Com amor, Elisa Lucinda
Finalista do Prêmio Jabuti 2022 por “Quem me leva para passear”, Elisa compartilha as memórias de 35 anos nos palcos, na TV e na poesia
Elisa Lucinda é um oráculo de si mesma e tem na mão as respostas que mais importam sobre a própria história. Inclusive, aquela que carrega a gênese de sua maior paixão. “É na infância que está o fundamento da minha poesia”, com esse pontapé ela dá início à nossa conversa.
Elisa é muitas coisas: atriz, poeta, escritora, professora e mãe de Juliano. É difícil defini-la em um texto. E não é a toa. São 35 anos de carreira, cruzando o país, distribuindo a palavra da poesia para os amantes do gênero e também para quem diz não conhecer ou não gostar dos versos líricos. Mas com jeitinho, a poetisa faz sua mágica e consegue tornar, até mesmo, a palavra mais rebuscada, familiar. “Se você coloca uma palavra como íngreme, que não é usualmente desfrutada por grande parte da população, ao lado de outra mais vulgar, como puta, você torna essa primeira mais conhecida. Todo mundo conhece a palavra puta, então fica até mais convidativo pesquisar o significado da outra”, revela uma de suas táticas.
“Todo mundo sai ganhando, inclusive as palavras. Uma se torna mais respeitada e a outra mais conhecida”, diz aos risos.
No começo de sua jornada pelas artes, muitos que a escutaram interpretar uma poesia pela primeira vez, disseram nunca ter visto e ouvido nada igual. Numa ocasião, estava em Búzios, se apresentando com Nestor Capoeira, que tocava berimbau ao seu lado. Ao fim, uma mulher de cabelos cacheados e ruivos se levantou e perguntou de onde a jovem vinha. Após responder, a mulher disse sem hesitar: “Isso que você fez aqui, eu nunca vi antes. Agora sou sua parceira, onde você estiver eu estarei na plateia.” Palavra cumprida. Elisa sabia muito bem de quem se tratava: “Era Beth Carvalho.” Quando não podia ir, enviava alguém. Numa dessas visitas, Zeca Pagodinho deu o recado: “A madrinha mandou vir.”
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Buscando o próprio caminho
Quando falamos pela primeira vez, a seleção brasileira de futebol estava a algumas horas da derrota para Camarões, em seu terceiro jogo na Copa do Qatar. A entrevista precisou ser interrompida. Na segunda fase da conversa, o Brasil se redimiu por 4 a 1, contra a Coreia do Sul e entrou para as quartas de final. Tudo voltava aos eixos, antes da derrocada.
Ao retomar a conversa, Elisa me conta que quando chegou no Rio, no fim da década de 1980, uma de suas metas era publicar seus livros e viver de poesia. Mas imagine, sem internet, e sem informações acessíveis de pronto, achar os meios para isso era um caminho ainda mais custoso. A informação vinha pelo boca a boca. Mas Elisa achou seu caminho.
Nascida em Cariacica, no Espírito Santo, ela vivia com o pai, a mãe, os cinco irmãos e a avó materna, Maria. Era uma família de classe média. Ao fim de um longo quintal, sua casa se encontrava com a de sua avó paterna, também chamada Elisa Lucinda. Aquela caminhada pelo mato inspirou muito a sua poesia na vida adulta e lhe ensinou a olhar para as coisas com mais calma e intenção. “Era uma aventura aquela travessia porque a gente tinha que passar pelo canavialzinho, onde essa minha avó pegava a cana e cortava para gente. Tinha de tudo ali: abacateiro, goiabeira, pé de jenipapo, tinha peru, cachorro, gato, muitas plantas e uma horta. Isso deu muita riqueza para que a minha poesia nascesse.” Havia também o jeito meio fofoqueiro da vida no subúrbio, que atiçava o olhar para o outro.
“Era comum, nos anos 1960, 1970, fazer aula de declamação de poesia. Havia muitas declamadoras famosas, como a Margarida Lopes de Almeida. Quem não tocava piano e nem dançava balé, fazia alguma coisinha nas festinhas, e eu falava poemas”
Elisa Lucinda
A educação que importava não era apenas sobre poesia. Desde cedo, seu pai, Lino, fez questão que os filhos tivessem consciência racial. E dizia que eles deveriam estudar para tentar driblar o racismo que encontrariam durante a vida. Todos eles seguiram o conselho, incluindo Elisa, que sempre teve uma queda pelas palavras.Traço acompanhado de uma inquietude e um encantamento pelas novidades, que duram até hoje. “Tenho tesão pela vida”, ela conta.
Já na adolescência, os pais, ao notarem sua curiosidade, a inscreveram num curso de interpretação teatral de poesia com uma professora que hoje Elisa chama de amiga e mãe de sua poesia, Maria Filina Salles Sá de Miranda. “Era comum, nos anos 1960, 1970, fazer aula de declamação de poesia. Havia muitas declamadoras famosas, como a Margarida Lopes de Almeida. Quem não tocava piano e nem dançava balé, fazia alguma coisinha nas festinhas, e eu falava poemas. Eu amava, tanto que fiquei até os 17 anos.”
A vida encontrou a arte, aos olhos de Elisa, quando a jovem sofreu a primeira grande perda. “A primeira vez que tive a noção de cena da vida foi quando minha avó materna morreu”, conta. Havia uma relação conflituosa com a matriarca, Maria Antônia, que, por vezes, se fazia muito severa com os jovens e parecia sempre disposta a cortar os momentos de alegria dos netos. Ao mesmo tempo, era ela que cuidava, que dava de comer aos pequenos. Quando viveu essa perda, viu que sua casa havia passado por uma completa mudança de cenário. O almoço não foi servido na mesma hora e havia um tipo de cerimônia acontecendo ali, algo incomum. Diante daquela morte, as pessoas se reuniram, lamentaram e agiram de uma forma diversa do cotidiano. Aos 13 anos, ela não sentiu vontade de chorar, o que lhe gerou uma culpa danada, mas se sentiu triste por sua mãe.
“Queria ser a notícia, e não dar a notícia”
Elisa Lucinda
Passada a adolescência, seus irmãos se mudaram para o Rio de Janeiro para estudar. Elisa já demonstrava interesse pelo teatro, mas foi influenciada pelas opiniões do pai de que o caminho deveria ser outro. Persuadida, foi estudar jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), seria sua maneira de manter vivo o jogo com as palavras, mas logo foi cooptada por um grupo de teatro e construiu um caminho em paralelo.
Quando concluiu o curso, se mudou para o Rio. A paixão pela nova cidade fez com que criasse raízes ali, que a sustentam até hoje. Na época, ela cobria cultura para a TV Gazeta, mas a vida ainda estava meio em desacordo. Ela recorda uma entrevista que fez com Elba Ramalho antes de uma peça em que a cantora participaria como atriz. Da coxia, Elisa chorou, pois também queria estar ali: no palco. “Queria ser a notícia, e não dar a notícia”, lembra.
O desejo cobrou o tempo perdido. Foi estudar teatro no CAL (Casa das Artes de Laranjeiras). Era a realização de um sonho, mas o começo foi tão instável que chegou a cogitar a voltar para a casa dos pais. Quando ligou para a mãe dizendo que voltaria para o Espírito Santo, Divalda logo a desencorajou. “A gente te ajuda e você vai vencer.”
Naturalmente, a virada não se deu do dia para noite. Em 1989 Elisa já tinha participado de uma novela, Kananga do Japão, da antiga Rede Manchete, e de diversas peças. Um dia estava caminhando por Copacabana e escutou de um casal num bar: “Olha, é aquela atriz. Pena que não deu certo.” Mal sabiam.
Nos anos seguintes, estrelou várias novelas que viraram marcos na teledramaturgia brasileira, como Sangue do meu Sangue, Mulher, Páginas da Vida. E nunca mais parou.
Alma independente
Com os anos, como acontece com alguém recém-instalado em um novo lugar, Elisa conheceu outros artistas, que se tornaram amigos e que se ajudaram entre si. Um encontro, no entanto, foi divisor de águas. Naquele dia, era lançamento do seu livro Sósias dos Sonhos. E lá recitou vários poemas.
Na plateia, estava o jornalista e publicitário Mauro Salles, conhecido por ser um grande mecenas na época, disposto a ajudar artistas no começo de carreira. O ator Paulo José, então namorado de Zezé Polessa – grande amiga de Elisa –, apresentou os dois. “Ele me disse: ‘Se depender de mim, você viverá de poesia’. E me deu um cartão com o número dele, mas eu não liguei, pensei que ele estava me cantando.”
A poeta estava fazendo uma peça de seu livro Sósias dos Sonhos, dirigido por Zezé Polessa e foram apresentá-la em São Paulo, no Teatro Crowne Plaza, quando Zezé sugeriu que Mauro pudesse os apoiar. “Ele gostava muito de ajudar os artistas e poderia dar dinheiro para que a gente pudesse voar para São Paulo, o que a gente não tinha”, disse a amiga. Elisa ficou preocupada com as intenções do publicitário porque ainda não o conhecia e abriu o jogo com ele “Fomos jantar e eu disse: não te conheço direito e não sei em que moeda você espera que eu pague essa ajuda, mas preciso saber porque talvez eu não tenha essa moeda.”
Foi então que ele ficou com os olhos cheios de lágrimas. “Aí ele disse: ‘Quando você encontrar alguém com tanto talento quanto você, faça por essa pessoa o que eu estou fazendo’. E eu nunca quebrei essa corrente.”
Começou a fazer recitais em bares, acompanhada de música. Cantava e falava poesia. Ganhava apenas o couvert. Depois de três anos, os convites começaram a expandir as fronteiras do Rio de Janeiro.
Várias portas foram sendo abertas e muitos jornalistas e artistas passaram a conhecer a atriz-poeta. O universo se alinhava e a atriz pôde viver de seu ofício e de sua poesia. Não sem as dificuldades evidentes para uma mulher negra em um meio completamente branco. “Ninguém queria ser meu produtor nessa época. Poesia sempre foi o patinho feio das livrarias. As pessoas diziam que quando eu fizesse televisão, ficaria mais fácil. Não compreendiam o que eu fazia e queriam me colocar numa caixinha.”
Seus primeiros dois livros foram produzidos de maneira independente. Já o terceiro, O Semelhante, foi publicado pela Editora Record, em 1995. Depois dele, vieram outras 16 obras. A última delas, Quem me Leva para Passear (Editora Malê), foi finalista do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Romance de Entretenimento.
Fez sucesso também na televisão e no teatro. Lotou as plateias, durante 20 anos, com seu monólogo Parem de Falar Mal da Rotina.
“Poesia sempre foi o patinho feio das livrarias. As pessoas diziam que quando eu fizesse televisão, ficaria mais fácil. Não compreendiam o que eu fazia e queriam me colocar numa caixinha”
Elisa Lucinda
Atualmente, está em cartaz com os filmes O Pai da Rita, O Papai é Pop e Rir para Não Chorar. Além de fazer parte do elenco da série Manhãs de Setembro, da Amazon Prime, onde interpreta a voz de Vanusa e também a mãe da personagem central, Cassandra (vivida por Liniker).
Uma das maneiras que a atriz encontrou de cumprir a promessa feita a Mauro não se deu exatamente nos trabalhos frente ao público, mas em contato com grupos marginalizados. Um dos projetos dos quais mais se orgulha é Casa-Poema, uma instituição cultural no Rio, que criou com a atriz Geovana Pires, sua amiga e grande parceira profissional. Naturalmente, a poesia é o motor para as atividades, que vão de encontros literários, a oficinas e cursos. Nem todos são oferecidos ali dentro.
Uma das iniciativas da Casa-Poema é o Versos de Liberdade, em que as duas artistas levam a poesia para adolescentes que cumprem medidas socioeducativas.
Depois de uma longa caminhada pelas suas memórias, ela parece ler meu pensamento. O que gosta mais gosta em sua carreira? São duas coisas: o chão e a coerência. O chão é o lugar em que ela plantou sua carreira e que colhe os frutos. A coerência é a habilidade de se mostrar a mesma pessoa nos seus livros, nas suas peças e na sua poesia.
Mas há outra coisa, ela lembra antes de encerrarmos: “A independência”.
“Mesmo não sendo mais uma escritora independente, minha alma é independente. A coisa mais cara da minha vida é a liberdade.”