palavra como protagonista na cidade nesta festa em seu louvor. A vila ainda não tinha visto tal proeza. Salvo raras exceções, muitos nunca tinham pensando no poder da palavra até aquele dia, quando carros e carros e ônibus e escolas desembarcavam a todo tempo para homenageá-la.
Agora, passado o evento, já se fala em novos leitores e autores como fruto da experiência numa zona de praia, mas rural. Cada vez que democratizamos os saberes, as vozes de uma cultura, o país cresce, mais cidadãos capazes de ajustar as desigualdades se formam. Estes, quando bons leitores, estão devidamente equipados de argumentos e visões para lerem a vida. A escola deve ensinar a ler a vida.
A inclusão, agora neste governo, de uma biblioteca comunitária dentro do programa bolsa família juntamente com uma área de lazer dói no meu coração de tanta lindeza, de tanta esperança que tenho num país que trate melhor os não privilegiados.
Por fim, afirmo-lhe que sou de uma casa, cujo projeto político dos meus pais era, através do livro, criar uma família de intelectuais. De. Lino, meu pai, advogado, era um homem apaixonado pela palavra e sabia de sua potência na construção da cidadania .Dizia que o livro seria chamado, em nossa casa,de nova abolição. Feito. Ainda estamos aqui.
Não se obriga ninguém a ler, o ser humano deve ser seduzido a ler, encantado. Afinal, durante toda sua vida, mesmo não estando na escola, ele poderá ter o livro como companhia e como matéria de estudos da vida. É mágica a experiência de entrar dentro de um mundo de palavras. Às vezes a gente não gostou daquele livro, mas não devemos desistir, é que aquele não combinou com a gente. Literatura é igual ao amor; quando rola, temos saudades do livro como temos de um amor. Lamentamos quando o esquecemos em casa. O bom livro é um enfeitiçador, é mágico. Abre-se o objeto e estamos na Rússia, em Cuba, em Salvador, no Senegal, em Moçambique, em Mar de Espanha e por aí vai, você compra o livro e viaja entre mundos, viaja interplanetariamente em segundos.
Livro, a passagem mais barata do mundo.
Elisa Lucinda, alto inverno,2025