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OLÁ,

Entre o humor e a dor, Panayotis Pascot busca se reconciliar com as próprias emoções

Em Da próxima vez que você cair do cavalo, o comediante expõe seus desafios e revela seu amadurecimento emocional

Por Humberto Maruchel
28 jun 2025, 09h00
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Comediante Panayotis Pascot lança no Brasil o livro "Da próxima vez que você cair do cavalo" (Alice Moitié/divulgação)
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O jovem comediante francês Panayotis Pascot nunca foi muito bom em expressar seus sentimentos. Talvez esse seja um dos maiores desafios de sua vida. Sua trajetória não é marcada por grandes perdas, traumas profundos ou dores insuperáveis, mas pelo constante vai e vem das lembranças da infância e juventude, em que ele simplesmente não sabia o que fazer ou como agir diante das emoções. Até que um anúncio abalou seu mundo interior.

Há alguns anos, seu pai, de quem provavelmente herdou a rigidez emocional, disse-lhe, quase em tom de despedida, que estava muito doente — mais dramático do que isso: que estava morrendo. O humorista, e agora autor, se viu diante da eterna indigestão dos seus sentimentos, mas desta vez fez algo diferente: começou a escrever todas as noites, tomando como forte insumo a própria insônia e a nova circunstância que dificultava seu sono leve.

Desse processo noturno nasceu seu livro Da próxima vez que você cair do cavalo (Ercolano, 2025), lançado este mês no Brasil. A obra, no entanto, é anterior, tendo sido publicada em 2023 na França, onde se tornou um best-seller. Um resultado surpreendente até para o próprio autor, pois o livro é um relato íntimo, que fala sobre suas dificuldades profundas, as memórias familiares com o pai no centro da roda, os desafios de se assumir homossexual e o amadurecimento em todas as suas relações — familiares, afetivas e sexuais.

Acontece que, muito antes de publicar o livro, Panayotis já era uma estrela em seu país. O ator começou sua carreira com destaque na série Studio Bagel (2012) e participou de produções como Peplum (2015), Roommates Wanted (2016), Tamara Vol. 2 (2018) e Thanksgiving (2018). Nos anos seguintes, atuou em séries como Un Bon Moment (2020), Irma Vep e Standing Up (2022). Além de se consolidar como um humorista sério — perdoe o trocadilho — na Europa e nos Estados Unidos, Panayotis estreou seu especial de stand-up Quase (Presque) na Netflix em 2022. No espetáculo, ele compartilha de forma sincera e bem-humorada aspectos da sua vida pessoal, incluindo sua criação, experiências amorosas e desafios emocionais.

Seu livro pode ser visto como um desdobramento da linguagem que ele adota no stand-up, porém com muito mais profundidade e com uma missão mais firme de alcançar a raiz do seu íntimo, como uma resposta que tornará a mudança que tanto busca mais acessível. Recentemente, o autor esteve no Brasil, onde participou da Bienal do Livro do Rio de Janeiro e da Feira do Livro em São Paulo. A Bravo, então, conversou com Panayotis sobre os aspectos mais íntimos tratados em sua obra, sobre seu amadurecimento artístico e saúde mental. Ah, e não, seu pai não morreu. Ele está muito bem atualmente.

No seu livro tem essa ideia de que, pra você, crescer é como uma perda constante, da infância, do afeto. O que te fez querer contar essa história agora, na casa dos vinte anos? Que impulso te levou a escrever?

O impulso foi que eu nem sequer pisquei quando meu pai me disse que estava doente e que ia morrer. Ele me contou de uma forma muito direta, e eu… não senti nada. Nenhuma reação emocional. Nem pra um lado, nem pro outro. Foi muito estranho.

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Acho que esse foi o acontecimento que me fez querer escrever o livro. Eu precisava explorar algumas coisas dentro de mim que eu não sabia como lidar. E eu fiz isso escrevendo. Todas as noites.

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Da próxima vez que você cair do cavalo, Panayotis Pascotcf       ”””””””””””””””””””””’ (ercolano/divulgação)
E você se sente diferente agora, depois do livro? No jeito como expressa suas emoções?

Sim. Eu acho que hoje estou mais conectado às minhas emoções. Antes, eu tinha muito medo de sentir. Porque quando você sente, você perde um pouco o controle. E eu sou muito controlador.

Eu tô tentando ser mais aberto aos imprevistos, às coisas inesperadas, mas não é fácil. E eu tô tentando. Eu sou jovem, é só o começo da vida. Na França, a gente diz “on touche du bois”, que significa tipo bater na madeira pra não zicar. “Je touche du bois.” Vamos ver o que acontece. Mas acho que sim, hoje eu tô mais conectado. O livro ajudou.

E como está seu pai agora?

Bem. Está bem. Está melhor. 

Que ótimo! Eu sei que é algo pessoal, mas se não se importar, como ficou sua relação com ele depois do livro?Ah…

Foi estranho no começo. Bem estranho. A gente é uma família que não fala muito sobre o que sente, sobre o que acontece aqui dentro, no estômago, no coração, na cabeça. A gente não costuma conversar sobre essas coisas. Levou um tempo. Mas hoje, eu acho que a gente tem um laço muito forte. Um laço que não existia antes.

Acho que talvez não tenha sido algo totalmente consciente, mas talvez eu quisesse dizer pra minha família tudo aquilo que eu carregava dentro de mim. Talvez tenha sido algo inconsciente, mas ajudou. Sim.

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De onde você acha que vem o seu humor? De que lugar íntimo ele nasce? Tem a ver, talvez, com essa dificuldade de expressar suas emoções?

Sim, acho que sim. É, como posso dizer, um atalho pro amor. Acho que o humor faz com que as pessoas gostem de você mais fácil.

Eu nem lembro direito quando comecei a fazer piada. Mas acho que foi pra impressionar os adultos, pra poder conversar com eles. Porque os adultos não gostam muito de ter conversas reais com crianças, e eu queria ter essas conversas. E acho que o humor me ajudou a conquistar meu lugar na mesa dos adultos.

E também acho que é um truque que me ajuda a… como se diz… “contourner” em inglês? Sabe, desviar, escapar…

Sim, tipo “bypass”.

Isso! O humor me ajuda a desviar das emoções.

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Panayotis Pascot na Feira do Livro de 2025 (Flávio Florido/divulgação)

A comédia — não sei se é o jeito certo de colocar — mas a comédia cria essa cumplicidade profunda entre as pessoas. Imagino que no stand-up também. O que você descobriu sobre as pessoas através do que faz elas rirem?

Ah, eu acho que a surpresa. E é engraçado, porque surpresa na vida real não costuma ser algo engraçado, né? Mas quando você surpreende as pessoas no humor, no stand-up, aí sim, é outro nível de riso.

Eu não sei exatamente por quê, mas a surpresa é um fator enorme pra fazer alguém rir. Quando as pessoas esperam que você faça uma coisa e você faz outra e pronto, vem a risada.

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Se eu digo “A” e faço “A” — ninguém ri. Se eu digo “A” e faço “B” — aí sim, todo mundo ri. Se eu digo “B” e faço “B” — também não ri.

E isso ainda é um mistério pra mim. Mesmo agora, depois de… ano que vem faz dez anos que eu faço stand-up na França. E isso ainda me parece uma coisa mágica nas pessoas. Acho que esse vínculo é muito especial. Você sabe que acertou, que fez seu trabalho como comediante, quando durante o show todo mundo começa a virar uma coisa só. Dá pra sentir isso no ar.

É como… sei lá, tem 1.200 pessoas ali, e de repente uma piada faz todo mundo entrar na mesma linha do tempo, e todo mundo vira uma única pessoa. É muito mágico ver isso acontecer.

Eu imagino que, quando você fala coisas muito constrangedoras sobre você, também percebe que as pessoas são assim, né? É quase aquela sensação que a gente tem quando cresce e percebe que todas as pessoas são estranhas.

É… (risos) Isso é uma música boa dos The Doors“People are strange.” Sim… Eu acho que todo mundo é estranho. E é isso que faz com que a gente seja, ao mesmo tempo, único… e igual. E o que eu acho mais curioso na escrita é que quanto mais pessoal você é, mais universal aquilo se torna. Isso é mágico também.

Por exemplo, eu posso ler a Annie Ernaux e ela tá escrevendo sobre a vida na França dos anos 1970, sobre como era ser mulher naquela época. E quando eu leio aquilo, eu sou uma mulher nos anos 70. Isso é muito estranho. E, de algum jeito, eu entendo coisas sobre mim mesmo através da história de uma mulher que viveu nos anos 70. Isso é realmente mágico. Acho que essa é a coisa que eu acho mais mágica na escrita.

 E você começou escrevendo? Antes até de atuar ou de fazer stand-up? Quando foi que você percebeu esse seu talento pra falar com muitas pessoas e, mais do que isso, pra falar sobre você mesmo, como você faz no stand-up?

Eu não vejo exatamente dessa forma. Eu escrevo só pra mim, eu acho. É uma diferença meio estranha, mas quando eu estou escrevendo, é só pra mim. E só quando eu termino, aí sim eu começo a pensar no que as pessoas podem sentir ou pensar quando lerem. Mas, no processo, eu nunca penso nas pessoas.

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E quando eu estou no palco, se eu preciso fazer alguém rir, a primeira coisa que eu penso é: “eu preciso me fazer rir”, e fazer as pessoas entenderem por que aquilo me faz rir.

É uma diferença pequena, mas pra mim é fundamental. Eu não quero fazer as pessoas rirem. Eu quero rir no palco e quero que vocês se juntem a mim. E acho que essa é a coisa mais bonita do stand-up.

Quando você tá sentado na plateia, assistindo um comediante, e você percebe que ele está se divertindo de verdade… você sente que tá entrando junto com ele naquela experiência. E é aí que você tem vontade de ser amigo daquela pessoa no palco. 

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(Alice Moitié/divulgação)

Você ainda fica ansioso antes de subir no palco?

Depende. E eu nem sei muito bem de que depende. Às vezes, eu tô lá, no sul da França, pra uma plateia de, sei lá, 400 pessoas… e eu tô, tipo, “Meu Deus, tô surtando. Por que eu faço isso? O que eu tô fazendo da minha vida? Quem eu penso que eu sou?” Sério, quase chorando.

E no dia seguinte, tô numa outra cidade, na frente de 2 mil pessoas… e zero estresse. Super tranquilo. É muito louco. Eu não sei quais são os fatores que me deixam ansioso.

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É mais difícil quando você se apresenta pra um público de outro país?

Não, acho que não. Porque acho que as piadas são universais. Eu não faço piadas sobre política ou sobre questões sociais muito específicas. Eu faço piadas sobre… como posso dizer… sobre a vida. Sobre crescer, sobre existir, sobre viver, no geral.

Então não tem muito problema fazer isso em outro país. O que eu preciso mesmo é prestar muita atenção nas palavras. Porque as palavras são muito, muito importantes pra uma piada. Você pode ter a mesma piada, mas troca uma palavra e não tem riso. Isso é uma coisa bem maluca.

Então, quando eu tenho tempo, eu vou pra cidade, pro país aonde vou me apresentar, e faço alguns shows pequenos, em comedy clubs. E aí eu testo algumas piadas pra entender como as pessoas reagem a certas palavras. E, sinceramente, isso é bem divertido de fazer.

E quando você se apresenta fora, como você faz pra se adaptar a esse novo público? Você sente que precisa visitar a cidade, conversar com as pessoas…? Como funciona isso pra você?

Na real, não muito. Porque eu não faço piadas sobre a cidade, nem sobre coisas locais. Minhas piadas são só sobre a vida. E a vida, bem… ela é parecida pra muita gente, em qualquer lugar do mundo. É esse negócio difícil que você tem que fazer todo dia: acordar e… viver sua vida.

Então não, eu não preciso me adaptar tanto. Mas eu acho que preciso ouvir. Estar no palco é, acima de tudo, saber ouvir. Porque toda noite você tem que se adaptar ao público.

Às vezes você tá no mesmo teatro, na mesma cidade, dois dias seguidos… e numa noite, o público quer rir. Eles PRECISAM rir. Dá pra sentir. Choveu o dia inteiro, todo mundo tá meio mal, e você tem que ser muito forte pra levar essas pessoas pra um lugar bom, de riso. E no dia seguinte é como se eles quisessem uma história.

O show é o mesmo. O teatro é o mesmo. A cidade é a mesma. Mas são dois shows completamente diferentes. Porque você tem que escutar as pessoas. Dá pra ouvir o que elas querem, o que elas precisam, o que elas gostam, o que interessa mais.

E isso é uma coisa muito louca no stand-up. Você tem que ter um ouvido muito bom pra captar o sentimento das pessoas.

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(Flávio Florido/divulgação)

Acho que uma das coisas mais bonitas no seu trabalho é que você é muito honesto sobre as suas questões pessoais. Como que o seu humor surge no meio de experiências difíceis, como a depressão, ou até o processo de se assumir, que muitas vezes pode ser bem doloroso.

Eu acho que o humor é como dar um passo pra trás em relação àquilo que você tá levando no peito. Você tá lá, tomando uma porrada e o humor é essa capacidade de, simplesmente, dar um passinho pra trás e olhar de fora. E, muitas vezes, essa distância é a chave pra conseguir entender o que tá acontecendo. Às vezes, você não tem essa distância, e esse é o meu problema.

Eu adoro a ideia de distância. Tudo na minha vida é sobre isso. Até o livro é sobre encontrar a distância certa. A distância certa comigo mesmo, com a minha família, com meu pai. E o humor é exatamente isso: criar distância. E, sim, ele ajuda a enxergar. Porque, às vezes, você tá tão perto das coisas que não consegue ver o todo.

O humor é o meu jeito de dar esse passo pra trás e tentar encontrar uma pista, uma chave, que me ajude a entender aquilo que eu tô vivendo. Mas o meu problema hoje, que eu tô tentando resolver, é que, às vezes, essa distância vira uma barreira que me separa da vida real. Sabe? Aquela coisa de realmente viver, de tomar as coisas na cara, de estar presente, de estar ali, inteiro, forte. E… isso não é uma coisa que eu faço com facilidade, mas eu tô tentando.

E você tem sido muito, muito aberto sobre sua saúde mental. Quando foi que você conseguiu, pela primeira vez, dar nome pra sua depressão? Foi um momento de clareza ou foi algo que veio aos poucos?

Não foi um momento de clareza. Foi um momento muito intenso. Eu estava prestes a entrar no palco, no Théâtre Fémina, em Bordeaux, que é uma cidade bem grande na França. É um teatro enorme, com capacidade pra umas 1.500 pessoas. E o público já estava sentado, esperando o show começar e eu simplesmente não conseguia entrar no palco. Aí eu falei pro meu irmão, que estava na turnê comigo: “Acho que preciso fumar um cigarro antes do show.”

Fui lá fora fumar, ele estava falando comigo, mas eu nem estava ouvindo… e, de repente, alguma coisa simplesmente partiu dentro de mim. Eu desabei no chão.

E foi isso. Eu não consegui, era impossível pra mim subir no palco. A gente voltou pra Paris, e aí começou um período muito difícil. Foram três momentos bem complicados, bem pesados. Procurei muitos médicos e foi aí que eles me disseram que eu estava deprimido. Foi uma fase muito, muito estranha. Eu quase não tenho memória desse tempo.

E como foi pra você voltar ao palco depois desse período de tratamento?

Demorou um ano. Na verdade, acho que ainda estou nesse processo. Ainda estou me recuperando, e talvez isso seja a vida, né? Você tá sempre em recuperação, sempre se reconstruindo. Então, eu tento ficar feliz com o fato de estar me recuperando.

Eu tinha muito medo de voltar pro palco. Mas não era um medo do trabalho em si. Era o medo de não estar pronto pra voltar pra vida normal. Eu estava fechado em casa, não queria ver ninguém, falar com ninguém. Foi difícil até falar. Eu perdi uns 8 quilos. 

Mas, ao mesmo tempo, foram muitas conversas, muito apoio de amigos, de pessoas que me amam, e isso me ajudou a me reconectar com a vida. Então também foi uma experiência muito amorosa, muito gentil, esse processo de recuperação.

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(Flávio Florido/divulgação)

E quanto você acha que mudou depois disso, como comediante e como pessoa?

Como pessoa, muito. Muito mesmo. E, às vezes, isso me deixa triste, sabe? Pensar que nunca mais vou ser aquela pessoa que eu era antes. Mas, ao mesmo tempo, às vezes eu me sinto forte por agora conhecer alguns lugares bem escuros dentro de mim.

Mas como comediante, acho que não mudou tanto. O que me ajudou muito foi ter escrito aquele livro. Porque, no começo do processo, eu estava colocando piadas em tudo. E  chegou uma hora que eu decidi tirar todas.

Pensei: “Acho que vou deixar a história se sustentar sozinha. Não preciso encher de piada pra ser amado.”

Então, entender, com aquele livro, que nem sempre as piadas são necessárias, foi muito importante pra mim. E o mais curioso é que, no fim das contas, meu show novo é mais engraçado do que o primeiro. Tem até mais piada. Mas eu acho que… no processo de escrever esse novo show, eu estava… completamente “décomplexé”, como dizemos em francês.

Tipo… sem pressão?

Exato. Sem nenhuma neura, sem peso. Antes, eu tinha essa coisa muito forte na cabeça: “Eu preciso fazer as pessoas rirem.” Agora, nesse show, eu tô totalmente relaxado com essa ideia: “Se eles rirem, ótimo. Se não rirem… tudo bem.” E acho que isso me deixou mais forte no palco.

Tem uma coisa muito interessante na sua escrita… Você parece ser naturalmente engraçado. Mesmo quando diz algo sério, tem sempre um jeito, uma linha, uma escolha de palavras que faz aquilo soar engraçado. É como se você estivesse sempre, de algum modo, se olhando de fora.

Sim, isso tem a ver com aquela distância que falei antes. E, de fato, essa distância me ajuda muito às vezes. Mas, às vezes, nem tanto. Porque essa distância também se estende aos sentimentos.

Na França, a gente tem um ditado: “Tu ne peux pas avoir le beurre et l’argent du beurre”, que seria tipo “Você não pode ter a manteiga e o dinheiro da manteiga.” Ou seja, se você escolhe um caminho, tem que aceitar tudo o que vem com ele.

Então, sim, o humor é uma forma de criar distância. E eu preciso aceitar que, às vezes, essa distância também me afasta dos meus sentimentos. Funciona, e às vezes não. Mas eu tô tentando. Eu sou jovem, é só o começo.

E como você geralmente se sente quando sai do palco?

Depende. Às vezes eu me sinto meio… um semideus. Tipo, “Uau, foi incrível. Eu sou um deus!” (risos) E às vezes eu saio pensando: “Meu Deus, eu sou um lixo. Coitadas dessas pessoas. Eu fiz elas passarem uma noite horrível. Por que eu achei que isso era uma boa ideia?”

Tem dias que é só um trabalho. Tem dias que é super emocional. Tem dias que você não tá na sua melhor versão. Cada noite é diferente. E é exatamente isso que eu amo no meu trabalho. Não existe rotina. Às vezes eu sou um profissional, às vezes eu sou uma criança que tá descobrindo a comédia pela primeira vez.

E eu amo o fato de que eu nunca sei o que vai acontecer nos próximos dez minutos no palco. Isso é uma coisa muito maluca. Você tá ali, numa linha, tentando se equilibrar. Às vezes você cai. Às vezes, as pessoas aplaudem. É assim.

E você tá vivendo um momento de muito sucesso agora. Como você lida com isso? Te surpreende de algum jeito?

Sempre me surpreende. Eu nunca penso nas pessoas enquanto estou no processo criativo. Então, pra mim, é sempre muito estranho quando vem algum retorno.

Fico pensando: “Vocês sabem que eu nem pensei em vocês enquanto fazia isso, né?” (risos) E isso é muito esquisito. Porque, de um lado, parece algo meio egoísta. E, ao mesmo tempo, é exatamente o contrário de egoísmo, porque é completamente para as pessoas. É uma dualidade estranha, que eu preciso aprender a administrar.

Mas eu me sinto muito sortudo. Ontem a gente tava numa livraria no Rio, pra apresentar o livro, e tinha, sei lá, uns 50 cariocas ali. E, cara, isso é inacreditável.

Eu escrevi aquele livro no meu quarto, há uns cinco anos, durante as madrugadas em que eu não conseguia dormir. E, cinco anos depois, eu tô no Rio de Janeiro, com pessoas que compraram o livro, que querem ler, que querem conversar sobre ele em português!

Isso é surreal. Faz zero sentido, se você parar pra pensar. É muito, muito legal.

Você comentou que tem muita vontade de ser pai, e que isso significa amar mais do que a si mesmo. O que você imagina ensinar — ou aprender — com esse filho que ainda não existe, esse filho invisível?

Uau… que pergunta profunda. Acho que você aprende a amar mais do que jamais imaginou ser capaz. E isso, pra mim, é algo muito poderoso.

Quase todos os meus amigos estão virando pais e mães nesse momento. E eu vejo, nos olhos deles, que o amor que eles conheciam antes não chega nem perto desse amor. É outro nível. Então, acho que ser pai te faz acessar um mundo interno, um espaço no seu coração, que você nem sabia que existia.

E acho que é uma experiência maravilhosa. Estou realmente pensando nisso. Mas acho que a parte mais divertida é que, por mais que você passe horas e horas pensando sobre isso, nunca vai acontecer do jeito que você imagina. E eu gosto dessa ideia.

Meu trabalho é basicamente pensar demais. E quando, finalmente, as coisas acontecem, é sempre o oposto do que você planejou. E eu mal posso esperar pra estar errado. (risos)

E o que mais te entusiasma nessa ideia de ser pai?

Acho que, primeiro, é essa dissociação do ego. E isso, pra mim, já é uma experiência incrível. Saber que você vai proteger, amar e cuidar de alguém muito mais do que a si mesmo. Isso, pra mim, é muito forte. E, depois, todo o processo de aprendizado, de cuidado, de afeto. Acho que tudo isso te coloca numa relação completamente nova com a vida. É como se você passasse a enxergar o mundo através de outra alma.

Você está trabalhando no seu primeiro longa-metragem. O cinema te permite expressar algo que o palco ou a página, o livro, não permitem?

Acho que o cinema é como uma compilação de várias artes. Tem teatro, tem escultura, tem pintura, tem música… tem tudo. E é uma arte muito curiosa, porque você precisa convencer uma equipe inteira a embarcar com você na história que você escreveu.

Eu já dirigi algumas coisas, mas nada tão grande quanto um longa. E é completamente diferente de escrever, onde você tá sozinho com você mesmo. Ou de estar no palco, onde você tá sozinho, mas rodeado de pessoas.

E eu tô muito empolgado com essa ideia de trabalhar em equipe, de encontrar pessoas das quais eu vou aprender coisas. Acho que o cinema é isso: passar muito tempo aprendendo com gente apaixonada pelas mesmas coisas que você.

Quais autores te ajudaram a encontrar essa sua voz?

O primeiro que me colocou nesse universo da leitura foi o Bukowski. Porque eu amava estar dentro da cabeça de um babaca. (risos) E ele se apresentava assim, né? “Eu sou um pedaço de merda”, e pronto.

E era uma loucura pensar: “Como esse cara consegue escrever coisas assim sobre ele mesmo?” Ele se pintava como um cara horrível, miserável, e eu adorava ele. Isso gerava um conflito muito louco em mim. E foi aí que descobri a autoficção. Eu pensei: “Nossa, isso é muito poderoso.”

Depois vieram outros, como Annie Ernaux, Constance Debré, Édouard Louis, Emmanuel Carrère, que é um dos meus favoritos, e, às vezes, até Michel Houellebecq.

São todos escritores que tentam colocar no papel aquilo que carregam no peito. E o mais louco é que eu tô lendo isso, deitado na minha cama, e, de repente, eu viro aquela pessoa. Eu me torno eles. E eu amo essa experiência.

Muitas pessoas devem fazer comparações entre você e Édouard Louis – talvez uma referência mais óbvia. Ele é uma influência pra você?

Com certeza. Li todos os livros dele. Só não li o último ainda. Eu adoro o trabalho dele. Pra mim, ele é alguém que está tentando mudar seu destino. Ele nasceu naquele lugar, naquela família, com aquele contexto e decidiu lutar contra o destino que parecia traçado pra ele. E eu amo a ideia de acompanhar a vida de alguém que é, acima de tudo, um lutador.

Quando você assiste a outros comediantes, o que mais te chama atenção? Na sua opinião, o que define o talento de alguém pra comédia?

Eu amo histórias. Sempre amei, desde criança. Então, quando assisto a outros comediantes, o que me prende é sempre a história.

Por exemplo, assisti ao último especial do Jerrod Carmichael. É um comediante bem famoso nos Estados Unidos. Ele lançou um especial agora na HBO. E eu amei. Tudo nele é história.

Então, pra mim, tudo gira em torno da história. Se não tem história, é muito difícil eu conseguir prestar atenção. Eu amo contar histórias. Amo ouvir histórias. 

Como foi pra você ocupar esse espaço da comédia, que, historicamente, sempre foi muito masculino, muitas vezes machista e cheio de preconceitos? Foi difícil ser levado a sério como um comediante gay?

Não, nunca. Nunca senti isso.

Que bom. Não sei se você ficou sabendo, mas, aqui no Brasil, um comediante foi recentemente condenado à prisão por fazer piadas extremamente racistas e antissemitas…

Nossa, não, eu não sabia disso. Que horror.

Diante disso, você acredita que existem limites para o humor? Ou a comédia, por essência, deveria ser um espaço livre, sem filtros?

Olha, eu acho que não existem limites. Você pode fazer piada sobre qualquer coisa. Só que não em qualquer lugar.

Acho que tudo depende do contexto. Você precisa saber ler a sala, sentir as pessoas. E é por isso que eu falei que, pra mim, estar no palco é, acima de tudo, ser um bom ouvinte. O limite aparece quando você para de ouvir. Quando você ignora o que tá acontecendo ao seu redor. Esse é o problema. Quando você sobe no palco — e esse é literalmente o nosso trabalho, fazer isso quase toda noite —, você aprende a ler a energia da sala. Aprende a perceber até onde pode ir.

Por isso, eu não acho que a gente deva criar regras, leis ou parâmetros fixos pra dizer o que pode ou não pode ser dito. Se as pessoas forem responsáveis e mantiverem a escuta ativa, elas sabem, sim, onde estão os limites. Talvez eu esteja sendo otimista, mas é assim que eu vejo. Porque se você começa a impor limites, nunca mais vai parar de impor.

Mas quando alguém faz uma piada racista, por exemplo. Isso ainda é uma piada? Ou vira outra coisa?

Eu não sei. Depende da piada, do contexto, de quem tá dizendo, pra quem tá dizendo. Eu, por exemplo, posso fazer piadas sobre gays. Porque eu sou gay. O Dave Chappelle, que é negro, pode fazer piadas sobre questões raciais. 

Mas, por outro lado, tem o Neal Brennan — que é branco, trabalhou a vida inteira escrevendo com o Chappelle — e ele faz piadas absurdamente engraçadas sobre racismo. E funciona. Por quê? Porque ele usa a piada pra criticar. Pra apontar o absurdo. Então, depende. Depende da intenção, do tom, do lugar.

E, pra mim, tem uma coisa muito mais importante que isso: quando você tá no palco, na frente de pessoas de verdade, elas sentem sua energia. Elas percebem a sua alma. Eu acredito muito nisso.

Se eu faço uma piada pra você, ao vivo, você percebe se eu tô sendo irônico, se eu realmente acredito no que tô dizendo, se eu tô te provocando, se eu tô desconfortável, se eu tô sendo sarcástico… Você sente. Mas, quando essa piada tá gravada, tá na internet… não dá mais pra sentir. Vira só um monte de pixels frios, sem vida. E aí, sim, fica muito fácil interpretar mal.

Por isso, eu não gosto de colocar meu stand-up no Instagram, no TikTok, no Twitter. Eu prefiro guardar isso pra quem tá ali, comigo, numa relação real, de troca humana.

É como na vida: você tem amigos com quem você pode fazer determinados tipos de piadas, e outros, com quem não pode. É exatamente a mesma coisa no palco.

Aqui no Brasil, a gente só tem um dos seus especiais na Netflix. Então, não dá pra ter acesso a todo o seu trabalho. Mas me parece que você tem muito cuidado nas piadas que faz, uma responsabilidade grande. E sinto que suas piadas são muito mais direcionadas a você mesmo do que aos outros. Por isso eu te pergunto.

Não acho que seja exatamente cuidado. Acho que é só amor. Não é que eu suba no palco pensando “Preciso tomar cuidado”. Nunca. É só que faz parte de quem eu sou não querer machucar ninguém. Isso é meu, da minha personalidade. Eu quero ser amado. É só isso. Mas, veja… às vezes eu faço piadas bem pesadas, sim. (risos)

E se você tá na minha frente, ali, no teatro, você entende que não era essa a minha intenção. Você sente isso. Mas eu não acho que a gente deva colocar limites na comédia, porque, se fizer isso, a gente vai acabar perdendo boas piadas.

O Dave Chappelle tem piadas incríveis. A Sarah Silverman lançou um especial agora, cheio de piadas que algumas pessoas consideram que estão no limite. Mas é isso: não dá pra generalizar. É sempre caso a caso.

Perfeito. E… tem mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar?

Acho que não… foi ótimo, uma delícia essa conversa.

 

 

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